CORREDORES DA UERJ: dos 90 milhões de reais anuais necessários para manutenção da universidade, como limpeza, coleta de lixo e segurança, a instituição teve quitados pelo governo apenas 15 milhões (Veja Rio/VEJA)
Raphael Martins
Publicado em 19 de agosto de 2017 às 07h51.
Última atualização em 21 de agosto de 2017 às 18h15.
Rio de Janeiro – Dentre os inúmeros exemplos da falência do estado do Rio, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) é um caso extremo. Em seus corredores, alunos, professores e inúmeros cartazes repetem à exaustão que a instituição vive a pior crise em 66 anos de história. Sem receber salários, os professores estão em greve. Sem solução à vista, a instituição suspendeu o ano letivo.
A situação é dramática, por exemplo, no Laboratório de Pesquisas Clínicas e Experimentais em Biologia Vascular (Biovasc), do departamento de Biologia. O grupo atende casos de obesidade para evitar doenças correlatas, como hipertensão, diabetes e câncer. Se funcionasse a pleno vapor, de segunda à sexta, atenderia 1.000 pacientes por mês. Hoje, pode lidar com menos de 100 e só resiste porque tem fontes alternativas como uma linha de financiamento da farmacêutica Novartis.
Faltam 5 milhões de reais para terminar a construção de um novo prédio de quatro andares para o tratamento e linhas de pesquisa, especialmente com crianças e adolescentes. Aprovado em 2014, o projeto tinha orçamento de 16 milhões de reais. O prédio está erguido, mas faltou instalar os equipamentos, o ar condicionado, as bancadas, telefone, internet. “Eu tenho esperança que o prédio será terminado e atenderemos a população. A Faperj terá que fazer escolhas, mas escalonando haverá oxigênio para laboratórios voltarem a funcionar”, diz Eliete Bouskela, professora titular da UERJ e coordenadora do Biovasc.
Professores e servidores tinham até esta semana os salários de maio, junho e julho atrasados, como todo o funcionalismo público do estado do Rio. Com a licitação feita aos bancos para gerir a folha de pagamento dos funcionários públicos, vencida pelo Bradesco e que rendeu 1,3 bilhão de reais aos cofres do estado, o governo de Luiz Fernando Pezão conseguiu quitar a dívida. Ainda falta o 13º salário, que não tem previsão para chegar.
As principais fomentadoras de pesquisa sofrem para cumprir os financiamentos. O CNPq, ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, de Gilberto Kassab, deve aos pesquisadores 3 milhões de reais. A Finep, empresa pública de fomento à ciência, também ligada ao MCTI, deveria ter repassado 15 milhões de reais, segundo a universidade*.
Mas quem realmente afoga a pesquisa na UERJ é Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, a Faperj, ligada ao governo do estado. Estão atrasados repasses da ordem de 86 milhões de reais em apoio à pesquisa pela entidade somente à UERJ. A dívida da entidade com as universidades do estado chega a quase 500 milhões de reais. Os pesquisadores da universidade tiveram uma lufada de esperança em julho, quando a professora da casa Maria Isabel de Castro foi nomeada presidente da Faperj, com discurso de recuperação à capacidade de fomento.
Um mês depois, no início de agosto, ela foi exonerada do cargo, por conta da troca do secretário de Ciência e Tecnologia do Estado. Maria Isabel havia sido indicada por Pedro Fernandes, que pediu demissão em 2 de agosto, por atrasos aos pagamentos de servidores de sua pasta. O novo secretário é Gustavo Tutuca, que ainda mantém vaga a Presidência da entidade.
Desde sua criação em 1950, ainda de nome UDF, a UERJ acompanhou de perto a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como melhor do estado e uma das melhores no Brasil. Tem entre as referências na academia nacional a produção no campo do Direito. É hoje a 10ª melhor no país e tem no cartel de ex-alunos os ministros do Supremo Tribunal Federal Roberto Barroso e Luiz Fux. Teve no quadro de professores o ex-ministro do Supremo, Joaquim Barbosa.
A universidade é também pioneira na adoção do sistema de cotas no Brasil. A universidade reservou 50% de suas vagas no vestibular de 2003 para estudantes que cursaram o ensino médio em escolas da rede pública. Hoje são 20% para a rede pública, 20% para negros e 5% para pessoas com deficiência. Em meio aos problemas financeiros, até mesmo a procura pela UERJ sofreu um baque: de 80.000 inscritos passou para 37.000 na última edição. O número mostra que orgulho de fazer UERJ está em plena crise.
Recuperação?
O Rio de Janeiro passa por uma severa crise de arrecadação por ter confiado demais no crescimento do país no início dos anos 2010 e nos royalties do petróleo — e, claro, por uma sucessão de escândalos de corrupção. Além do preço do barril ter caído da antiga faixa de 100 dólares pela metade, a bacia do pré-sal não foi explorada a contento. A Petrobras, petroleira que até pouco tempo atrás deveria entrar com cota mínima de exploração em todos os campos da região, vinha em crise e dívida crescente pelo represamento do preço dos combustíveis durante o governo Dilma Rousseff. Sem caixa para exploração, o dinheiro previsto não entrou.
O petróleo representa cerca de 25% de tudo que o estado arrecada, segundo o secretário da Casa Civil do governo Pezão, Christino Áureo. Em valores nominais, os royalties despencaram de 12 bilhões para 4 bilhões de reais entre 2013 e 2016. Sem outras fontes de receita, os déficits se agravaram conforme o governo se endividava com o pagamento da previdência do funcionalismo público.
No Rio de Janeiro, as aposentadorias passaram de 10 bilhões de déficit para 12 bilhões entre 2015 e 2016. Nos últimos cinco anos, houve avanço da folha de pagamento da ordem de 60%. A previsão de rombo é de 22 bilhões de reais para 2017, depois de 17,5 bilhões no ano passado. Voltar a zerar os prejuízos, só em 2025, segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado. “Quando se teta com finanças de país, há mecanismos de mercado para repor essa diferença”, diz Áureo. “Um estado não tem como se financiar dentro desse déficit”.
O secretário afirma ainda que o governo estadual manteve os salários em dia na educação básica e no ensino fundamental e médio. Reconhece que a UERJ passa por dificuldades, mas afirma que os servidores estão agora recebendo seus salários. Os cortes, afirma Áureo, também se fizeram sentir na saúde e na segurança. “É um ciclo vicioso e horrível que forma o caldo de cultura que se instalou” diz.
Os números da crise impressionam. As 3.457 mortes violentas no primeiro semestre só não superam 2009, época em que as UPPs ainda podiam ser consideradas novidade. Quase 100 policiais militares foram mortos. De tempos em tempos, os duelos entre traficantes e policiais fecham escolas próximas às favelas. Até 10.000 crianças tiveram aulas suspensas. A rede pública de saúde impacta as esferas municipal, estadual e federal. Faltam vigilantes e materiais básicos.
No Hospital Estadual Getúlio Vargas, quase 70 médicos foram demitidos, segundo fontes do setor apontaram a EXAME. O secretário estadual de Saúde, Luiz Antônio Teixeira Júnior, admite uma redução de custeio de 1,3 bilhão de reais. No plano político, grandes expoentes do PMDB, como o ex-governador Sérgio Cabral e o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha estão presos. É no Rio também que hoje a Operação Lava-Jato está mais intensa.
“UERJ Resiste”
O slogan “UERJ Resiste” é visto nos murais e em grafites nas paredes. Na noite de segunda-feira 14, houve um evento de resistência, o “SuperaRio UERJ”. Mais de 200 alunos, ex-alunos, funcionários e professores lotaram a Capela Ecumênica da UERJ em um ato em defesa da universidade.
Organizado pelo deputado estadual Wanderson Nogueira (PSOL-RJ), transformou-se em palanque político contra o governo de Luiz Fernando Pezão, com a presença de representantes de partidos de esquerda do Rio, como PT, PCdoB e Rede. As deputadas federais Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Fátima Bezerra (PT-RJ), os deputados Wadih Damous (PT-RJ) e Alessandro Molon (Rede-RJ), além do senador Lindbergh Farias (PT-RJ) fizeram discursos, quase sempre seguidos de gritos de “Fora, Temer” e “Fora, Pezão”, além do “UERJ Resiste”.
“Tudo isso é uma consequência da falência do estado, que vai além do preço do petróleo e do roubo que houve. É da falta de planejamento das cadeias de produção para a arrecadação do estado”, afirma a EXAME a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ).
A dramaticidade do momento é tamanha que o evento reuniu ao mesmo lado os alunos e o reitor da universidade, Ruy Garcia Marques. Marques se faz presente, em especial, em defesa do projeto de lei que regula a autonomia econômica da UERJ. A reitoria luta por uma PEC que faria com que o dinheiro do Orçamento da universidade fosse obrigatoriamente transferido aos cofres em 12 parcelas, para que a administração gerisse da melhor maneira. Hoje, as contas são enviadas às secretarias da Fazenda e Ciência e Tecnologia e elas priorizam o que devem pagar. Para isso, o texto tramita na Alerj e foi protocolada uma ação no Supremo Tribunal Federal pela Rede Sustentabilidade para pleitear os chamados duodécimos.
“Talvez o governo acredite ser caro manter uma universidade do tamanho da UERJ, mas, na verdade, ela poderia ser um investimento para apoio na solução de seus problemas, por meio de conhecimento e desenvolvimento de políticas públicas”, diz o reitor em entrevista a EXAME. “A crise mostra que precisamos desenvolver alternativas de captação de recursos por doações ou incentivo fiscal. Podemos passar a fazer parte do pensamento dos empresários e ex-alunos que hoje são expoentes em diversas áreas”.
Ao longo da semana, o movimento de alunos ainda é intenso. A pós-graduação não para em estado de greve, pois implicaria em suspensão das poucas bolsas que restam. Alunos de graduação também circulam para atividades extracurriculares, como reuniões das atléticas e centros acadêmicos. Na quinta-feira à tarde, havia treino de um grupo de cheerleaders no auditório a céu aberto, mesmo com tempo chuvoso.
No mesmo dia, professores e funcionários chancelaram a continuidade da paralisação oficial em assembleias, mesmo com o acerto dos salários. “Os trabalhadores decidiram manter o movimento pela situação precária da universidade, que sofre com a falta de verbas de custeio e manutenção desde o ano de 2016, e com a falta de cumprimento das obrigações do governo do estado com as empresas terceirizadas que prestam serviços de limpeza, asseio, conservação, vigilância e operação do Restaurante Universitário, entre outros”, diz nota do Sindicato dos Trabalhadores das Universidades Públicas Estaduais do Rio.
As reclamações do sindicatos fazem menção ao custeio para operar a universidade, girando muito aquém do necessário. Dos 90 milhões de reais anuais necessários para manutenção da universidade, como limpeza, coleta de lixo e segurança, a UERJ teve quitados pelo governo apenas 15 milhões de reais em contratos, 16% do necessário. O Restaurante Universitário está fechado desde o início de 2017. As duas últimas empresas abandonaram o contratos vencidos por licitação porque nunca receberam pelos serviços. A UERJ contatou 50 empresas para uma nova licitação, mas decidiram ignorar o convite ou recusá-lo. Todas sabem que não há dinheiro para pagar.
O governo do estado aposta as fichas no Plano de Recuperação Fiscal. Nos corredores do campus Maracanã, funcionários confidenciaram à reportagem de EXAME que a manutenção da greve também foi bastante motivada pela desconfiança de que o estado volte a dar calote nos salários nos próximos meses. “A folha de pagamento deu esse respiro de 1 bilhão, mas, e agora, o que o Pezão vai fazer?”, diz um deles.
* Nota à redação: A Finep esclarece que não há atrasos nos repasses dos financiamentos à UERJ. A Finep tem hoje convênios com a universidade que totalizam 19 milhões de reais, dos quais 7 milhões já foram liberados. Dos 12 milhões de reais restantes, 1 milhão já está disponível para liberação nos próximos 30 dias. Os demais aguardam documentação a ser enviada pela UERJ.