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WhatsApp pode ameaçar estabilidade no Brasil, diz pesquisadora de Harvard

Para Claire Wardle, polarização torna Brasil mais vulnerável aos efeitos de conteúdos deliberadamente falsos — mas há meios para combater isso

Claire Wardle, do First Draft: o Comprova vai combater a desinformação na campanha eleitoral (First Draft/Divulgação)

Claire Wardle, do First Draft: o Comprova vai combater a desinformação na campanha eleitoral (First Draft/Divulgação)

Talita Abrantes

Talita Abrantes

Publicado em 1 de julho de 2018 às 09h42.

Última atualização em 2 de julho de 2018 às 10h56.

São Paulo - Durante a eclosão do conflito étnico que levou ao genocídio de Ruanda em 1994, quando mais de 800 mil pessoas foram brutalmente assassinadas, o rádio teve um papel preponderante, em um primeiro momento, para incitar o ódio e a violência dos hutus contra os tutsis, e, posteriormente, para disseminar propaganda contra os hutus.

O cenário do Brasil em 2018 é, evidentemente, muito diferente do de Ruanda em 1994. Mas o potencial de plataformas como o WhatsApp ecoa paralelos com o cenário que favoreceu à crise social nesse país da região central da África, na visão da pesquisadora britânica Claire Wardle, diretora de pesquisa do projeto First Draft News, ligado à Universidade de Harvard e comprometido com o combate à circulação de conteúdos deliberadamente falsos na internet.

Segundo a pesquisadora, dois elementos tornam o Brasil especialmente vulnerável aos efeitos do compartilhamento de rumores: a elevada polarização política e o fato de o país ainda ser uma democracia relativamente jovem.

"Minha preocupação é do papel do WhatsApp no Brasil. Se as informações compartilhadas lá não forem checadas, haverá pessoas acreditando em informações que podem colocar em risco a estabilidade do país", afirma em entrevista a EXAME.

Na semana passada, Claire veio ao Brasil para lançar o projeto Comprova, uma iniciativa do First Draft que contará com uma coalizão de veículos brasileiros — EXAME entre eles — para checar e combater a circulação de informações falsas  durante as eleições de 2018.

Em 2016, o grupo liderado pela pesquisadora organizou um projeto semelhante durante as eleições francesas. Na ocasião, foram checadas mais de 70 informações imprecisas durante 10 semanas e 30 redações se envolveram com o trabalho.

Veja trechos da entrevista que ela concedeu a EXAME pouco antes do lançamento da plataforma:

EXAME: A senhora não gosta do termo “fake news” para descrever o fenômeno de informações falsas circulando pela internet. Por quê?

Claire Wardle: Primeiro, essa palavra se tornou sem sentido porque não descreve a complexidade do ecossistema de informação. Por exemplo, muitos dos problemas que vemos hoje é de imagens genuínas mas recicladas [publicadas fora de contexto], então, elas não são falsas. Logo, o termo não descreve realmente aquilo que nos preocupa.

E, segundo, esse termo tem sido usado para atacar a imprensa tradicional ao redor do mundo. Pesquisas mostram que o público tende a acreditar que as notícias falsas são da mídia tradicional. Eu defendo que jornalistas não usem esse termo porque isso está sendo empregado para nos atacar e, portanto, minar nosso trabalho perante o público.

Pessoas mal-informadas sempre existiram e isso sempre foi uma ameaça para a democracia. Qual é o problema agora?

A misinformation [desinformação ou falta de informação] sempre existiu. Se a minha mãe compartilha algo no Facebook e não sabe que isso é falso, isso é misinformation. Nós sempre tivemos isso, as pessoas compartilham rumores sem saber que eles são falsos. O que nós temos agora é a disinformation [conteúdo deliberadamente falso], quando alguém cria ou compartilha informações falsas para causar algum dano. Em uma era em que a tecnologia barateou e tornou mais fácil criar um site ou manipular uma foto ou um vídeo, é muito mais fácil criar e compartilhar conteúdos deliberadamente falsos. Nós sempre tivemos esse problema, mas nunca uma tecnologia que tornasse tão fácil a criação desse tipo de conteúdo e seu compartilhamento.

No Brasil, há algumas iniciativas do Legislativo para combater o compartilhamento de conteúdo deliberadamente falso na internet. Até que ponto, leis são efetivas nesse caso?

A dificuldade é não ter definições claras. É sempre muito perigoso querer regular a liberdade de expressão porque é muito raro que algo seja 100% falso, pois, geralmente, é apenas impreciso. Nesse espectro, como dizer onde fica a linha? É muito difícil distinguir entre o que é misinformation [desinformação ou falta de informação] e disinformation [um conteúdo deliberadamente falso].

No caso de pornografia ou de discurso de ódio, a definição é clara e há leis específicas contra isso na Europa, por exemplo. Mas quando se está lidando com um conteúdo impreciso, como regular isso? Quem vai ser o árbitro do que é ilegal? Minha preocupação é que, se regularmos isso, podemos cair em uma espécie de censura que afeta todos os tipos de informação.  O combate aos conteúdos deliberadamente falsos deve ser feito por meio da educação do público e de melhorar as plataformas. Há muito o que podemos fazer, mas não por meio de regulação ou de criar leis contra isso.

Até que ponto educar o público é, de fato, efetivo?

A educação demora um bom número de anos para mudar uma cultura. Mas da mesma forma que dizemos às pessoas que elas não podem jogar lixo pela janela do carro porque isso polui o meio ambiente ou que não se pode dirigir depois de ingerir bebidas alcóolicas, é dizer que vivemos em uma ambiente de informação e que é preciso ter responsabilidade sobre aquilo que se posta no Facebook, que o celular é uma ferramenta muito poderosa que vem com uma responsabilidade.

Qual o papel da imprensa nesse processo?

A imprensa está sob ataque hoje e isso tem sido feito de maneira deliberada por políticos que não querem uma imprensa forte atuando como fiscalizadora. Nesse ambiente, a competitividade do jornalismo se torna uma de suas fraquezas. Os veículos de imprensa devem trabalhar de maneira conjunta, se ajudando mutuamente.

Também tem a ver com ser mais transparente no processo de reportagem. O público não sabe que jornalistas checam suas fontes, que há sempre um editor que recheca nosso trabalho, que, para se publicar algo, é preciso no mínimo duas fontes.  O público não entende todo processo. Nós deveríamos explicar melhor por que nossa informação é confiável, mas somos muito ruins em fazer isso. O resultado disso é que o público não entende por que somos diferentes dos outros produtores de conteúdo.

Como o Comprova vai funcionar?

O Comprova é formado por 24 redações em todo o Brasil e todos checarão diferentes assuntos porque haverá muita informação imprecisa e deliberadamente falsa circulando durante as eleições. Nenhuma redação poderia dar conta disso sozinha. Se todas as redações fizerem isso de maneira separada, estarão correndo atrás das mesmas coisas.

Todos os dias, cada redação irá monitorar diferentes tipos de plataformas problemáticas, como grupos no Facebook ou no WhatsApp, contas no Instagram e perfis no Twitter a fim de encontrar conteúdos problemáticos e alimentar um site central com relatórios que serão checados por outros membros da coalizão. Nada será publicado antes que três redações concordem com a reportagem, algo que deve melhorar a qualidade do que é produzido. Isso vai ser publicado no site do Comprova e nos sites de nossos parceiros para expandir o alcance do conteúdo para muitas pessoas no Brasil.

Como foi a experiência nas eleições da França, em 2016?

Foi muito positiva. Foi um projeto piloto, fizemos isso durante 10 semanas com cerca de 30 redações e publicamos cerca de 70 matérias. Fizemos uma pesquisa depois, e o público afirmou que confiava no projeto porque havia muitas redações trabalhando junto. Já os jornalistas ficaram muito satisfeitos por melhorar as próprias habilidades e porque não havia erros, já que cada um estava assumindo a responsabilidade pelo trabalho do outro. Então, o jornalismo como um todo melhorou.

O Brasil é considerado um dos países mais ativos em redes sociais do mundo. Isso torna o país mais vulnerável?

O Brasil é muito polarizado. Qualquer país com esse perfil se torna mais vulnerável porque, nesse contexto, as pessoas tendem a não ser críticas com relação a informações que endossem seu ponto de vista ou que atacam o outro lado. Como você disse, os brasileiros gastam muito tempo nas redes sociais e no WhatsApp, e checam as informações com menos frequência. Além disso, como o Brasil é um país muito grande, há diferentes níveis de alfabetização digital e nem todos aprenderam as lições sobre em quais fontes confiar.

A democracia de vocês é muito jovem. Veja que a democracia dos Estados Unidos, apesar de ser uma das mais antigas do mundo, é muito vulnerável aos conteúdos deliberadamente falsos. Minha preocupação é que o fato da democracia brasileira ser relativamente jovem potencializa a vulnerabilidade à circulação de rumores. Nós vimos isso durante a greve dos caminhoneiros. Há muitos paralelos com Ruanda, onde o rádio foi muito poderoso. Minha preocupação é do papel do WhatsApp no Brasil, se as informações compartilhadas lá não forem checadas, haverá pessoas acreditando em informações que podem colocar em risco a estabilidade do país.

Como checar informações no WhatsApp, já que as mensagens circulam em grupos fechados?

Um caminho é levar o público a enviar dicas sobre o que eles estão recebendo. É criar uma rede pelo país de pessoas que estão em grupos e tratá-las como uma espécie de embaixadores do programa. Precisamos ser muito estratégicos sobre como coletamos os conteúdos que circulam no WhatsApp e como compartilhamos as informações confiáveis.

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