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A democracia nos EUA representa a maioria?

A jornalista Cláudia Trevisan analisa por que, mais uma vez, maior votação popular pode não se traduzir em vitória no Colégio Eleitoral

Casa Branca (Alex Proimos from Sydney, Australia/Wikimedia Commons)

Casa Branca (Alex Proimos from Sydney, Australia/Wikimedia Commons)

Isabela Rovaroto

Isabela Rovaroto

Publicado em 5 de outubro de 2020 às 13h29.

Última atualização em 14 de outubro de 2020 às 14h37.

A pergunta do título pode parecer absurda para a maioria dos leitores, mas o processo de escolha do presidente americano leva a uma dissociação crescente entre a vontade popular manifestada pelo voto e o resultado da decisão indireta do Colégio Eleitoral, que tem a palavra final. Só para lembrar: dois dos presidentes que ocuparam a Casa Branca nos últimos 20 anos perderam a votação popular, um evento que não ocorria desde 1888. Ambos os candidatos que venceram em número de votos, mas não levaram a eleição, eram do Partido Democrata.

Na reta final para o pleito de 3 de novembro, há quase um consenso entre analistas de que o democrata Joe Biden receberá mais votos do que o presidente Donald Trump nacionalmente. A dúvida é se isso se traduzirá em vitória no Colégio Eleitoral, que é um reflexo imperfeito de votações em cada um dos 50 estados do país.

Nate Silver, uma estrela entre estatísticos americanos, prevê que o ex-vice-presidente só estará seguro se obtiver vantagem de pelo menos cinco pontos percentuais em relação a Trump no voto popular. Isso equivale a 7,5 milhões de votos, em um cenário no qual 150 milhões de pessoas compareçam às urnas. Abaixo disso, há chances de o presidente se reeleger.

Pesquisa Reuters/Ipsos divulgada domingo colocou Biden 10 pontos à frente do atual ocupante da Casa Branca, mas ainda há quatro semanas para o pleito. A infecção de Trump pelo coronavírus, revelada sexta-feira, é uma recordação de que surpresas fazem parte do calendário eleitoral.

Na última disputa, em 2016, a democrata Hillary Clinton teve 2,9 milhões de votos a mais que Trump, mas não levou a Casa Branca em razão do Colégio Eleitoral, que dá peso desproporcional a estados rurais, menos populosos e mais brancos, os quais tendem a ser mais conservadores. No ano 2000, o democrata Al Gore venceu George W.Bush por 500 mil votos, mas perdeu a corrida, que acabou decidida pela Suprema Corte.

Os defensores do Colégio Eleitoral argumentam que ele deu estabilidade à democracia americana. Mas se a dissociação entre voto popular e resultados eleitorais persistir, o modelo se transformará em fonte de instabilidade e conflito. E todos os dados indicam que o país caminha nessa direção. Um número cada vez maior de americanos se concentra em grandes áreas metropolitanas e vê o peso de seu voto diminuir em relação aos que moram em regiões rurais.

Estado menos populoso dos EUA, Wyoming vota em candidatos republicanos à presidência desde 1964. A Califórnia, com a maior população, é um sólido estado democrata. Os 39,5 milhões de californianos elegem 55 delegados no Colégio Eleitoral, o que dá um representante para cada grupo de 718 mil habitantes. Os 578,8 mil moradores do Wyoming são representados por três delegados, ou um para cada 192,9 mil pessoas. Isso significa que os eleitores do estado têm um peso 3,7 vezes maior que os da Califórnia.

“Nosso sistema político cada vez mais permite que a minoria prevaleça sobre a maioria”, escreveram os cientistas políticos E.J. Dionne Jr., Norman Ornstein e Thomas Mann no livro One Nation After Trump (Uma Nação Depois de Trump, em tradução livre).

Como muitos dos elementos do sistema político dos EUA, a distorção reflete a preocupação em equilibrar os direitos dos estados e o peso da vontade popular que marcou a elaboração da Constituição dos EUA, no fim do século 18. O problema é que esse compromisso tem levado à perda de representatividade da maioria, o que certamente não era o desejo dos “pais fundadores”.

Ornstein e seus coautores observam que o percentual de americanos que vivem em regiões metropolitanas passou de 63%, em 1960, para 84%, em 2010. O maior desequilíbrio no peso dos votos das regiões urbanas e rurais ocorre no Senado, a casa do Parlamento desenhada para representar os estados e atuar como poder moderador da Câmara dos Deputados, que representaria o voto popular.

O cientista político David Birdsell, do Baruch College, prevê que, em 2040, 70% dos americanos viverão nos 15 Estados mais populosos (de um total de 50). Isso significa que esse universo elegerá só 30 dos 100 senadores - são dois por Estado. Os 70 restantes serão escolhidos pelos 30% que viverão em estados com menor população.

O partido que controla o Senado tem o poder de aprovar as nomeações do presidente para juízes da Suprema Corte, uma instituição que define questões fundamentais da sociedade americana, do direito ao aborto ao porte de armas.

“Os republicanos controlam a Casa Branca, o Senado, a Suprema Corte e a maioria dos governos estaduais. Apenas a Câmara dos Deputados está sob controle democrata”, escreveu o fundador do site Vox, Ezra Klein, em artigo publicano no New York Times no início do ano. “Ainda assim, os democratas não ganharam a maioria dos votos apenas nas eleições para a Câmara dos Deputados. Eles também ganharam mais votos nas últimas três eleições para o Senado. Eles ganharam mais votos nas eleições presidenciais de 2016 e de 2000.”

Segundo ele, os republicanos representam uma base eleitoral cada vez menor, mas com vasto peso político. O aprofundamento do divórcio entre vontade popular e representação levará a uma crise política real, prevê Klein. Para evitá-la, ele propõe uma agenda “democratizante”, que incluiria o fim do Colégio Eleitoral. Mas é difícil imaginar que o Partido Republicano, beneficiário das distorções atuais, dê aval a qualquer mudança que reduza seu poder.

*Ex-correspondente do jornal “O Estado de S.Paulo” nos EUA e na China, autora dos livros “Os Chineses” e “China – O Renascimento do Império”, e mestre pela Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins.

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