Simon Sutcliffe: "Investimentos em prevenção são os que dão o maior retorno" (foto/Divulgação)
Camila Almeida
Publicado em 3 de outubro de 2017 às 20h05.
Última atualização em 3 de outubro de 2017 às 20h05.
No Brasil, o câncer é responsável por 17% das mortes, sendo a segunda principal causa de falecimentos no país. O número ainda é um pouco melhor que a média de 12 países estudados na América Latina, que ficam em 19%. Porém, esse número poderia ser muito menor caso o país investisse mais em políticas de prevenção e diagnóstico. A maioria dos casos de câncer é identificada em estágio já avançado – o que reduz as chances de cura e encarece o tratamento – e há um grave problema em relação à qualidade dos exames feitos. No país, 10% dos exames de Papanicolau, que ajudam a identificar o câncer de colo do útero, são ilegíveis, e o número chega a 60% em zonas rurais do Amazonas.
O retrato da ineficiência do Brasil e de outros países latinos no controle da doença é resultado de um estudo encomendado pelos Laboratórios Roche e realizado pela The Economist Intelligence Unit, intitulado “Controle do câncer, acesso e desigualdade na América Latina: uma história de luz e sombra”. O estudo foi debatido em São Paulo, no congresso do movimento Todos Juntos Contra o Câncer. O médico canadense Simon Sutcliffe, considerado um visionário em políticas de controle do câncer, foi convidado para comentar o estudo e discutir soluções para o atual cenário brasileiro e latino. Em entrevista a EXAME, o especialista falou sobre a desigualdade no acesso ao tratamento do câncer, sobre o retorno de investimentos em prevenção e sobre a necessidade de avançar no uso de genomas – um assunto polêmico, que coloca a ética médica em xeque.
A pesquisa mostra que o Brasil ainda é muito desigual em termos de acesso a serviços de saúde. Como esse problema pode ser revertido?
A desigualdade não é um problema exclusivo do Brasil. Todos os países, inclusive o Canadá, de onde venho, têm desigualdades. A questão chave é reconhecer onde elas estão, e se preparar para fazer algo a respeito. O Brasil tem uma população heterogênea e diversa, com diferentes níveis de acesso ao serviço de saúde e até de entendimento sobre o que está disponível. Se o país pretende fazer um planejamento para 210 milhões de pessoas, é melhor aceitar que vai enfrentar desigualdades em níveis inalcançáveis. Nem todo mundo vai ser rico ou morar em São Paulo, mas, no longo prazo, os projetos precisam promover às pessoas saúde e bem-estar em suas vidas, além de acesso a um bom sistema de saúde.
Em se tratando de câncer, esse problema é ainda mais grave? Já que os tratamentos normalmente são caros e especializados?
Não consigo avaliar se o câncer é um problema maior ou mais difícil de ser resolvido. Doenças como diabetes não são diferentes do câncer. Tratamentos para o câncer não são baratos, para diabetes também não são. Nós reconhecemos que há mais medos públicos e estigmas em torno do câncer do que em relação a outras doenças. Mas medidas para seu controle não serão muito diferentes das aplicadas ao controle a doenças cardiovasculares ou renais. Em alguns aspectos, o câncer tem até certas vantagens. Nós o reconhecemos mais, os tratamentos são mais organizados e especializados, e por isso a mente dos pacientes entende melhor o tratamento.
Mas o tratamento ainda é muito caro, não?
De fato, é caro. Mas eu não sei até que ponto é muito mais caro do que tratar outras doenças. Há algumas drogas muito caras associadas ao tratamento. Mas a radioterapia, por exemplo, é um tratamento com poucas sessões. Portanto, na relação entre preço e ganho de vida, o custo é efetivo. Em todos os gastos, devemos questionar qual é o benefício. Quanto mais as pessoas vivem? Qual é a melhora na qualidade de vida dessas pessoas? O custo de um tratamento não é somente o custo da droga; tem o retorno que essa pessoa vai dar à sociedade. Em muitas circunstâncias, drogas caras dão efeitos muito bons.
Esses tratamentos não estão disponíveis para todo mundo.
Esse é um problema que diz respeito a como o país torna os medicamentos disponíveis. De onde eu venho, o sistema público paga pelos medicamentos. Qualquer um que precisar vai tê-los, sem precisar pagar. Mas também tem o lado ruim: se o sistema público não puder pagar, o paciente não o terá. O desafio dos países como o Brasil é que o sistema de saúde pública é utilizado por 47% das pessoas, e os outros 53% dependem de assistência médica particular – só que pagar por uma quimioterapia do próprio bolso é muito caro. Em algum momento, o governo vai precisar decidir sobre o custo-benefício, avaliando quando o sistema público deverá bancar os tratamentos.
A pesquisa também mostrou que os investimentos do Brasil em saúde pública estão abaixo da média da América Latina – representam uma parcela de 3,8% do PIB, enquanto a média dos países estudados é de 4,6%. Falta dinheiro no setor?
O Brasil é provavelmente o país mais destacado na questão de saúde na América Latina. Em alguns países, o sistema público é muito bom, como no Uruguai e no Chile. E, em todos os países, as pessoas querem mais sistema público de saúde, porque querem ter certeza de que qualquer um vai conseguir os tratamentos de que precisa. O Brasil deveria ampliar as proporções do financiamento do sistema de saúde. Quando se compara o controle do câncer em relação ao PIB, o Brasil está abaixo da média mundial, com 8%. Nesses 8%, o sistema público não está presente. Esse número vem dos tratamentos particulares. No Canadá, cerca de 79% das pessoas estão cobertas pelo sistema público de saúde. Não que seja esse o número certo, mas existe a ideia de que o governo não pode negar um tratamento, seja porque a pessoa não tem dinheiro ou educação suficiente. Não sou contra convênios particulares, as pessoas devem ter o poder de escolher e pagar por suas escolhas. Mas eu acredito que, se alguém precisar de tratamento, é preciso ter acesso, sem precisar pagar por isso.
Quando pensamos em ampliar os investimentos, devemos concentrar os esforços no tratamento ou na prevenção?
Existem três pilares: prevenção, pesquisa e tratamento. Todos essenciais. Mas, em termos de benefício para a população, investimentos em prevenção e controle das doenças fornece reduções consideráveis à mortalidade da população. As políticas para tornar as pessoas mais saudáveis, como prevenção à obesidade e vacinação, dão os maiores ganhos, em termos de extensão do tempo de vida e bem-estar. Já o que fazemos para detectar doenças antes mesmo das pessoas serem contaminadas é bom e efetivo, mas geralmente é caro. É preciso estar muito consciente dos investimentos que terão que ser feitos. Uma coisa é um país rico gastar dinheiro em prevenção e pesquisa, outra coisa é o Brasil fazer esses investimentos – porque há pessoas na ponta que já estão doentes e já estão sofrendo. Mas isso não é muito diferente no mundo. Na América do Norte, 90% do dinheiro é gasto com tratamento; no Canadá, 80%. Em geral, o dinheiro vai para pessoas que têm menor perspectiva de vida. E são elas que demandam tratamentos mais caros, com menor possibilidade de bons resultados.
O que o senhor está defendendo é que passamos a vida inteira sem sermos saudáveis e, no fim da vida, é quando aparecem os investimentos na saúde?
Sim. Quando nascemos, temos a condição mais saudável de nossas vidas, e vamos perdendo ao longo do tempo.
Um caminho é estimular as pessoas a irem mais ao médico em busca de disgnóstico e prevenção? Como alcançar isso?
As pessoas precisam estar conscientes de suas condições e educadas para entenderem sintomas. Elas precisam conhecer os riscos de seus comportamentos. De certa forma, isso não é um problema médico, mas um problema social. É preciso mudar a maneira como entendemos uma vida saudável. E, em qualquer programa de prevenção, o objetivo é levar o maior número de pessoas para o bem-maior, onde há o melhor custo-benefício. O governo deveria dar incentivos fiscais para aqueles que praticam uma vida saudável, por exemplo, para quem comprova que faz parte de um clube e o frequenta toda a semana. As pessoas naturalmente não fazem as coisas certas. E muitas escolhas saudáveis vão na contramão do que as pessoas realmente querem fazer. O próximo passo é não é uma opção obrigar as pessoas a irem para as grandes cidades para se cuidarem. Isso precisa fazer parte do cotidiano. Os bons programas públicos estão nas comunidades, onde as pessoas vivem, não em hospitais.