Sede do Federal Reserve (Fed), o Banco Central dos Estados Unidos (Leah Millis/Reuters)
André Martins
Publicado em 25 de março de 2021 às 16h02.
Última atualização em 25 de março de 2021 às 19h13.
Pacote fiscal americano é inclusivo e expansivo, e o FED dá prioridade ao emprego. A alta das taxas de juros longas americanas já valoriza o dólar, o que contribuiu para a alta da Selic. Essa aposta vai orientar o foco dos mercados de renda fixa e acionário nos próximos anos, inclusive no Brasil.
Todos temos acompanhado de alguma forma a discussão do grande pacote fiscal votado há algumas semanas nos Estados Unidos. Ele é inclusivo e expansivo. Ele prevê a distribuição de recursos para os desempregados e para aqueles com atrasos no pagamento do aluguel ou das prestações de imóveis.
Também prevê um cheque de US$ 1,4 mil para toda pessoa solteira que em 2019 tenha ganho menos de US$ 75 mil, ou família com renda de até US$ 112,5 mil e, em valores decrescentes, para aquelas com renda até US$150 mil. Além disso, aumentou-se a dedução do imposto para quem tem crianças, transformando essa dedução em uma renda mínima para as famílias cujo imposto seja menor do que certo valor.
O pacote distribui ainda dinheiro para as escolas enfrentarem a covid-19 e para estados e municípios financiarem policiais, bombeiros e despesas de saúde. No total serão US$ 1,9 trilhão de demanda adicional, o que é mais do que o PIB brasileiro e quase 2,5% do PIB mundial.
Há preocupação de que o aumento de demanda causado pela injeção quase imediata de tantos recursos públicos seja exagerado e possa causar uma elevação persistente da inflação. É o que disse o ex-secretário do Tesouro Americano Larry Summers.
É o que reflete a subida da inflação implícita nos títulos do Tesouro Americano indexados à inflação (TIPS) e o que tem motivado o mercado a aumentar a curva de juros de médio e longo prazo.
A Secretária do Tesouro, Janet Yellen, e o presidente do FED (o banco central) Jerome Powell, por outro lado, não têm demonstrado preocupações dessa ordem. Para eles, a inflação que houver será passageira, mesmo se for acompanhada de rápido crescimento do PIB e queda do desemprego.
O FED tem publicado estudos mostrando que a relação entre desemprego e inflação (a chamada curva de Phillips) é hoje mais fraca do que no passado, permitindo que o banco seja mais agressivo em suas políticas para promover o emprego, sem que isso traga um risco inflacionário excessivo.
O FED tem dado muita ênfase ao seu mandato de estimular o emprego, junto com aquele de combater a inflação. Esse “duplo mandato” deriva da alteração em 1977 da lei de criação do FED, que explicitou o compromisso legal da instituição de promover de forma efetiva os objetivos de máximo emprego, estabilidade de preços e taxas de interesse de longo prazo moderadas.
Mas essa é a primeira vez em que o FED tem posto a promoção do pleno emprego em pé de igualdade ou na frente da preocupação com a inflação. Essa é uma mudança importante, que os mercados ainda estão digerindo, porque é difícil ter certeza de que a inflação não subirá com a queda do desemprego, apesar de isso ter acontecido em anos recentes.
É possível que o mutismo da inflação apesar da queda do desemprego entre 2008 e 2018 se deva a que o emprego propriamente dito ainda não tivesse se recuperado completamente e a um efeito composição, em que o emprego de menor remuneração cresceu mais rápido que os outros, reduzindo o crescimento da massa agregada de salários.
Além disso, o dólar apreciou de 2016 em diante, ajudando a diminuir a pressão dos bens importados na inflação. Ainda assim, quando o desemprego entre a população de baixa renda caiu e a imigração diminuiu em 2018/19, os salários começaram a subir, mesmo para ocupações de baixa qualificação, o que aliás trouxe pessoas de volta para a força de trabalho.
O quadro do emprego se alterou fortemente com a pandemia, inclusive com diminuição da força de trabalho. Mas o objetivo do Tesouro e do FED de trazer rapidamente o mercado de trabalho para níveis de 2019 ou melhor é ousado e pode “acordar” a curva de Phillips quando os mercados de trabalho apertarem.
O desafio pode ser ainda maior porque a covid-19 trouxe uma aceleração nas mudanças tecnológicas que pode ter reduzido de maneira permanente a demanda por certas atividades, especialmente no varejo e restaurantes, devido, por exemplo, à expansão do comércio eletrônico e ao menor uso de escritórios.
Assim, para recuperar o emprego ou se exagera na demanda pelas atividades antigas ou se facilita a realocação da mão de obra em novos setores (por exemplo de restaurante para entregas ou setores de tecnologia). Realocações tendem a criar fricções se não forem facilitadas (e.g., por treinamento), o que tende a aumentar o desemprego e diminuir a oferta, exigindo mais apoio por parte do FED para manter o PIB, com riscos de superaquecimento da demanda, mais inflação e estagnação.
Esses riscos causaram grande preocupação ao fim da segunda guerra mundial, com o fim da produção de bens militares e a volta dos soldados com algum dinheiro.
Uma resposta a esse desafio foi o programa educacional aberto aos que voltavam da guerra, a chamada G.I. Bill, que franqueou a universidade a um grande número de jovens (à exceção dos negros), e aumentou muito o capital humano e a produtividade dos EUA. Em paralelo, criou-se um sistema de estímulo ao consumo, que ia do crédito barato à mudanças anuais nos modelos de automóvel.
O plano do governo americano agora se inspira também em treinar as pessoas e estimular a demanda — não pelo consumo, mas via investimentos em infraestrutura que acelerem a transição energética, expandindo a internet e o uso de novas tecnologias de comunicação como o 5G, para aumentar a produtividade da indústria americana, inclusive na produção de bens.
A ambição é grande e pode ter grandes implicações políticas, fortalecendo a economia e atendendo a base que elegeu o atual presidente, assim como podendo favorecer significativa fração dos que votaram em Trump. A aposta política é que panela cheia acalma os eleitores.
Há muitos desafios nessa estratégia. Primeiro a velocidade de implementação: se demorada pode trazer frustração, se muito rápida aumenta o risco de inflação. Segundo, um estímulo de demanda só é duradouro se ajudar no aumento de produtividade, o que requer dar ferramentas para a força de trabalho se adaptar às novas exigências, com treino e o plano de infraestrutura não criar ineficiências. Terceiro, o financiamento desses gastos não será fácil, especialmente de programas que devem durar vários anos como o de investimentos.
No pós-guerra, esse problema foi em parte contornado pela disposição do FED de financiar o Tesouro, algo que hoje pode ser bem mais difícil, apesar de os bancos centrais do Japão e Austrália estarem fazendo isso.
Hoje, parte do plano de US$1,9 trilhão está sendo financiada usando o “colchão de liquidez” que o Tesouro Americano acumulou nos últimos anos. E a intenção é de que parte do plano de infraestrutura será financiado por altas pontuais de impostos sobre empresas e famílias de alta renda.
O financiamento do gasto americano a mercado tenderá a sugar recursos do resto do mundo. A subida das taxas de juros longas americanas já está valorizando o dólar e foi um dos fatores elencados pelo Banco Central do Brasil na recente alta da Selic e na aceleração da normalização parcial da política monetária no País.
Olhando para frente, há que se ver se o governo conseguirá que o Congresso aprove o plano de infraestrutura e seu financiamento com novos impostos. E se as centenas de decisões para garantir a eficiência desse plano serão tomadas com sucesso, permitindo a economia crescer de maneira continuada, gerando lucro para as empresas e renda permanente para as famílias americanas.
Essa aposta do governo americano será, portanto, a principal força orientando os mercados de renda fixa e acionário nos próximos anos, inclusive no Brasil.
(artigo publicado originalmente no site O Especialista)
* Joaquim Levy é engenheiro naval pela UFRJ, com mestrado em economia pela FGV e doutorado em economia pela Universidade de Chicago. É diretor de Estratégia Econômica e Relações com Mercados no Banco Safra. Entre outros cargos, integrou o FMI, foi secretário-adjunto de Política Econômica do Ministério da Fazenda; Economista-Chefe do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e secretário do Tesouro Nacional. Foi vice-presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, secretário de Fazenda do Rio de Janeiro, diretor do Banco Mundial e presidente do BNDES.
Siga Bússola nas redes: Instagram | Linkedin | Twitter | Facebook | Youtube
Mais da Bússola: