Caráter é um sentimento que precisa ser genuíno, natural; não há como desenvolver isso em alguém (dreamstime/Divulgação)
Bússola
Publicado em 26 de janeiro de 2022 às 19h17.
Última atualização em 27 de janeiro de 2022 às 13h43.
Por Emannuelle Junqueira*
Contrate caráter, treine habilidades: A máxima dita por Peter Schutz, empreendedor alemão que presidiu a Porsche por metade dos anos 1980 — e fez as vendas da companhia explodirem —, é mais do que uma frase de efeito — e inspiração para o título deste texto. Ela é o guideline para qualquer negócio, é um conselho para a vida de qualquer empresário.
Habilidades podem ser desenvolvidas. Experiências profissionais, construídas. É no caráter que estão os desejos mais profundos do ser humano, seus valores e premissas, sua real vontade de fazer o que é correto.
O caráter é um sentimento que precisa ser genuíno, natural. Não há como desenvolver isso em alguém, nem obrigar alguém a uma mudança considerável de caráter. E é essa a linha condutora que vai guiar comportamentos, escolhas, decisões. Dos pequenos trâmites do dia a dia às negociações mais importantes, o caráter de quem os conduz em seu nome, em nome da sua companhia, é que dita o sucesso ou o fracasso de uma empreitada.
Quando encontrar caráter e habilidades, você pode pensar que não precisa de mais nada. Só que, na verdade, é aí que começa o seu trabalho. Manter talentos é hoje um dos principais desafios do mercado, tendo em vista as mudanças que as empresas vêm proporcionando, de forma ampla, na relação com seus colaboradores.
No caso da moda, a questão do caráter precisa ser reforçada sob um aspecto diferente: não dá mais para não falar sobre a ausência dele em empresas que contratam não só de olho apenas nas habilidades, mas também que se utilizam de subterfúgios absurdos para a desvalorização de seus profissionais.
Que tipo de caráter tem uma grande marca que não oferece condições de trabalho adequadas para seus colaboradores?
A produção de roupas sempre foi marcada pela prática do trabalho escravo. Quando vieram à tona os escândalos envolvendo grandes lojas, que terceirizavam suas produções e contratavam oficinas insalubres para dar vazão às suas necessidades de produção, muita gente se mostrou horrorizada.
O tempo passa, novos escândalos surgem, e enquanto seguimos achando importante contratar pessoas por seu caráter, esquecemos de checar quais são os valores e princípios das empresas que escolhemos para consumir. É uma questão que se perde, de tempos em tempos, entre os tantos problemas causados pela indústria da moda e sua desenfreada ganância e ambição ainda tão perpetuadas.
Um dos pontos que mais me atinge e me destrói enquanto profissional da arte da indústria da moda é o fato, ainda por cima, de que fazemos isso com mulheres, principalmente. São elas as vítimas preferenciais de uma indústria inteira.
O trabalho com costura, bordados e tecidos é uma das atividades mais minuciosas e intensas que uma pessoa pode executar. E por isso, esse trabalho precisa ser valorizado. São as mãos destas profissionais que dão a uma peça o acabamento pelo qual uma empresa cobrará um preço muito maior — é o tipo de trabalho que agrega, literalmente, valor aos seus produtos.
É o trabalho de uma bordadeira, por exemplo, que traz a uma peça bem-acabada a sensação de desejo, de cultura, de identidade. O grande problema está na distopia que a cadeia produtiva gera: o complexo setorial compreendido por Têxtil, Vestuário, Couro e Calçados emprega cerca de 2,7 milhões de pessoas, sendo que destas, mais de 70% são mulheres.
São 1,96 milhão de trabalhadoras, segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), tendo como referência a Pnad Contínua. Mais de 1,1 milhão (58%) dessas trabalhadoras são informais e destas, 80% não contribuem com a Previdência.
São milhares de mulheres invisíveis, que apesar de darem seus dias e suas horas para criar o que outras milhares de mulheres vão desejar. São desconhecidas para quem está do outro lado, desconhecidas para quem gere as políticas públicas. O acesso lhes é negado. A necessidade — e o caráter, que as obriga, moral e corretamente, a seguir trabalhando de forma honesta — ainda são elementos que as deixam ainda mais presas a esse ciclo, reféns da própria sorte. Contratadas por suas habilidades por empresas sem caráter.
O que isso tem a ver com você? Nada, e tudo, ao mesmo tempo. O que o seu caráter diz a respeito dessas questões?
O que você consome e de quem você consome. As informações que você busca saber a respeito das empresas com quem faz parcerias ou que admira. Isso tudo diz muito a respeito do seu caráter. E o que você é, o que você faz e como você conduz as suas intenções e o seu consumo são as questões urgentes.
Em vez de pregar caráter, execute-o no seu dia a dia. Nas escolhas que faz, nas decisões que toma. Seja exemplo, não seja fiscal. Cerque-se bom caráter. E treine as demais habilidades — um dia, quando menos esperar, você terá feito muito mais pelo seu próprio caráter do que pode imaginar.
*Emannuelle Junqueira é diretora criativa da marca que leva seu nome, designer, empreendedora e apresentadora do Prova de Noiva no Discovery H&H