Storytelling é sobre maximizar tensão e conflitos (Prostock-Studio/Getty Images)
Bússola
Publicado em 27 de abril de 2022 às 16h00.
Última atualização em 27 de abril de 2022 às 16h15.
Por Kleber Wedemann*
O termo “grand prix” foi usado pela primeira vez para descrever uma corrida de automóvel, em 1901, no lendário Grande Prêmio Francês de Le Mans. Quase 50 anos depois, o primeiro Grande Prêmio de Fórmula 1 aconteceu no autódromo de Silverstone, em maio de 1950. Ali, era dada a largada (ops…) para um dos mais relevantes cases de marketing da história, e o início de um dos esportes mais populares e rentáveis do planeta.
De 1974 a 2017, o “negócio” da Fórmula 1 foi dirigido pelo inglês Bernie Ecclestone, que, após uma bem-sucedida passagem pelo esporte como chefe de equipe, fundou a “Formula One Constructors Association (Foca)”. Este foi, sem dúvida, um ponto de inflexão importantíssimo para o esporte e para a comunicação: Bernie foi o pioneiro em negociar direitos televisivos da F1 e inovou com os formatos de ativação dos autódromos, carros e macacões dos pilotos.
No entanto, Bernie não percebeu sinais preocupantes, como a perda massiva de audiência global e o desinteresse de novos promotores de eventos (corridas) em levar os GPs para seus países. Também não deu importância à necessidade de renovar o público. Numa de suas inúmeras declarações polêmicas, em 2014, disse que “preferia ter um velho rico como público-alvo”, já que “jovens não têm dinheiro e, portanto, não interessam à F1.”
Com 89 anos, inúmeras propostas recebidas e uma aventura malsucedida com um fundo de investimento, ele resolveu vender a F1 ao grupo americano Liberty Media. Foi aí que teve início um case incrível de content marketing.
A primeira questão que a Liberty precisava resolver, ainda em 2016, era a baixa audiência da F1 nos Estados Unidos. O “action plan” da Liberty? Posicionar a F1 como uma empresa de conteúdo. Dois anos depois, a Liberty anunciou um acordo com a Netflix para a docuserie Drive to Survive. No início, a repercussão foi muito pequena, houve grande resistência de pilotos e equipes em aceitar participar, e as duas das principais equipes, Ferrari e Mercedes, decidiram ficar de fora.
Era o momento do “plot twist” da vida real. Quem não se lembra do dilema de James Cameron que, para produzir Terminator 2, teve de lidar com a decisão de Arnold Schwarzenegger de que não faria mais papéis de vilão, o que o forçou a criar todo o arco de John Connor jovem? O resultado todos conhecemos: um dos melhores filmes da história do cinema.
Pois bem. Voltando a Drive to Survive: a Red Bull foi a única equipe de ponta a aceitar participar do programa. Isso forçou os roteiristas a focar na batalha pelo título, no “meio do grid” (as equipes médias) e no “fim do grid” (as equipes nanicas). Um playground para estes roteiristas, afinal, storytelling é sobre maximizar tensão e conflitos.
Um esporte como a F1 é perfeito para se trabalhar com essas dinâmicas pois cada piloto tem apenas UM outro piloto que pode competir em pé de igualdade — seu companheiro de equipe. Qualquer outro que venha a superá-lo, pode ser por “culpa” das diferenças dos carros. Mas se seu companheiro de equipe te superar, é porque ele, simplesmente, é melhor do que você.
Drive to Survive explorou esse conflito magistralmente. Foram criados dois campeonatos para a audiência: o campeonato mundial e o campeonato dentro das equipes. Isso criou uma dinâmica fascinante entre os companheiros de equipe: Verstappen e Ricciardo, na Red Bull; Hamilton e Bottas, na Mercedes, e Leclerc e Vettel, na Ferrari. Para o público, o resultado na tela ficou incrível.
Depois das dinâmicas entre os pilotos, eles criaram as dinâmicas entre as equipes. Afinal de contas, com dez equipes disputando milésimos de segundo, chegar em uma posição diferente daquela planejada pode significar milhões de dólares a mais (ou a menos) em seus orçamentos. Entram em cena os chefes de equipe e suas tensões: Christian Horner (Red Bull) e Toto Wolff (Mercedes), e Stefano Domenicali (Ferrari) e Zak Brown (McLaren).
O atual campeão mundial da F1, Max Verstappen, é um crítico do Drive to Survive, e recentemente acusou o programa de dramatizar demais a F1. Ele não está errado. Mas essa é exatamente a ideia por trás de tudo. São as mesmas estratégias que o UFC utilizou alguns anos atrás:
Interessante notar que apenas 20% do conteúdo de Drive to Survive é corrida. Por que isso acontece? Em um esporte em que os praticantes usam capacetes e macacões, possibilitar ao público que vejam seus rostos, que conheçam suas personalidades, vem fazendo muita diferença. Quanta diferença? Bem… a F1 estima que Drive to Survive trouxe 74 milhões de novos fãs para o esporte, e a temporada de 2021 foi a mais assistida e rentável da história da competição.
Os resultados são impressionantes! Desde o lançamento de Drive to Survive, em 2019, a F1 experimentou 45% de crescimento de audiência nos Estados Unidos, sete dos dez GPs mais assistidos da história são audiências dos EUA e o GP com maior público pagante nas arquibancadas foi o de Austin, em 2019, com 400 mil pessoas. Agora, a F1 está aumentando a aposta americana e, em 2022, teremos mais uma etapa no país: o GP de Miami. E, a partir de 2023, 3 corridas: Las Vegas vem aí!
Todo esse sucesso foi traduzido em receita. O valuation da F1 subiu de U$ 8 bilhões para U$ 13 bilhões em três anos (63% de aumento). Além disso, a receita de anunciantes aumentou exponencialmente com empresas americanas: Oracle, Salesforce e Qualcomm são alguns exemplos de empresas que entraram despejando muitos dólares no esporte.
O que é mais interessante: hoje em dia, a Netflix paga royalties de licenciamento de Drive to Survive para a F1. Em essência, a F1 recebe dividendos, por ser um dos melhores comerciais da história da comunicação. Brilhante, não? Por isso, não custa nada repetir: “content is the new black”! Se você ainda não descobriu o que o poder do storytelling pode fazer pela sua marca, acho melhor você se mexer, na velocidade de quem busca uma pole position!
*Kleber Wedemann é marketing and communications director for Latam, Caribbean, US SMB and TMT at SAS
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