REPRESA DE JAGUARY: o consumo de água em São Paulo já voltou a crescer / Nacho Doce/ Reuters (Nacho Doce/Reuters)
Da Redação
Publicado em 27 de abril de 2016 às 11h57.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h29.
Você se lembra de quando São Paulo virou sertão? Nos verões de 2013 e 2014, épocas normalmente úmidas, as chuvas teimaram em não cair. Os reservatórios secaram, e o solo ganhou cicatrizes quarando ao sol. Todo paulistano se habituou a dar uma espiadinha no volume das represas antes de sair de casa. No verão de 2015, tudo mudou: as chuvas voltaram a cair fortemente e as reservas voltaram a subir. No dia 7 de março, com o sistema Cantareira em 60% da capacidade, o governador Geraldo Alckmin decretou o fim da crise hídrica. “Temos água para quatro a cinco anos de seca”, disse Alckmin.
Ninguém deu muita bola, já que as chuvas continuavam fortes, e o noticiário se ocupava de impeachment, zika e outras questões de última hora. Até que abril chegou, e a chuva parou de cair. São Paulo viveu 20 dias de calor intenso — e nenhuma chuva. A luz amarela, automaticamente, voltou a acender. Nas últimas duas semanas, EXAME ouviu consultores, acadêmicos e executivos do setor para saber se, de fato, os problemas haviam ficado no passado. E também para entender o que está sendo feito para que a população não fique à mercê de São Pedro.
Para começo de conversa, não há como garantir que esse drama tenha passado. Os reservatórios estão abaixo da média histórica. Normalmente, nesta época do ano, o sistema Cantareira, principal fonte de abastecimento da região metropolitana de São Paulo, costuma alcançar uma média de 60%. No ano passado, havia apenas 12% da capacidade nesta mesma época. Neste ano, atingimos 36%.
Fim dos incentivos
Com o outono vem a estiagem. Seria, portanto, época de cautela. Mas, após o anúncio do fim da crise hídrica, o governo do estado suspendeu a política de incentivos econômicos ao uso racional da água, na qual os consumidores que poupam ganham descontos e os que gastam mais são multados. Suspendeu também a redução de pressão nos canos da Sabesp, medida que diminui as perdas de água por vazamentos nas tubulações.
Apesar de a suspensão confortar a população, há o risco de que o consumo volte a aumentar. O secretário de Saneamento e Recursos Hídricos do estado, Benedito Braga, confirma a tese de que está tudo sob controle. “Nós criamos novos paradigmas. Antes da crise, o consumo de São Paulo era de 72.000 litros por segundo. Hoje, o sistema opera com 60.000. Isso significa que a população não está mais usando água como antes”, diz.
É o suficiente? Atualmente, a América Latina está sob efeito do famoso El Niño, evento climático que ajudou na precipitação das chuvas deste ano. O que significa que, no ano que vem, a previsão é de chuvas mais modestas. “No período de estiagem, consome-se cerca de 50% da capacidade total do Cantareira. Só que, hoje, não temos nem 40%”, afirma o geólogo Pedro Paulo Côrtes, especialista em recursos hídricos. “Então, é muito possível que, no próximo verão, seja preciso usar novamente o volume morto e voltar a torcer pela chuva.”
O consumo já voltou a crescer. Em novembro de 2015, o sistema Cantareira atingiu o recorde de economia, com vazão de menos de 14.000 litros por segundo. Em abril, a saída já aumentou 65% — para 23.000 litros.
O governo diz que duas obras fundamentais para aumentar o fornecimento de água ficarão prontas em 2017. A primeira é a interligação da bacia do rio Paraíba do Sul, no Rio de Janeiro, ao sistema Cantareira; a segunda, a implantação do sistema São Lourenço, que vai abastecer moradores de municípios da Grande São Paulo. Obras caras e de geografia difícil que, juntas, representam um incremento de 10.000 litros por segundo, acréscimo suficiente para suprir a demanda por água no estado se o consumo se mantiver nos níveis atuais.
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O papel da Sabesp
Parte fundamental desse cálculo é a Sabesp, concessionária de água do estado. Em dezembro de 2015, a empresa havia anunciado que o programa de ônus e bônus aos consumidores, em que havia multas para excesso de consumo e descontos para quem economizasse, seria estendido até o final de 2016 — ou até quando se tivesse maior previsibilidade em relação à crise hídrica. Durou três meses. Em março, com o anúncio do fim da crise hídrica, o programa foi cancelado.
Para o caixa, é uma boa notícia. Em 2015, com a concessão de bônus e a queda no consumo, o lucro da Sabesp foi de 536 milhões de reais. Uma queda brusca em relação a 2014, quando o lucro foi de 903 milhões, e mais ainda em relação a 2013, quando a empresa lucrou 1,9 bilhão de reais. A previsão é que os lucros voltem a crescer neste ano.
“A Sabesp é uma empresa de capital aberto que, embora pertença ao governo, está cotada na bolsa americana. Então, tem que ter uma gestão muito profissional”, diz Reinaldo Guerreiro, conselheiro independente da companhia. “Com a crise, a empresa precisou fazer o que não estava previsto, como a interligação de bacias para aliviar o sistema Cantareira.”
De acordo com o analista Alexandre Montes, da consultoria Lopes Filho, a empresa teve uma redução de consumo de 17% durante os dois anos de crise. “Só com o cancelamento do programa de incentivos, a empresa deve aumentar seu faturamento em 3%, porque ela acabou pagando mais bônus do que recebendo de multas”, afirma.
Chega-se, portanto, a uma contradição. A Sabesp vai priorizar o corte de consumo, fundamental para o estado no médio e no longo prazo, ou dar atenção aos lucros trimestrais? É um dilema de qualquer concessionária do setor que ganha cada vez mais relevância. “Apesar de o incentivo à redução de consumo ser uma tendência no mundo inteiro, a gente vê o governo tomar um caminho oposto, retirando medidas importantes de conscientização para tentar recuperar o caixa da Sabesp”, afirma o geólogo Pedro Luiz Côrtes, especialista em sustentabilidade e recursos hídricos da USP.
A empresa está retirando mais água da Cantareira. A Agência Nacional de Águas, em fevereiro, autorizou um aumento no limite de captação: subiu de 19.500 para 23.000 litros por segundo, uma expansão de 18%. Com um modelo de gestão que coloca o aumento do consumo e os lucros no mesmo lado da balança, fica difícil resolver as questões ambientais e agradar aos acionistas ao mesmo tempo. O tempo vai mostrar o que vai pesar mais.
(Camila Almeida)