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Big techs nos meios de pagamento? Só sob as regras do Banco Central

Se empresas de tecnologia oferecem serviços financeiros fora da regulação vigente, passam a se beneficiar de uma assimetria regulatória injustificada

BCB criou incentivos à inovação e salvaguarda aos usuários (Heinz-Peter Bader/Reuters)

BCB criou incentivos à inovação e salvaguarda aos usuários (Heinz-Peter Bader/Reuters)

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Publicado em 8 de junho de 2022 às 16h10.

Última atualização em 9 de junho de 2022 às 09h35.

Por Diogo R. Coutinho e Beatriz Kira

Em sua missão de estruturar o mercado de meios de pagamento brasileiro, ambiente catalisado por novas tecnologias e por crescente volume de transações, o Banco Central (BCB) vem se esforçando para criar condições para reduzir os traços de elevada concentração bancária no país. Ao longo dos últimos anos, o BCB criou incentivos para a entrada e atuação de novos agentes inovadores (conhecidos como fintechs), ao mesmo tempo que estabeleceu salvaguardas necessárias para mitigar riscos a usuários e ao sistema financeiro como um todo.

Nesse cenário, observa-se mais recentemente o avanço de grandes empresas de tecnologia em relação aos serviços de pagamento. A entrada das chamadas big techs — que atuam nos mais diversos setores, incluindo redes sociais, aplicativos de mensageria e serviços de busca online, entre outros — tem o potencial de ampliar ainda mais a concorrência no setor. Mas é imprescindível que tais empresas sejam devidamente autorizadas pelo BCB, seguindo regras estabelecidas para a prestação adequada e segura de serviços de pagamento, tal como ocorreu com a Facebook Pagamentos Brasil.

A lei dos arranjos de pagamento (Lei nº 12.865/2013) viabilizou a criação de um ambiente para a atuação e prestação de serviços de pagamento por instituições não financeiras (denominadas instituições de pagamento), incluindo a figura do Iniciador de Transação de Pagamento (ITP).

Uma empresa que atua como ITP presta serviço de iniciação de transação de pagamento, mas não gerencia a conta de pagamento, tampouco detém os fundos transferidos na prestação do serviço. Ou seja, o iniciador de pagamento é uma modalidade de instituição de pagamento regulada que conecta o pagador à instituição provedora da conta do cliente, mas não participa do fluxo financeiro na transação. Por exemplo, quando uma pessoa compra um produto pela internet, o iniciador de pagamento poderá pedir à instituição financeira que transfira os fundos diretamente da conta do cliente para a conta do varejista.

A intermediação de pagamento exige o compartilhamento de dados entre diferentes agentes do sistema financeiro, o que requer e justifica a adoção de medidas de salvaguarda e certas vedações por parte do BCB. Isto é, há necessidade de autorização para operar e a imposição de obrigações, incluindo regras relativas à interoperabilidade, solidez, não discriminação e proteção à privacidade de usuários. Vale dizer: para assegurar que a atividade ocorra de forma segura e de acordo com a moldura regulatória do sistema de pagamentos brasileiro, o serviço de iniciação de pagamento só pode ser oferecido por empresas autorizadas e supervisionadas pelo BCB sob a forma de ITP.

A admissão de empresas não autorizadas pelo BCB para atuarem como iniciadoras de pagamento — seja na modalidade peer to peer (P2P), seja na modalidade peer to merchant (P2M) —, incluindo por meio de plataformas controladas por big techs, implicaria riscos concretos não apenas para usuários de seus serviços (incluindo usuários finais e varejistas) mas também ao sistema financeiro.

Não é à toa que o Banco Central proíbe expressamente, por exemplo, que instituições de pagamento, na prestação de serviço de iniciação de transação de pagamento, usem, armazenem ou acessem dados de usuários “para outra finalidade que não seja a prestação do serviço de iniciação de transação de pagamento expressamente solicitado pelo usuário final”.

No caso de big techs que passem a intermediar pagamentos, os riscos do ponto de vista de proteção de dados pessoais são especialmente preocupantes. Considerando a complexidade dos ecossistemas digitais nos quais as big techs operam, bem como a capilaridade dos serviços por elas oferecidos, o volume de dados pessoais coletados é ainda maior, bem como o potencial de que eles sejam combinados e utilizados para fins diversos daqueles que ensejaram a coleta.

Autoridades brasileiras já manifestaram preocupações relacionadas ao compartilhamento de dados entre serviços controlados por empresas big techs, o que, mais uma vez, se torna mais sensível quando tais empresas passam a atuar também em arranjos de pagamento. Tais cuidados são também importantes à luz da Lei Geral de Proteção de Dados, principalmente das regras e princípios que exigem que o tratamento dos dados seja feito levando em conta requisitos como finalidade e necessidade e a exigência de informar e obter o consentimento prévio do titular.

Caso big techs passem a integrar arranjos de pagamento sem autorização do BCB para atuarem como ITPs (na modalidade inadequada de prestadoras de serviços de rede, por exemplo), seriam agravadas também preocupações relativas à resiliência e à proteção do sistema financeiro de forma mais ampla. Isso porque ITPs regulados pelo Banco Central também estão sujeitas a regras relativas à política de segurança cibernética, bem como a normas para prevenção de crimes de lavagem de dinheiro.

A moldura regulatória do BCB para abertura do mercado e em resposta a inovações tecnológicas visa assegurar a isonomia entre agentes regulados de diferentes portes, poder de mercado e escopos em termos de atividade econômica, levando em consideração a natureza e a magnitude dos riscos que cada player representa.

Se grandes empresas de tecnologia passarem a oferecer serviços financeiros à margem da regulação aplicável a ITPs, passarão a se beneficiar de uma assimetria regulatória injustificada e contraproducente.

Tais empresas já possuem considerável poder de mercado, que poderia alavancar na oferta de serviços de pagamento. Não há razão regulatória, portanto, para que não se enquadrem nas modernas regras criadas pelo BCB para ITPs, que já foram concebidas para dar flexibilidade e acomodar a entrada de atores inovadores e disruptivos. É essencial, portanto, que a oferta de serviços de pagamento por empresas de tecnologia seja condicionada à autorização pelo BCB de funcionamento para a prestação de serviços de iniciação de pagamentos.

Diogo R. Coutinho é professor de direito econômico da USP, e Beatriz Kira é doutora em direito econômico pela USP e pós-doutoranda na Universidade de Oxford

 

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