Bússola

Um conteúdo Bússola

Elas no Poder: a questão de gênero implicada na Lei de Alienação Parental

Como uma lei criada para proteger crianças e adolescentes tem sido usada de forma distorcida, reforçando desigualdades de gênero e colocando em risco denúncias de violência

 (skynesher/Getty Images)

(skynesher/Getty Images)

Bússola
Bússola

Plataforma de conteúdo

Publicado em 29 de setembro de 2025 às 10h00.

Por Adriene Neves e Dayana Morais*

A Lei de Alienação Parental, de 2010, surgiu com o propósito de proteger crianças e adolescentes em situações de disputa familiar. A intenção era evitar que um dos genitores manipulasse os filhos contra o outro, garantindo a coparentalidade e colocando crianças e adolescentes no centro da discussão.

A ideia, à primeira vista, parecia estar alinhada ao princípio da proteção integral, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas como acontece de maneira recorrente nas políticas públicas, há consequências indesejadas.

Na prática, a lei passou a ser utilizada de forma distorcida, especialmente em casos de violência doméstica. Diversas mulheres que denunciaram abusos contra si ou contra seus filhos foram acusadas de alienação parental e perderam a guarda, ficando afastadas do convívio familiar em um momento de extrema vulnerabilidade. Em vez de proteger as crianças, a legislação abriu brechas para que denúncias legítimas fossem desqualificadas. 

Esse debate voltou a ocupar espaço nos noticiários recentemente, impulsionado também pela aprovação recente do chamado “ECA Digital” e pelas discussões sobre a adultização de crianças e adolescentes, que evidenciam como o sistema jurídico precisa ser constantemente revisitado para garantir, de fato, a proteção da infância.

No contexto internacional, o Brasil é um dos únicos países que se utiliza da teoria “Síndrome da Alienação Parental (SAP)” e versa uma legislação apenas a ela. Em 2022, peritos da ONU apelaram ao governo do Brasil para eliminar a lei, justificando que “a lei levou à proliferação da aplicação da teoria da alienação parental pelos tribunais de família – apesar da ausência de justificação clínica ou científica para tal”. 

A ONU não está sozinha: o Conselho Nacional de Saúde, o Conselho Nacional de Direitos Humanos e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente também são favoráveis a sua revogação.

No Brasil a discussão segue acontecendo

No Congresso Nacional, a discussão sobre o tema consegue unir pólos opostos da política: o Senado aprovou na Comissão de Direitos Humanos pela relatoria da Senadora Damares Alves (Republicanos) um parecer favorável à revogação. 

Já na Câmara, um projeto similar das deputadas do PSOL Fernanda Melchionna, Sâmia Bomfim e Vivi Reis também avança, aguardando ser pautado na CCJ. A convergência entre bancadas tão distintas revela a gravidade dessa discussão e a percepção de que a manutenção da legislação, tal como está, pode colocar em risco os direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

Sob a ótica de gênero, os efeitos da lei são graves

Em disputas de guarda, a alegação de alienação parental tem funcionado como um instrumento para silenciar denúncias de violência sexual e doméstica. Relatos de mães que procuram proteger seus filhos acabam desqualificados e reinterpretados como estratégias de manipulação, reforçando estereótipos de que mulheres mentem ou exageram em suas acusações. 

Esse cenário gera uma vulnerabilidade ainda maior para as mulheres, que são frequentemente as principais vítimas de violências dentro do contexto familiar, muitas vezes junto de seus filhos. 

Quando decisões judiciais sobre guarda são tomadas sem respaldo técnico adequado, há o risco de reforçar desigualdades de gênero e de deslegitimar as denúncias de violência. 

Retrocesso na Lei

A Lei de Alienação Parental, nesse sentido, não representa uma inovação no ordenamento jurídico, mas sim um retrocesso ao deslocar a centralidade da discussão da criança e do adolescente para o conflito entre os pais. 

Como destaca a nota técnica do NUDEM/SP, a norma acaba por silenciar aqueles que deveriam estar no foco da proteção, fragilizando o princípio da prioridade absoluta previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). 

Assim, em vez de assegurar a escuta qualificada e a proteção integral, a lei corre o risco de perpetuar injustiças e invisibilizar os reais interesses das crianças e adolescentes.

Faz-se necessário reforçar que o Estatuto da Criança e do Adolescente já estabelece diretrizes sólidas para a defesa dos direitos da infância e da adolescência. 

O papel de qualquer política pública deve ser o de se adaptar continuamente às realidades sociais, garantindo condições de proteção e de bom viver para a população. 

Reconhecer que a Lei de Alienação Parental tem produzido mais danos do que soluções não significa retroceder, mas sim fortalecer o ECA e reafirmar o compromisso do Brasil com a proteção integral. 

Revogar essa legislação é um passo indispensável para que crianças e adolescentes tenham seus direitos respeitados, e para que mães em situação de violência não sejam mais criminalizadas por tentar proteger seus filhos.

O Brasil já dispõe de instrumentos legais robustos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Maria da Penha, que garantem mecanismos de proteção e priorizam o interesse da criança, tornando a Lei de Alienação Parental não apenas desnecessária, mas perigosa. Revogar essa norma é, portanto, reafirmar o compromisso com a proteção integral, o fortalecimento da escuta especializada e a defesa da vida e do bem estar de mulheres, crianças e adolescentes.

*Adriene Neves - Porta Voz de Combate a Violência e Articuladora Política na Elas no Poder

*Dayana Morais - Gerente de Articulação Política na Elas no Poder

 

Acompanhe tudo sobre:Política

Mais de Bússola

Empresa de tecnologia aposta em ‘software premium’ para gestão de PMEs 

Opinião: a Geração Alpha precisa olhar para o ensino técnico

Baterias começam a virar requisito para investimento em energia solar – e empresas já notaram

Gente&Gestão: você sabe o que é liderança intencional?