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Vídeo da OMS foi tirado de contexto para validar discurso de Bolsonaro

Alerta do diretor-geral, Tedros Adhanom Ghebreyesus, não muda defesa da Organização Mundial de Saúde sobre isolamento social

Adhanom Ghebreyesus: diretor-geral alertou sobre a necessidade de programas que pensem nos pobres durante a pandemia da covid-19 (/Denis Balibouse/Reuters)

Adhanom Ghebreyesus: diretor-geral alertou sobre a necessidade de programas que pensem nos pobres durante a pandemia da covid-19 (/Denis Balibouse/Reuters)

CC

Clara Cerioni

Publicado em 31 de março de 2020 às 19h57.

Última atualização em 31 de março de 2020 às 21h34.

Um trecho fora de contexto de uma fala do diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), no qual ele alerta para os impactos econômicos do distanciamento social, tem sido compartilhado nas redes sociais de modo a referendar a posição do presidente Jair Bolsonaro sobre o enfrentamento à pandemia do novo coronavírus, contrária à implementação do isolamento social. O alerta de Tedros Adhanom Ghebreyesus, no entanto, não significa que a OMS tenha deixado de apoiar o isolamento social como estratégia contra o novo coronavírus.

Em sua colocação, feita durante coletiva de imprensa da OMS no dia 30 de março, Adhanom pede que os governos levem em consideração os impactos econômicos que um lockdown pode ter sobre as pessoas mais pobres.

Ele respondia à pergunta de uma repórter da Índia sobre a crise humanitária que o país tem enfrentado em meio à pandemia. Na semana passada, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, impôs a 1,3 bilhão de habitantes a maior quarentena da história da humanidade.

“Alguns países têm um forte sistema de bem-estar social e outros não”, disse. “Os governos devem ter em conta esta população; se estamos fechando ou se estamos limitando a movimentação, o que vai acontecer às pessoas que têm de trabalhar diariamente e têm de ganhar o pão de cada dia?”, questiona o diretor-geral da OMS.

Devido à repercussão de sua fala, o diretor-geral da OMS esclareceu posteriormente, em sua conta de Twitter, que não quis dizer que os países não deveriam impor o distanciamento social para conter a disseminação da covid-19. Adhanom afirmou que os governos deveriam desenvolver políticas para proteger os mais vulneráveis.

“Cresci na pobreza e entendo essa realidade”, escreveu. “Peço que os países desenvolvam políticas públicas para garantir proteção econômica àqueles que não podem ganhar dinheiro ou trabalhar em meio à pandemia da covid-19. Solidariedade!”

A fala de Adhanom não representou uma mudança de postura da OMS em relação ao isolamento social, como as publicações do vídeo da coletiva nas redes sociais insinuam. Em resposta à mesma pergunta feita pela repórter indiana, o diretor do programa de Emergências de Saúde da entidade, Michael Ryan, reforça a importância dos lockdowns para a contenção da doença.

“Infelizmente, em algumas situações, neste momento os lockdowns são a única medida que os governos podem realmente tomar para conter este vírus”, disse Ryan. “É lamentável, mas essa é a realidade e precisamos explicar continuamente as razões para isso às nossas comunidades.”

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro com o propósito de mudar seu significado; que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Como verificamos

O Comprova consultou a transcrição oficial e o vídeo oficial da entrevista coletiva da OMS do dia 30 de março; além da conta oficial de Twitter de Adhanom e da OMS.

Quem publicou o vídeo do diretor-geral da OMS?

O vídeo fora de contexto da fala de Adhanom foi publicado no dia 30 de março às 16h19 com legendas em português no Twitter pelo usuário @RFGlau, que usou o trecho para justificar as opiniões de Bolsonaro em relação ao isolamento social. A conta de @RFGlau foi criada em março deste ano e usa a mesma foto de perfil de outros dois perfis suspensos, @RafaGlau e @RFLGlau.

O mesmo vídeo, com marca d’água de @RFGlau, foi republicado no mesmo dia pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e por seus filhos Carlos (vereador do Rio de Janeiro pelo Partido Social Cristão), Eduardo (deputado federal de São Paulo pelo PSL) e Flávio Bolsonaro (senador do Rio de Janeiro atualmente sem partido). Os deputados federais Osmar Terra (MDB-RS), Bia Kicis (PSL-DF) e Daniel Silveira (PSL-RJ) também divulgaram o clipe.

O vídeo foi reproduzido ainda no canal de YouTube do pastor Silas Malafaia, aliado de Bolsonaro.

O que Tedros Adhanom Ghebreyesus disse sobre isolamento social de pessoas mais pobres? Leia a transcrição completa:

Uma repórter da Índia fez a seguinte pergunta durante coletiva de imprensa da OMS direcionada ao diretor de Emergências de Saúde, Michael Ryan:

“Dr. Ryan, deve estar ciente de que a Índia, por causa de seu lockdown, está testemunhando uma crise humanitária sem precedentes sob a forma de movimento de migrantes de uma parte do país para outra. Eu entendo que você não gosta de comentar sobre decisões individuais de país, mas esta é uma crise humanitária sem precedentes. Qual seria o seu conselho para o nosso governo?”

O diretor do programa de Emergências de Saúde da OMS, Michael Ryan, respondeu o seguinte:

“Voltando ao que acredito ser a parte mais importante de sua pergunta, que é sobre os impactos das quarentenas, das restrições de movimento, número um: precisam ser vistas com muito cuidado; e dois: obviamente que, independentemente de sua intenção, são difíceis de serem aceitas pelas comunidades porque as pessoas precisam se movimentar e querem se movimentar pelas famílias, por razões econômicas e outras razões.

É importante que os governos se comuniquem de forma aberta e transparente às pessoas sobre as razões de as quarentenas, os fechamentos ou as restrições ao movimento estarem acontecendo porque elas colidem com a liberdade de movimento das pessoas. E se as pessoas precisam abrir mão de sua liberdade de movimento, precisam entender por que isso está acontecendo. Restrições ao movimento são lamentáveis em todas as situações. Ninguém quer que elas aconteçam, mas em situações nas quais você tem uma epidemia muito, muito intensa em uma parte do país e em outra parte do país não é tão intensa assim, você pode precisar implementar algum tipo de medida para, pelo menos, encorajar — às vezes é uma recomendação, às vezes é uma forte recomendação e às vezes é uma restrição na qual o transporte é suspenso.

Cada governo deve escolher o equilíbrio entre o que é recomendação para as comunidades e, em alguns casos, o que é uma quarentena forçada. Qualquer uma que seja escolhida é importante que a comunicação e a aceitação da comunidade estejam no centro da preocupação do governo. É impossível ter uma efetiva restrição de movimento sem que a comunidade esteja de acordo com aquela restrição de movimento.

E, como o Tedros Adhanom Ghebreyesus disse em seu discurso, quando tais medidas são postas em prática é excepcionalmente importante que essas medidas sejam realizadas não só com a aceitação da população mas também com os direitos humanos e a dignidade das pessoas afetadas no centro. Isso nem sempre é fácil, mas é o que deve ser o centro do objetivo do processo. Eu não estou falando especificamente sobre a Índia; estou falando sobre isso em termos gerais, mas penso que o que ele [Tedros Adhanom Ghebreyesus] fala é que essas medidas para toda a sociedade são difíceis, não são fáceis e estão prejudicando as pessoas.

Mas a alternativa é ainda pior se os países forem capazes de se afastar dessa abordagem. Se nós vamos nos afastar disso como estratégia para suprimir o vírus, temos de pôr em prática a saúde pública. A vigilância, o isolamento, a quarentena, as descobertas, a detecção. Temos de ser capazes de mostrar que podemos ir atrás do vírus, porque só os bloqueios não vão funcionar.

Mas, infelizmente, em algumas situações, neste momento, os lockdowns são a única medida que os governos podem utilizar. É preciso desacelerar este vírus e isso é lamentável, mas essa é a realidade e nós precisamos explicar continuamente as razões para isto às nossas comunidades”.

O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, complementou a resposta:

“Sobre a questão do chamado lockdown, talvez alguns países já tenham tomado medidas para o distanciamento físico, fechamento de escolas e prevenção de reuniões e assim por diante. Isso pode ganhar tempo, mas, ao mesmo tempo, cada país é diferente.

Alguns países têm um forte sistema de bem-estar social e outros não. Eu sou da África, como sabem, e sei que muitas pessoas têm de trabalhar todos os dias para ganhar seu pão de cada dia. Os governos devem ter em conta esta população; se vamos fechar ou limitar os movimentos, o que vai acontecer às pessoas que têm de trabalhar diariamente e têm de ganhar o pão de cada dia?

Então cada país, com base na sua situação, deve responder a esta pergunta. Não estamos vendo isso como um impacto econômico sobre um país, como uma média de perda do PIB, ou as repercussões econômicas. Temos de ver também o que significa para o indivíduo na rua, e talvez eu tenha dito muitas vezes: eu venho de uma família pobre e sei o que significa preocupar-se sempre com seu pão de cada dia, e isso tem de ser levado em conta.

Porque cada indivíduo é importante, e como cada indivíduo é afetado por nossas ações tem de ser levado em conta. É isso que estamos dizendo. Trata-se de qualquer país; não se trata da Índia; trata-se de qualquer país da Terra.

Mesmo o país mais rico da Terra pode ter pessoas que precisam trabalhar pelo seu pão de cada dia. Nenhum país é imune. Todos e cada país têm de ter a certeza de que isto é levado em conta”.

Viralização

Os vídeos foram publicados em canais com grande número de inscritos, como do presidente Jair Bolsonaro e de seus filhos. Juntos, os vídeos somam mais de 500.000 visualizações.

*Coalização de 24 veículos de comunicação, incluindo a EXAME, para verificar informações falsas que circulam pelas redes sociais sobre o novo coronavírus. Esta checagem foi realizada pela equipe da EXAME e do Estadão.

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