O impeachment de Collor foi a origem da dinâmica política que acabou levando ao passamento da Nova República (José Cruz/Agência Senado)
Bússola
Publicado em 4 de julho de 2022 às 15h20.
Há um certo quê de Velho do Restelo no lamento permanente contra a polarização política, que a narrativa aponta como acontecendo agora numa escala inédita. E à lamentação costuma seguir-se uma fúria santa, o apelo à solução mágica: cada um busca eliminar da polarização o incômodo “outro”. Mais pedregosa é a missão do autodenominado centro, que se impôs em algum momento a tarefa de remover da cena não um, mas os dois polos.
Talvez não haja sintoma mais definitivo da agonia da Nova República, cujo pilar central, ou um dos, era a premissa de que todos os grupos políticos teriam o direito de existir e disputar o poder. E, naturalmente, revezarem-se nele. Mas os fatos das últimas décadas acabaram revelando (como se precisasse ser revelado) que esse “direito universal” seria, na prática, não tão universal assim.
Tudo começou com o impeachment de Fernando Color de Mello, em que as evidências de um “crime de responsabilidade” formal eram ainda mais escassas do que viriam a ser no caso Dilma Rousseff. Collor não foi ejetado por eventuais crimes, mas por faltar-lhe base política, já que era “de fora” do bloco vitorioso em 1985. Bloco que vinha de fracassar espetacularmente nas eleições presidenciais de 1989, mas mantinha hegemonia no Congresso e na sociedade civil.
Quando a passagem do tempo der uma desbastada nas paixões que contaminam a análise histórica, ver-se-á aquele impeachment na origem da dinâmica política que acabou levando ao passamento da Nova República. Foi a semente da ideia, agora amplamente disseminada, de que vale tudo para eliminar o adversário da cena. O curioso, ainda que previsível, é a “defesa da Nova República” servir hoje para justificar exatamente o contrário dela.
A Nova República buscou substituir a autocracia por um regime democrático-constitucional em que o Legislativo fosse o palco para alcançar as maiorias e consensos possíveis. Hoje, recebe-se com naturalidade que esse papel seja transferido ao Judiciário, o único dos três poderes não eleito diretamente pelo povo. E se você mexe na realidade ela também o transforma: o Supremo Tribunal Federal virou um mini-Congresso.
A Nova República veio para restaurar a imunidade parlamentar e proteger os mandatos contra as cassações arbitrárias. Hoje, a cultura do cancelamento contaminou a representação política e cassar mandatos virou algo aceitável e até rotineiro. O aspecto mais estupefaciente é o próprio Legislativo receber com passividade a invasão de suas atribuições. Nos tempos do regime militar, pelo menos ouviam-se bons discursos de protesto quando mandatos eram cassados.
Os exemplos são muitos. Um evidente está na criminalização da liberdade de expressão, a pretexto de proteger contra as “ideias erradas”. E por aí seguimos. A situação que vai se criando é confortável para quem, em certo momento, está em situação vantajosa na batalha permanente para a supressão do adversário. Aí ouvem-se, do lado mais fraco, os apelos ao respeito aos direitos e garantias previstos na Carta. Quando o vento muda, mudam de lado os argumentos. E com a maior naturalidade.
*Alon Feuerwerker é Analista Político da FSB Comunicação
Este é um conteúdo da Bússola, parceria entre a FSB Comunicação e a Exame. O texto não reflete necessariamente a opinião da Exame.
Siga a Bússola nas redes: Instagram | LinkedIn | Twitter | Facebook | Youtube
Veja também
Como essa agência na Ucrânia usou tecnologia para combater a desinformação
Tributarista defende suspensão da redução do IPI e detalha impactos na ZFM
Bússola Live – convenções, pesquisas e o que mais importa a três meses das eleições