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ESG: startup usa triciclos elétricos para coleta seletiva em Fortaleza

Conheça a Solos, que está implementando na capital cearense um sistema de micrologística que é macroescalável; renda dos catadores aumentou até quatro vezes

Triciclo do projeto Re-ciclo circula por Fortaleza para buscar lixo reciclável (Ribamar Neto/Divulgação)

Triciclo do projeto Re-ciclo circula por Fortaleza para buscar lixo reciclável (Ribamar Neto/Divulgação)

Renato Krausz
Renato Krausz

Sócio-diretor da Loures Consultoria - Colunista Bússola

Publicado em 13 de abril de 2023 às 11h45.

Última atualização em 6 de novembro de 2023 às 17h45.

Talvez poucas cadeias produtivas no mundo possuam extremos tão distantes quanto a da reciclagem. De um lado, pode haver uma multinacional colossal que produz e entrega globalmente coisas variadas em embalagens de plástico, vidro ou alumínio, que precisam retornar à economia em formato de novos recipientes, para o planeta não murchar mais rápido do que já está definhando. Na outra ponta, como personagem-chave dessa circularidade, muitas vezes há um ser humano despossuído e desassistido, um catador, que puxa por mil ruas com seu próprio corpo uma carroça infinitamente mais pesada do que si mesmo.

Sabe o livro “No País das Últimas Coisas”, do Paul Auster? Num lugar distópico e pós-apocalíptico, uma jovem procura seu irmão em meio ao caos, mas só encontra pessoas vagando a esmo pelas ruas. Parte delas leva acorrentado à cintura um carrinho de supermercado, usado para carregar coisas e se defender de ataques de pessoas ou animais. Há um tempo, sempre que eu via um carroceiro, lembrava do livro. Até que me acostumei. Mas continuei sem entender por que a realidade deles nunca mudava.

Já está mudando. Em Fortaleza, graças a um projeto municipal já premiado dentro e fora do Brasil, há catadores de cooperativas locais que circulam em triciclos elétricos e usam todos os equipamentos de proteção, os EPIs, para fazer coletas que podem ser agendadas por um aplicativo e se sucedem em rotas traçadas de forma inteligente, com apoio da tecnologia. As rotas estão todas perto de um ecoponto recém-instalado. E mais: o catador, além do valor pela venda do produto reciclável, recebe também um pagamento pelo serviço prestado.

Saville Alves, cofundadora da startup de impacto socioambiental Solos

Saville Alves, cofundadora da startup de impacto socioambiental Solos (Tayse Argôlo/Divulgação)

Toda essa transformação começou em 2020, com a criação do projeto Re-ciclo e ganhou ainda mais fôlego há oito meses, com a chegada da Solos, uma startup de impacto socioambiental que venceu um edital da prefeitura da cidade que pedia soluções inovadoras para o sistema de coleta seletiva. A coisa foi bolada de um jeito que envolve uma micrologística que é macroescalável, e não poderia ser diferente, porque as metas são ousadas: Fortaleza quer virar modelo de reciclagem no país e sair dos atuais 5% de coleta seletiva para 25% até 2025. O Re-ciclo iniciou suas operações em uma das 12 regiões administrativas da cidade, com seis bairros, incluindo o centro e as praias de Iracema e Mucuripe. Foram criados dois ecopontos e parcerias com três cooperativas, cada uma com uma média de 15 cooperados, que executam a coleta e a triagem. São utilizados dez triciclos, além de carros de pequeno porte e um caminhão. No mês que vem, a Solos iniciará o trabalho em outra regional. Lá serão mais dois ecopontos e outros dez triciclos. Até o fim do ano que vem, entrarão na roda as outras dez regiões administrativas.

Já foram coletadas 160 toneladas de recicláveis e gerada uma renda de R$ 240 mil para os cooperados – o valor é um mix entre o pagamento da diária pelo serviço, algumas metas variáveis e a venda do material. “A renda mensal média de um cooperado saltou de R$ 350 para cerca de R$ 1.400”, me diz a cofundadora da Solos, a soteropolitana Saville Alves. Tudo é feito com uma triangulação que envolve o poder público, que emite as autorizações e aporta boa parte da infraestrutura necessária, a iniciativa privada, que patrocina a operação, e as cooperativas, que executam o serviço. Ah, claro, e tem a Solos, que faz chover e, como é de praxe entre as startups, gera uma profusão de dados úteis para aumentar o entendimento sobre a cidade – neste caso, dados sobre o lixo. Em Fortaleza, o patrocínio vem do iFood. Além da exposição de marca, o ganho reputacional é enorme. A ideia é que, em até dois anos, os custos pagos com o dinheiro do patrocinador sejam absorvidos pelo poder público.

Além do Re-ciclo, a Solos tem outros projetos Brasil afora, como o Vidrado, que há três anos coleta vidros na alta temporada em Caraíva, no sul da Bahia, numa parceria com a Heineken. No verão deste ano, foram 36 toneladas. Outro projeto, em parceria com a Ambev e com Ancat (Associação Nacional de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis) tem feito a coleta de recicláveis nos carnavais de São Paulo, Recife e Salvador.

Como se vê, Saville é ótima gestora e muito boa também em criar nomes. Solos, Vidrado... Formada em comunicação, ela já trabalhou em empresas como Braskem e Oi, até que enveredou a carreira para o propósito de empreender em busca de impacto. E por que a empresa se chama Solos? “Solos é um palíndromo, e portanto traz a ideia circular, de retornar os recursos e a energia que são tirados dos solos”, explica ela. “Nosso trabalho é conscientizar as pessoas a fazerem o descarte correto e, então, vamos buscar o lixo real, com dados, metas e reavaliações, tudo isso para a reciclagem acontecer de verdade. Queremos diminuir a exploração da natureza e melhorar a rentabilidade de quem está na ponta desta cadeia” diz Saville.

A qualidade de vida das pessoas já está indo para um outro patamar. Quem me conta é a cooperada Francisca Raquel, hoje presidente da Associação de Catadores do Moura Brasil, umas das três cooperativas que participam do Re-ciclo em Fortaleza. A cooperativa tem 22 pessoas, das quais 17 são mulheres. Entre elas, Raquel, sua irmã e sua mãe. “Minha mãe já puxou muita carroça, mas hoje fica só na triagem. Eu e minha irmã adoramos pedalar o triciclo”, afirma Raquel.

Ela trabalha com reciclagem há sete anos. Antes, só tirava entre R$ 200 e R$ 300 por mês. A renda agora deu um baita salto. Foi fundamental para ajudá-la a mudar com o marido e as duas filhas para uma casa, como ela diz, “mais digna”. “Esse projeto mudou a nossa vida. Não sei o que vai ser de nós quando ele acabar”, comenta ela. Então eu retruco dizendo que não vai terminar. “Parece que ele vai aumentar para a cidade toda”, digo. Ouço uma pausa do outro lado. A entrevista era por telefone, mas sabe-se lá como deu para ver, ou imaginar, um sorriso se abrindo e uma lágrima de felicidade caindo. E então Raquel disse a plenos pulmões: “AI, MEU PAI, AMÉM!!”

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