STF: ministro Marco Aurélio Mello, relator do caso no STF, disse à Reuters que quer aparelhar o processo para levá-lo a julgamento do plenário (José Cruz/Agência Brasil/Agência Brasil)
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Publicado em 4 de agosto de 2017 às 09h44.
Brasília - O Supremo Tribunal Federal deve colocar em votação no plenário em breve uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) que irá decidir a quem cabe celebrar acordos de colaboração premiada e opõe as duas principais forças no combate à corrupção no país, o Ministério Público Federal e a Polícia Federal.
Esperando para ser apresentada em plenário pelo relator, ministro Marco Aurélio Mello, desde maio do ano passado, a Adin, proposta pela Procuradoria-Geral da República, pede ao STF que considere inconstitucional a previsão da lei 12.850, sobre organizações criminosas, que definiu, entre outros pontos, a colaboração premiada como um dos meios de obtenção de prova a ser usado pela polícia.
A ação movida pela PGR escancara uma disputa entre os procuradores da República e a PF por maior espaço nas investigações.
Aprovada em 2013, a lei sobre organizações criminosas deixa claro que as colaborações premiadas --ou delações, como prefere o Ministério Público-- são parte da investigação e um "meio de obtenção de prova", assim como escutas ambientais, as interceptações de comunicação, a infiltração policial, e outros meios citados.
Dessa forma, dizem os policiais federais, sendo a PF o órgão investigador, cabe sim a ela fechar acordos e, como diz a lei, levar ao juiz para que no final do processo decida se o colaborador merece ou não o benefício previsto legalmente --entre eles, a redução em até 2/3 da pena ou troca por restrição de direitos.
Do outro lado, o MP invoca o fato de ser o titular da ação penal para afirmar que a polícia não tem o poder de oferecer benefício a um colaborador ou a um réu. Na ação de inconstitucionalidade, o procurador-geral alega que "compete ao Ministério Público dirigir a investigação criminal, no sentido de definir quais provas considera relevantes para promover a ação penal, com oferecimento de denúncia, ou arquivamento".
Na Adin, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, ressalta que isso não implica em diminuir o trabalho da polícia ou atribuir ao MP a presidência do inquérito, mas que apenas o Ministério Público tem o poder para propor uma ação penal ou decidir pelo arquivamento.
"A Polícia Federal faz a investigação, o MP faz todo o processo depois. É preciso ter alguém que tenha tudo isso em mente para fazer uma negociação que seja razoável", disse à Reuters um procurador. "O titular da ação penal é o MP. Ele que vai decidir o que oferecer no contexto integral."
A argumentação usada pelo MP, no entanto, não está clara na lei aprovada pelo Congresso e questionada por Rodrigo Janot. De acordo com a legislação, quem decide o que deve ser oferecido não é a PF ou o MP, mas o juiz do caso.
"O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados", prevê o texto da lei.
A legislação ressalta, ainda, que o MP "a qualquer tempo" ou o delegado, nos autos do inquérito e com "manifestação do Ministério Público" podem requerer ao juiz o perdão judicial ao colaborador.
A justificativa do projeto de lei que resultou na lei de organizações criminosas também esclarece que é o juiz do caso quem deve definir os resultados da colaboração premiada.
"O projeto manteve-se fiel à ideia de que a extinção da punibilidade ou a redução da pena devem partir do Poder Judiciário. A nosso sentir, configura-se inconstitucional a proposta de atribuir tal competência ao órgão acusador. Isso implicaria verdadeiro esvaziamento de poder, função e atividade do órgão judicial", diz o texto do projeto apresentado pela então senadora Serys Slhessarenko e que deu origem à lei atual.
Acusados de quererem oferecer benefícios ou de propor a não denúncia, os delegados da Polícia Federal afirmam que essa nunca foi sua intenção. O poder de oferecer os benefícios é apenas do juiz, alegaram delegados ouvidos pela Reuters.
Em nenhuma das colaborações assinadas com a PF foram determinados benefícios, dizem. Em todas, fica claro que apenas ao final do processo o juiz vai avaliar se as informações foram realmente importantes e decidir o que o réu poderá receber em troca.
Em texto distribuído por sua assessoria, o superintendente regional da PF no Distrito Federal, Élzio Vicente da Silva, alega que negociar benefícios antes de terminada a investigação pode terminar por dar aos investigados vantagens acima do que eles mereceriam pelas informações que prestaram.
"Quando o MP estabelece e oferece benefícios acertados nessas tratativas em troca de informações não checadas, surge a possibilidade de o pretenso colaborador se beneficiar antecipadamente de cláusulas estabelecidas nesse contrato ainda que fornecendo elementos já existentes na investigação, falsos, ou ocultando dados de relevo", diz o texto.
O ministro Marco Aurélio Mello, relator do caso no STF, disse à Reuters que quer aparelhar o processo para levá-lo a julgamento do plenário.
Em abril do ano passado, ele não concordou com o pedido de Janot para apreciar primeiro o pedido de liminar para suspender os efeitos da norma com o argumento de que a ação havia sido apresentada mais de dois anos após a entrada em vigor dela. Decidiu que quer apreciá-la diretamente no mérito.
Para tanto, o relator afirmou que faltam as manifestações da Advocacia-Geral da União e um parecer da Procuradoria-Geral da República para que ele prepare seu voto e apresente o processo para a presidente do Supremo, Cármen Lúcia, colocá-lo na pauta.
Marco Aurélio espera julgar o caso neste semestre. "Sem dúvida alguma (se julga a ação), vai depender de eu liberar o processo para a presidente", disse. Embora tenha destacado que não iria antecipar o voto, o ministro sinalizou que pode aceitar que a PF também realize delações. Ele lembrou o comentário que ele fez no julgamento sobre a validação sobre a delação de executivos da JBS, em junho, em que acredita que a colaboração "nada mais é do que um depoimento".
"Agora, o problema dos benefícios eles são implementados, na minha ótica, pelo órgão julgador da ação penal", disse. "O inquérito é inquérito policial de início, não é inquérito do Ministério Público ou do Judiciário", complementou.
A origem da Adin impetrada pela Procuradoria-Geral da República foram colaborações premiadas acordadas pela Polícia Federal na operação Acrônimo, que investiga ações do governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), quando era ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio do governo de Dilma Rousseff.
No curso da investigação, a PF fez os acordos com Daniele Fonteles e Vanessa Ribeiro para dar sequência às apurações. No relatório final da operação, a PF revela que os acordos foram feitos em março de 2016 e encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) --onde corre o inquérito por se tratar de investigação contra governador-- em abril do mesmo ano.
Provocado pelo ministro Herman Benjamin, relator, para se manifestar, o MP levou cinco meses para responder. No meio do caminho, a PGR entrou com a Adin e o pedido de liminar. Apenas depois da negativa de Marco Aurélio, fez sua manifestação.
A PF acusa o MP de tentar influenciar a colaboração. "Conforme ocorreu no caso concreto, o MPF/PGR comunicou o pretenso colaborador, durante a oitiva em sede policial e por meio de ofício, que não concordava com o ato que estava sendo formalizado naquele momento junto à Polícia Federal, por considerar 'inconveniente, após tratativas havidas diretamente com o defensor do investigado'", diz o relatório da PF ao qual a Reuters teve acesso.
A disputa de poder entre as duas forças investigativas fica clara na troca de acusações entre fontes ouvidas pela Reuters.
"Não é a questão da delação em si. É um projeto que vem do primeiro mandato do Janot de protagonismo na investigação por parte do MP", disse à Reuters um delegado que preferiu não se identificar devido à sensibilidade do assunto.
Já o procurador, ouvido em condição de anonimato, também alega que a PF quer concorrer com o MP.
"A PF não tem que estar concorrendo com o MP. O que está acontecendo é uma disputa de espaço. O MP investiga nos casos de omissão da polícia", disse.
Os dois lados também alegam falhas no outro para ter o poder sobre os acordos.
"O MP é um órgão fiscalizador. Não sabe investigar, não tem essa função", disse o delegado. "Quando a mesma pessoa investiga e acusa ao mesmo tempo, ela vai procurar instintivamente tentar provar o que ela quer. É uma coisa até normal. Os órgãos que investigam não têm a obrigação de acusar."
Já o procurador alega que, por não ter as mesmas condições de trabalho --a imovibilidade, por exemplo, que impede a transferência dos procuradores-- os delegados são mais sujeitos a pressões políticas.
"Tem tudo para dar problema. A polícia está mais sujeita a pressões políticas. A gente tem que pensar que não estamos apenas falando da Polícia Federal, mas das polícias civis também", alega o procurador.
Entre as duas forças, caberá ao STF decidir quem tem razão.