O médico, pesquisador e empreendedor Gabriel Liguori (TissueLabs/Divulgação)
Repórter Bússola
Publicado em 20 de fevereiro de 2024 às 13h00.
Última atualização em 20 de fevereiro de 2024 às 13h14.
“Diferentemente das outras crianças, eu não podia fazer educação física. Não conseguia acompanhar meus amigos”, lamenta Gabriel Liguori. Ele nasceu com uma má formação cardíaca e passou a infância indo e voltando de hospitais. A experiência seria traumatizante para qualquer adulto, pior ainda para alguém que ainda engatinhava na vida. Mas, com Gabriel, foi diferente. Ele transformou o duro golpe em inspiração para traçar seu objetivo de vida: criar o primeiro coração humano impresso em 3D.
Para alcançar o feito, ele fundou a TissueLabs, startup voltada para o mercado de bioimpressão. A empresa surgiu em 2019 com o apoio da FAPESP e conseguiu um investimento anjo de R$ 1,5 milhão em 2020. Hoje a plataforma atende mais de 160 universidades e centros de pesquisa em todo o mundo, é líder no setor e possui um modelo de negócio que a permitiu ficar de fora dos 70% das startups que falham antes de completar dois anos.
A técnica consiste na impressão de órgãos e tecidos humanos a partir de impressoras 3D especiais.
O desenvolvimento da pesquisa na área tem potencial para sanar problemas como as enormes filas de espera para doação de órgãos.
O interesse pela engenharia de tecidos surgiu em meados de 2014, quando ele ainda cursava Medicina na Universidade de São Paulo (USP). “Isso praticamente não existia no Brasil”, Gabriel conta. “Era algo que só se fazia, de fato, lá fora. Conheci no quinto ou no sexto ano da universidade e comecei a estudar pensando ‘isso aqui é o futuro’”.
Junto a este conhecimento, veio também uma motivação pessoal. Gabriel se tornou médico e cirurgião cardiovascular. Durante o exercício da profissão, teve contato com histórias similares à sua, mas muito mais trágicas.
“Muitas crianças nascem com cardiopatias que são mais graves que a minha e não conseguem ser operadas. Conseguir órgãos para crianças é muito mais difícil do que para adultos e muitas acabam falecendo. Eu vi um potencial muito grande da tecnologia para resolver esse problema. Minha vida hoje é trabalhar para que isso se torne realidade”, ele conta.
Por meio do Programa de Bolsas Líderes Estudar, da Fundação Estudar, Gabriel conseguiu uma oportunidade de fazer um doutorado na Universidade de Groningen, na Holanda. Ele encontrou na Fundação o suporte que precisava para estudar fora e iniciar uma nova fase da sua carreira como pesquisador.
A trajetória estava planejada, mas o que Gabriel ainda não sabia era que como pesquisador ele ainda enfrentaria muitos desafios no caminho para seu objetivo principal.
“A TissueLabs vêm de uma série de razões que me fizeram enxergar que, na academia, não seria possível desenvolver esse projeto”, explica.
Segundo ele, para que um remédio passe a circular no mercado, da pesquisa à aprovação, gasta-se em torno de US$ 2,5 bilhões. Desenvolver a tecnologia necessária para a impressão de órgãos iria exigir o equivalente a cerca de 15 anos de todo o orçamento da FAPESP.
Gabriel então logo percebeu que, para tirar sua ideia do papel, precisaria deixar a academia e o exercício da profissão para se tornar empreendedor.
“No setor privado, em uma startup, você está muito mais focado em desenvolver uma solução”, ele enfatiza.
Para criar coração artificial, é preciso desenvolver o método e a tecnologia para imprimir válvulas cardíacas, músculos cardíacos e vasos sanguíneos, que são os três principais tecidos deste órgão. No entanto, viu que, conseguir o investimento necessário não seria fácil.
“É um projeto com um custo muito alto. Na época, imagina, eu e o Emerson éramos duas pessoas sem acesso a capital. E se você fosse pedir dinheiro de investidor para algo assim, de cara eles dariam risada. Por isso decidimos começar pelo básico”, explica.
O MVP da empresa surgiu na forma das chamadas “biotintas”, que são o material base para a impressão de tecidos. Eles submeteram seu projeto ao Pipe, programa de Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas, da FAPESP. Com a aprovação, em 2019, os sócios começaram o desenvolvimento, com o engenheiro Emerson responsável pelo hardware e Gabriel cuidando da parte médica.
Parecia um começo perfeito, até perceberem que não existia mercado nacional para as tintas que eles lançaram.
Para resolver seu problema de desenvolver um produto que ninguém usaria, eles partiram para a criação das bioimpressoras e o apelo ao mercado internacional. Em seis meses desenvolveram sua primeira impressora patenteada, a lançaram em 2020 e logo receberam dezenas de propostas de grupos de pesquisa em todo o Brasil.
“Isso foi muito legal porque a gente conseguiu transformar a startup em algo mais viável e trazer para o Brasil uma tecnologia que praticamente não existia. Passamos de dois a três grupos de pesquisa trabalhando com o bioimpressão para até 30”.
Em 2021, para expandir ainda mais o negócio, eles mudaram a sede da TissueLabs para a Suíça. Hoje, eles estão operando com clientes em mais de 25 países, oferecendo as impressoras, os materiais e o software que juntos formam a plataforma referência na fabricação de tecidos.
Junto a toda essa operação, eles mantêm a pesquisa científica, utilizando um modelo de negócio autossustentável.
“O modelo híbrido, ou dual business, é nosso maior desafio e ao mesmo tempo nosso maior diferencial”, diz o empreendedor.
Parece complicado, mas é simples: a plataforma de vendas das impressoras e biotintas gera o capital necessário para manter a empresa e sustentar a pesquisa. Os resultados da pesquisa, por sua vez, são utilizados na melhora dos produtos e serviços oferecidos pela plataforma.
“Durante os primeiros anos das startups de biotecnologia tem um certo vale da morte ali, que a gente conseguiu resolver com esse modelo”, explica.
Atualmente, Gabriel e Emerson estão em uma nova rodada de investimentos, com o objetivo de levantar em torno de US$ 3 milhões, que serão utilizados na segunda etapa da empresa. Ela consiste no avanço da impressão dos tecidos necessários para um coração.
Este será o foco de 2024 e dos próximos três a cinco anos. Depois de avançar na produção de válvulas, músculos e vasos, eles entrarão na terceira fase, que permitirá a impressão do coração completo.
“Nossa meta inicial era ter um protótipo em 10 anos. Queremos que ele possa ser utilizado para a experimentação e que, depois, passe por um período normal de trials. Esperamos que chegue ao paciente logo em seguida”.
“Eu acredito que a pessoa, quando inicia uma carreira, precisa entender que ela não pode fazer tudo”, reflete Gabriel. Como muitos, o empreendedor encontrou propósito nas suas dificuldades e foco na sua experiência.
“Esse negócio de querer fazer do mundo um lugar melhor é bastante vago, mas cada um pode fazer em uma área específica. Desenvolver tecidos cardiovasculares e um coração para transplante é o que eu posso fazer. É no que estou focando a minha vida. Se eu conseguir alcançar isso, eu tive uma razão para existir”, conclui.
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