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Mercado editorial: saúde mental nas lideranças precisa ser desmistificada

Tema ainda é visto como tabu em muitas organizações, alerta Ricardo Chaves, autor de “Liderança do Divã” em entrevista à Bússola

Ricardo Chaves (Foto: Divulgação) (Ricardo Chaves/Divulgação)

Ricardo Chaves (Foto: Divulgação) (Ricardo Chaves/Divulgação)

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Publicado em 4 de agosto de 2022 às 14h00.

Última atualização em 4 de agosto de 2022 às 15h27.

Por Juan Saavedra*

Depressão, ansiedade, burnout e condutas autodestrutivas. Parece a letra de “O Pulso”, de Arnaldo Antunes com os Titãs, mas é só uma lista de psicodiagnósticos originados em relações de trabalho que afetam a saúde mental. E nem mesmo as lideranças estão imunes.

“Todo líder experimenta momentos de solidão e profunda angústia, mas poucos admitem isso”, afirma o consultor Ricardo Chaves, autor do livro “Liderança no Divã (DVS Editora, 272 páginas).

O problema, diz o psicólogo, não afeta apenas os executivos que estão no chamado C-Level. “Da base da liderança até muitos líderes estratégicos ainda encaram o estereótipo do líder herói como a referência a ser alcançada. Assim, sem perceber, acabam por acumular e represar sofrimentos provenientes do cargo de liderança que independem do contexto e do nível hierárquico em que atuam”, destaca.

Segundo Chaves, que atuou por mais de 18 anos na gestão de empresas, organizações de saúde, educação e consultorias, é possível alcançar excelentes resultados sem deixar esse rastro de sofrimento – tanto em si mesmo como na equipe que lidera.

E a receita passa pela “alta performance humanizada” – leia na entrevista a seguir.

Mercado Editorial – Quais seriam os principais passos para um profissional não sucumbir a transtornos de ansiedade, depressão ou mesmo ao burnout e condutas autodestrutivas?

Ricardo Chaves – Todo líder experimenta momentos de solidão e profunda angústia, mas poucos admitem isso. Sem dúvida nenhuma, posso afirmar que todo líder precisa investir em autodesenvolvimento e autoconhecimento para alcançar a maturidade emocional. É muito mais profundo do que inteligência emocional.

É sobre nos conhecermos profundamente a ponto de não apenas desenvolvermos competências para liderar, mas também para nos humanizarmos neste processo. É nosso papel como líderes desmistificarmos a saúde mental dentro das organizações, promovendo uma gestão acolhedora, humanizada e prática.

Ninguém está imune a estes transtornos, mas infelizmente a maioria das pessoas só busca ajuda profissional quando o quadro já se agravou. Um trabalho de educação corporativa dentro das empresas, com projetos humanizados, é fundamental para criar uma cultura de prevenção e não apenas intervenção. Empresas que conseguem desenvolver programas de humanização e promoção de ambientes com maior segurança psicológica certamente estão na frente deste novo cenário relacionado à saúde do trabalhador, inclusive de seus líderes.

Mercado Editorial – A tecnologia acelerou o ritmo das tomadas de decisão e a quantidade de interações diárias, inclusive nos momentos de lazer e repouso. Mas o dia continua tendo apenas 24h. A gestão do tempo é um dos maiores desafios das lideranças nesses tempos?

Ricardo Chaves –  Acredito que não seja uma questão de gerir melhor o tempo e sim de alavancar a maturidade emocional/mental dos líderes e das equipes que eles lideram. Não basta o líder colocar na agenda e em seu cronograma um tempo para lazer, repouso, meditação, entre tantas outras atividades de descompressão emocional, se mentalmente ele está ansioso ou afetado pelas demandas diárias.

O corpo estará presente no repouso. Entretanto, a mente estará inquieta, pensando em todas as coisas que precisa fazer. Este afastamento mental é o desafio: sentir-se bem e presente nestas atividades de descompressão é a chave para o aproveitamento real destas pausas e dos limites para uma gestão humanizada e de alta performance. Conheço líderes que sentem culpa até por tirarem férias. Não conseguem se “desligar” das demandas da equipe, o que pode evoluir para desgaste mentais estruturados na ansiedade.

Mercado Editorial – A pandemia levou muita gente para trabalhar em casa, sem o convívio direto com os liderados, mas muitas vezes perto da família. Nessa retomada, quais foram as perdas e ganhos?

Ricardo Chaves – O home office tem seu lado positivo e o não tão desejado. O que é ganho para uma pessoa pode não fazer diferença para outra – ou até ser um ponto de conflito. Conheço uma líder que me disse que, no início do home office, achava maravilhoso economizar tempo de deslocamento entre sua residência e seu trabalho. E assim se via muito mais produtiva e feliz.

Ao passar dos meses começou a ter muitas dificuldades em conseguir se “desligar" do seu trabalho, e se cobrava de ter que dar conta de tantas tarefas fora do seu expediente o que causou muito desgaste emocional, crise de ansiedade e episódios de depressão. Foi quando percebeu que o deslocamento casa-trabalho-casa funcionava na sua dinâmica mental como um ritual de despressurização emocional. Enquanto se deslocava para o trabalho se esquecia das demandas familiares e se conectava com as do trabalho, e quando se deslocava para casa ao final do expediente, gradativamente se desligava das demandas do trabalho e se conectava com a sua família.

Exercemos diversos papéis na vida, somos profissionais, pais, amigos, filhos, irmãos, e estes papéis precisam ser preservados para também preservamos nossa saúde mental.  O home office trouxe muitos benefícios para muitos profissionais como maior liberdade e autonomia de execução, redução de custo de deslocamento, possibilidade de estar perto das pessoas que convivemos em nossa casa, entre outros ganhos relevantes.

Entretanto, é fundamental se reorganizar mentalmente para que isto não afete nossa dinâmica de vida. Nesta retomada alguns estão comemorando e outros lamentando. Ambos estão certos a partir de seus respectivos pontos de vista.

Mercado Editorial – Ainda há, entre os executivos C-Level, a visão de que devem mostrar força e esconder fraquezas o tempo todo? E de que modo isso agrava a saúde mental?

Ricardo Chaves –  Infelizmente, não apenas neste nível. Da base da liderança até muitos líderes estratégicos ainda encaram o estereótipo do líder herói como a referência a ser alcançada. Assim, sem perceber, acabam por acumular e represar sofrimentos provenientes do cargo de liderança que independem do contexto e do nível hierárquico em que atuam, como também de sua própria condição psíquica (sofrimentos relacionados a outras áreas da vida).

Outro desafio é reconhecer que existem empresas que valorizam este estereótipo, o que, gradativamente, dentro da cultura organizacional, vai promovendo um rastro de desgaste emocional, "esgarçando" o líder que, no limite da sua angústia, muitas vezes desconta em outras pessoas da sua vida como na família, cônjugue, filhos e amigos. À medida que este desgaste aumenta em frequência e intensidade, também aumentam os riscos de episódios relacionados a ansiedades, depressão, burnout e até o uso de substâncias psicoativas.

Em um mercado competitivo, como alinhar performance e saúde mental? Qual é a sua principal dica?

Ricardo Chaves – Dois pontos fundamentais antes da dica! Primeiro, saúde não é apenas ausência de sintomas. Segundo: a alta performance é o resultado de profissionais preparados, treinados e provados em seus potenciais de liderança. Entretanto, já vi muitos líderes alcançarem excelentes resultados deixando um rastro de sofrimento para trás, em si mesmo e na equipe que lidera.

Alta performance humanizada requer, antes de mais nada, humildade e consistência. Humildade para reconhecer os limites da nossa humanidade e poder transbordar isso para a equipe se tornando uma referência de orientação e acolhimento dos liderados. E consistência para se manter focado na visão que o líder "patrocina" (metas, visão, missão da empresa em que trabalha), assim como na visão que ele tem sobre qual a essência da liderança. A essência da liderança são pessoas. Todo líder terá que tomar decisões difíceis e angustiantes. São nestes momentos que a alta performance humanizada é forjada.

*Juan Saavedra é jornalista e consultor de comunicação na Loure

Este é um conteúdo da Bússola, parceria entre a FSB Comunicação e a Exame. O texto não reflete necessariamente a opinião da Exame.

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