Fachada do Carf. Agência Senado, 2015 (André Corrêa/Agência Senado)
Da Redação
Publicado em 2 de fevereiro de 2023 às 06h00.
Última atualização em 3 de fevereiro de 2023 às 16h34.
É estranho observar que temas que interessam a toda sociedade ficam cada vez mais segregados, protegidos por uma redoma de juridiquês e expressões que para a maioria das pessoas não quer dizer nada. Voto de qualidade? Se o voto é de qualidade, não deveria ser algo ruim, deveria? Pois é. Mas o que é o tal “voto de qualidade” e por que tanta discussão a respeito?
Vamos voltar um passo.
Imagine que você tem uma empresa que faz barrinhas de cereais. Lógico, você precisa entender qual a tributação aplicável aos seu produto, então, olha para ele e pensa: “certamente estamos diante de uma preparação alimentícia obtida a partir de flocos de cereais”. Perfeito. Quem poderia discordar?
Neste caso, a Receita Federal. E a discordância vem acompanhada de um alto preço. Por entender que a sua barrinha na realidade é um “produto de confeitaria, sem cacau”, o imposto sobre produtos industrializados (IPI) sairia de zero para 5%. E agora? Quem poderia resolver esse impasse?
Neste caso, o CARF. O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, é um órgão colegiado, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, que tem por finalidade julgar os recursos de processos administrativos. O CARF é composto por representantes da Fazenda e dos contribuintes, em condições paritárias: ou seja, nas turmas de julgamento, existem a mesma quantidade de julgadores que representam o Fisco e julgadores que representam os contribuintes. Em número par, não é difícil imaginar que assuntos muito polêmicos podem muito bem terminar em empate. E agora? O que acontece?
Agora vamos explicar um pouquinho o que é o tal “voto de qualidade”. O voto desempate, ou voto de minerva, seria sempre dos presidentes das turmas e câmaras, que não por acaso são justamente os representantes do Fisco. Sim, o voto desempate em uma situação complexa de interpretação da norma tributária seria a favor da própria Fazenda.
Foi assim até que a Lei 13.988 de 2020 mudasse a regra e deixasse expresso, através do novo art. 19E da Lei 10.522/02, que em caso de empate no julgamento do processo administrativo não se aplicaria o voto de qualidade, resolvendo-se a favor do contribuinte. Pena que durou pouco.
Menos de três anos depois e, para espanto geral, por Medida Provisória com validade imediata, o Governo retomou o instituto, e novamente temos o voto de qualidade. Uma das justificativas? Um prejuízo anual de R$ 60 bilhões aos cofres públicos graças às decisões pró-contribuinte em caso de empate. Não deixa de ser muito curioso ver o governo atribuir “suposto prejuízo” às decisões de um órgão que tão somente deve interpretar e aplicar a melhor técnica.
Mais curioso ainda é perceber como este mesmo órgão encontra-se sobrecarregado de trabalho: o estoque de processos administrativos no CARF vem oscilando em torno de 100 MIL desde 2018. Haja norma complexa para dar conta de tanta interpretação divergente.
Neste caso, onde estaria o problema? No CARF? Nos contribuintes que contestam as interpretações da Receita? No voto desempate? Ou nas próprias normais?
No Brasil, está mais do que comprovado que criar normas tributárias confusas, ruins e invariavelmente inconstitucionais é um ótimo negócio. Aos contribuintes restam anos de discussões administrativas, seguidos de anos (e mais anos!) de discussão judicial. Quando resolvido? Modula-se. Espera, eu vou traduzir. Modulação dos efeitos é quando o STF decide que algo é inconstitucional, mas não muito. Leva-se em consideração o potencial efeito nas contas públicas dos entes que criaram a norma que nunca poderia ter existido. Então a norma, por mais errada que sempre tenha sido, só é errada a partir da data x. Antes de x? Vamos esquecer essa história, deixa pra lá, você não quer quebrar o Estado, quer?
Não adianta discutir voto de qualidade quando o verdadeiro problema está na complexidade da interpretação de regras tributárias que quase ninguém entende direito. Não adianta discutir o papel de um órgão julgador de recursos enquanto tudo, absolutamente tudo, por mais simples que possa parecer, necessariamente precisar da intervenção deste órgão para uma conclusão. E, a propósito, a barrinha que eu citei aí em cima, é produto de confeitaria. Foi o CARF que falou.
*Maria Carolina Gontijo é advogada, diretora de tributos da Moore Brasil, professora e palestrante. Para não passar raiva sozinha, explica direito tributário nas redes sociais pelo perfil @duquesadetax no Twitter, no Instagram e no TikTok