"Tecnologias e ferramentas importam, mas são sempre as pessoas que desempatam" (Laurence Dutton/Getty Images)
Plataforma de conteúdo
Publicado em 21 de março de 2024 às 15h18.
Por Sergio Katz*
O que a combinação imprevisível da perspectiva de um ex-vendedor de jornais, um fotógrafo, uma PhD em engenharia, uma TikToker, dois cineastas e um jogador de basquete pode trazer para o seu negócio? Muito. Foi com essa sensação que saí do SXSW, festival de tendências e inovação, cuja 38ª edição acaba de acontecer em Austin - EUA.
"Somos tão bons quanto o nosso último produto", Lisa Su – PhD em engenharia elétrica que se apaixonou por semicondutores muito antes deles se tornarem indispensáveis – resumiu assim a dificuldade de navegar num ambiente de negócios cada vez mais frenético e competitivo.
Para ela, que está prestes a completar 10 anos como CEO da AMD (e para dezenas de outros palestrantes do festival) , a inteligência artificial é – dentre todas as rupturas tecnológicas que pressionam as organizações – a que de fato vai mudar o jogo. Com um poder transformador equiparável ao da chegada da eletricidade, dos PCs ou da internet, a IA se tornará cada vez mais onipresente. Algo irreversível e inevitável, e que trará oportunidades e riscos em grandes proporções.
Mas, independentemente da tecnologia, negócios sempre foram e sempre serão sobre resolver problemas das pessoas, lembraram Michael Dell e Dwyane Wade em apresentações diferentes. Dell, que estampa seu sobrenome em milhares de computadores pelo mundo, já era data-driven muito antes do termo virar moda. Aos 16, como vendedor de jornais, percebeu que pessoas que se mudavam de casa ou se casavam tinham maior propensão a assiná-los. Abandonou então as ligações telefônicas aleatórias de venda. Passou a coletar dados de cartórios e hipotecas e, com eles, a converter muito mais vendas através de malas-diretas. Construiu, em seguida, um império baseado na venda direta de computadores.
Já Wade, astro da NBA aposentado em 2020, ao observar o box do banheiro de sua filha recém-nascida, notou que dentre as dezenas de marcas lá presentes, não havia uma única sequer pensada para as características da pele e do cabelo de bebês pretos. Fundou assim sua marca Proudly, atendendo às necessidades de sua comunidade com produtos e práticas que efetivamente a priorizavam.
Tecnologias e ferramentas importam, mas são sempre as pessoas que desempatam com perspicácia, sensibilidade e originalidade que nenhuma máquina ainda consegue emular.
E em meio ao debate exaustivo em torno da inteligência artificial, foi da inteligência natural de Su, Dell, Wade, dos cineastas Daniel Kwan e Daniel Scheinert, da influenciadora Dylan Mulvaney e do fotógrafo Imran Nuri que extrai alguns “prompts” que acredito que podem fazer a diferença nos negócios.
Afinal, como lembrou Dell, é importante ter um ótimo produto, mas são as pessoas e a cultura que fazem uma organização prosperar, ir além, se manter competitiva.
Dwyane Wade, relembrando sua experiência como atleta e sugere que empresas e líderes precisam saber identificar onde são e onde não são bons. Segundo Wade, é o reconhecimento dos nossos talentos e fraquezas que dá a clareza do que (e de quem) é preciso para nos complementar.
Foi à vocação que Lisa Su também atribuiu seu sucesso longevo como CEO. Concentrando esforços e recursos em torno daquilo que a AMD sabe fazer melhor - construir chips de alta performance - Su capitaneou uma virada expressiva nos negócios da companhia.
Daniel Kwan e Daniel Scheinert, diretores de "Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo", também responsabilizaram a vocação pelo sucesso deste vencedor de 7 Oscars. Reconheceram como um de seus principais talentos a habilidade de organizar o caos. E revelaram que, na produção do longa-metragem, pela primeira vez em 15 anos de carreira, se sentiram no centro do ikigai: a intersecção entre o que você tem a oferecer de melhor, o que você ama fazer, o que o mundo precisa e o que fará você ganhar dinheiro.
Histórias humanizam pessoas, marcas e negócios.
Geram empatia, conexão, movem as pessoas. Têm o poder de, segundo os diretores de "Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo", mudar trajetórias.
Bons líderes são em geral, igualmente bons em articular o futuro em torno de uma visão. São habilidosos ao fazer perguntas, provocar conversas e conectar pessoas em torno de boas histórias.
É com propósito e boas histórias que o astro aposentado da NBA Dwyane Wade conecta seus negócios com a comunidade preta dos Estados Unidos. É também com eles que Wade dá sentido a negócios aparentemente tão desconexos como uma marca de vinhos, uma de cuidados para bebês e uma produtora de vídeo.
Para milhões de crianças pretas e periféricas, como foi Wade, há limites muito estreitos até onde o futuro pode chegar. E não deve haver. Wade envolve consumidores, espectadores e a sociedade em torno dessa visão para escrever novos finais para as histórias dessas crianças.
Dylan Mulvaney é uma atriz e influenciadora americana, ativista pelos direitos de pessoas trans. Em abril do ano passado, Mulvaney, cuja audiência nas redes sociais é expressiva, foi contratada pela Bud Light nos EUA para promover um torneio de basquete patrocinado pela cerveja.
A ação com a influenciadora provocou reações transfóbicas e ameaças de boicote à marca Bud Light por parte de americanos conservadores. Numa atitude controversa, a AB-Inbev decidiu suspender os conteúdos com Mulvaney e cancelar seu contrato com a atriz. No SXSW, Mulvaney esteve em um painel onde falou sobre a atitude da companhia.
Para Mulvaney e Aaron Walton, debatedor no mesmo painel, não é mais possível nos dias de hoje ter um negócio ou uma marca sustentável sem endereçar a comunidade LGBTQIA+. Porque 30% da geração Z se identifica como parte da comunidade.
E 70% dos adultos não LGBTQIA+ querem que suas marcas de preferência manifestem seu apoio à comunidade. Além disso, 3,9 trilhões de dólares em poder de compra hoje estão nas mãos da comunidade LGBTQIA+.
Para Mulvaney, marcas que querem ser aliadas da comunidade LGBTQIA+ precisam ir além do falar. Precisam fazer. Investir recursos de verdade para entender a comunidade, contratar gente da comunidade, ter pessoas da comunidade onde as decisões são tomadas.
Líderes notáveis têm suas ações como lastro para seus discursos. Eles lideram pelo exemplo.
Em 2022, o fotógrafo Imran Nuri dirigiu mais de 24.000 quilômetros em 84 dias, perguntando a 1.000 estranhos nos 48 estados dos EUA "o que eles sabem hoje que gostariam de ter sabido antes". Entre seus aprendizados, Nuri notou que, apesar de diferenças aparentes muitas vezes gritantes entre as pessoas, a experiência humana é surpreendentemente similar.
Temos mais coisas em comum do que coisas que nos separam. Uma dessas é a armadilha de perseguir um script perfeito para a vida, de querer acertar sempre.
Erros muitas vezes ensinam mais que os acertos. A experiência traz essa sabedoria para quem domina a tecnologia da inteligência natural. E traz também a capacidade de se manter no controle, mesmo em momentos de caos.
"Não procure acertar 10 vezes cada vez que for fazer 10 coisas. Cometer erros é parte do jogo. Experimente para aprender. Nós mesmos tentamos entrar no mercado de smartphones e deu errado. Tudo bem cometer erros. Só não está tudo bem em cometer sempre os mesmos erros.", disse Michael Dell em seu painel.
Vale para gestores, mas também para marcas e negócios. Como disse a documentarista Cheryl Houser em seu painel, sem estar aberto ao erro e à desaprovação, é difícil estabelecer conexões relevantes.
"As empresas precisam parar de recompensar comportamentos errados", disse a atriz e influenciadora Dylan Mulvaney ao se referir ao episódio do cancelamento de sua parceria com a marca Bud Light. "Valores são valores. Eles não podem mudar. Eles podem até custar caro, mas não podem mudar.", completou Mulvaney.
Falando sobre outro tema, mas no mesmo universo dos valores, Daniel Kwan alertou para o uso da inteligência artificial:
"Toda conveniência acarreta descartabilidade. Temos que ter cuidado com a história que vamos contar a partir dessa nova conveniência, que é a inteligência artificial. Essa tecnologia não pode ser usada para tornar seres humanos descartáveis. Pergunte-se sempre o porquê de você estar usando a inteligência artificial."
Para a ativista digital Joy Buolamwini, ninguém está imune de ser prejudicado por sistemas de IA E esses sistemas também não podem simplesmente se apropriar do trabalho de criadores sem remunerá-los – preocupação também levantada no SXSW pelo jornalista Josh Constine, em conversa com Peter Deng, head do ChatGPT na OpenAI.
Buolamwini defende uma auditoria cultural e social contínua sobre os sistemas de inteligência artificial, para minimizar vieses, discriminações e violações éticas.
Já Daniel Kwan defende que a inteligência artificial precisa ser usada para criarmos o mundo em que desejamos viver sem flexibilizar valores. Mesmo que o custo disso seja aparentemente alto.
No relato de Daniel Kwan e Daniel Scheinert sobre a produção de "Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo", o prazer e a diversão da dupla com tudo o que foi feito é mais que evidente.
Em tempos de crise e confusão, relatam os daniéis, nos sentimos na obrigação de fazer as coisas o mais divertidas possível. Tentamos trazer um espírito divertido para o dia a dia, para as pessoas que participam de toda a cadeia de produção dos filmes. Isso melhora o nosso produto.
Michael Dell, parece concordar. Quando perguntado sobre porque – depois de acumular fortuna e realizações – ainda persiste, Dell respondeu: "Porque me divirto."
Diversão dá resultado, melhora o ambiente, melhora processos e melhora o produto final. Ela não faz só o destino, mas faz toda a jornada valer mais a pena.
Que a inteligência natural encha a artificial de talento, surpresa, emoção e ética.
Vai ser divertido.
Sergio Katz, estrategista, vice-presidente de planejamento na AlmapBBDO.
Siga a Bússola nas redes: Instagram | Linkedin | Twitter | Facebook | Youtube