Protestos: países democráticos enfrentam um distanciamento entre o eleitor e os governantes mesmo antes da pandemia isolar a população ainda mais (Jean-Paul Pelissier/Reuters)
Mariana Martucci
Publicado em 9 de setembro de 2020 às 15h55.
Última atualização em 9 de setembro de 2020 às 16h05.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso cometeu um ato de estadista, reconheceu um erro. Ato contínuo, errou de novo. Ao apontar a aprovação da reeleição em 1996 como um equívoco, não avaliou a forma como se deu nem propôs um caminho correto para tentar corrigir a antiga falha.
Na época da aprovação da PEC da reeleição, muitos sugeriram que se ouvisse o maior interessado nas consequências que viriam depois, como dizia o Conselheiro Acácio. FHC achou que era ele o maior interessado e não ouviu o povo, este sim o grande candidato a pagar a conta.
Ao colocar o erro na pauta do dia, FHC não avança no quesito essencial: perguntar se o povo quer ou não continuar a eleger seus governantes. Hoje, quando todos se locupletam de forma ampla, geral e irrestrita com a recandidatura, ele insinua um discurso para acabar com o instituto da reeleição pelo mesmo caminho que a criou: via Congresso. Esse tipo de comportamento passou a marcar o PSDB como um partido elitizado e distante do povo.
Os tucanos estão fora do poder desde 2003. E podem ficar mais quatro anos a se autodepenar se o presidente Jair Bolsonaro encontrar o caminho orçamentário para substituir o auxílio emergencial, domar a inflação das últimas semanas, retirar o país da recessão e encontrar alguma brecha para a retomada econômica. Não é tarefa fácil, mas ele ganhou sem praticamente nada a seu favor. Por isso, não é bom duvidar de sua capacidade.
Bolsonaro venceu a eleição com 57 milhões de votos num país com mais de 210 milhões de habitantes. É um líder minoritário: teve apoio de cerca de 38% do total de eleitores brasileiros, na casa de 148 milhões. Esse fenômeno se repete em diversos países democráticos.
Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump teve menos votos populares do que a candidata democrata Hillary Clinton, numa disputa de quem era o menos rejeitado. Trump ganhou no colégio eleitoral e governa da minoria, pela minoria, para a minoria. O brexista Boris Johnson repete a fórmula num governo que divide a Inglaterra em muitos temas. A Itália segue erguendo ruínas políticas a cada montagem de governo para competir com a paisagem do Coliseu.
A alemã Angela Merkel é uma sobrevivente que vai encolhendo ao longo do tempo com a ascensão de grupos radicais e xenófobos, depois de a Europa ter enfrentado a migração de países do Oriente Médio e da África. Seu vizinho francês, Emmanuel Macron, tem pesadelos com os coletes amarelos, de origem suburbana mas ação midiática nas avenidas iluminadas por câmeras e flashes de celulares em Paris.
Nada, nem ninguém, nos une.
Claro, uma ditadura ou um regime autoritário com apoio de grupos fundamentalistas podem relativizar qualquer discurso, mas essa é outra história.
Os países democráticos enfrentam um distanciamento entre o eleitor e os governantes mesmo antes da pandemia isolar a população ainda mais. E as redes sociais aumentaram o poder de corrosão desta relação. Manuel Castells aponta que uma mensagem negativa é cinco vezes mais eficaz em sua influência do que a positiva. Há um oceano de ataques em períodos eleitorais. Veremos ainda mais esse fenômeno nas próximas eleições enquanto não se institui uma responsabilização ou controle das plataformas. Os engenheiros do caos não param seu trabalho. E as eleições da era do Zoom serão ainda mais frias do que foram no passado, com a substituição dos comícios pela convenção virtual.
Hoje, não há grandes líderes mundiais que rompam com a crise da representação. Verdade é que, mesmo no passado, era difícil que eles surgissem: Winston Churchill foi contestado durante toda sua carreira, e só foi chamado a ser primeiro-ministro quando muitos achavam que sua carreira havia terminado. E perdeu a eleição depois de ganhar a Segunda Grande Guerra.
Atualmente há mais barreiras a construções de líderes majoritários, principalmente pelo crivo direto da opinião do cidadão. Este exige cada vez mais, e manifesta sua discordância publicamente todo o tempo, cobrando justificativa e resposta imediata. Essa democracia participativa veio para ficar. E o eleitor está muito mais disposto a questionar, seja aos líderes, seja às instituições, seja à imprensa. Todos foram para o paredão do BBB virtual na qual a democracia está a se transformar.
Vamos continuar a procurar grandes líderes que nos unam, mas devemos conviver cada vez mais com as diferenças. Esse equilíbrio é o grande desafio a ser superado pelos políticos e candidatos a líderes nos próximos anos.
* Analista Político da FSB