Ernesto Araújo: Itamaraty é o campeão em negar pedidos; pasta foi responsável por mais de um terço do total de negativas (Gustavo Minas/Bloomberg)
Clara Cerioni
Publicado em 9 de fevereiro de 2020 às 08h30.
Última atualização em 9 de fevereiro de 2020 às 08h55.
Os telegramas do Itamaraty com instruções aos diplomatas brasileiros sobre a renúncia do ex-presidente Evo Morales, na Bolívia. Comunicados oficiais do governo a embaixadores durante o início das manifestações de rua no Chile.
Mais de 300 contratos da Transpetro, estatal de logística da Petrobras, com empresas de tecnologia e engenharia. Todos esses documentos foram solicitados a órgãos do Governo Federal por meio do sistema de informação ao cidadão.
Em comum, todos os pedidos tiveram o acesso negado sob a alegação que os cidadãos estavam realizando “pescaria” de informações públicas. Além disso, as recusas foram embasadas em uma argumentação que pedidos do tipo podem ser parte de um “trabalho jornalístico” e que poderiam levar “à ineficiência do Estado, às custas do contribuinte”.
Segundo levantamento inédito da Agência Pública, durante o primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, aumentaram as negativas do Governo Federal a pedidos de informação feitos por cidadãos com a justificativa de fishing expedition — termo pejorativo em inglês que descreve uma pesquisa ampla por informações em busca de algum fato que possa incriminar uma pessoa ou instituição.
Apenas em 2019, foram 45 pedidos de informação negados utilizando expressamente essa justificativa, mais de cinco vezes o total de negativas em 2018, durante a gestão de Michel Temer. Há registros de pedidos recusados desde 2015, porém em menor quantidade.
Desde maio de 2012, qualquer cidadão tem o direito de solicitar informações que foram produzidas ou guardadas por órgãos públicos no Brasil, sejam do Executivo, Legislativo ou Judiciário, Ministério Público, autarquias, fundações e empresas públicas e mesmo empresas privadas sem fins lucrativos que recebam recursos do orçamento.
E a partir de novembro de 2018, o Governo Federal permitiu que os pedidos possam ser feitos anonimamente através do sistema de informação ao cidadão.
Em caso de descumprimento, servidores públicos podem ser suspensos ou responder a processos de improbidade administrativa. Já servidores militares que não respondem pedidos de acesso à informação podem ser acusados na “infração de trangressão”.
Dentre os pedidos negados em 2019, esteve um da Pública que solicitou ao Ministério das Relações Exteriores os telegramas diplomáticos de um período de dez dias que contivessem informações sobre a Bolívia ou o ex-presidente Evo Morales.
O acesso aos documentos foi recusado pelo Itamaraty sob a justificativa de “pescaria”, afirmando que era “impossível identificar o foco de interesse da solicitação” e que a requisição buscava reunir um “conjunto de documentos não relacionados entre si” para então “selecionar a informação que seria de interesse”.
Anteriormente, por meio de um pedido semelhante, a Pública revelou que o governo havia instruído embaixadores a defenderem o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, antes mesmo da conclusão do processo.
Segundo nosso levantamento, o Itamaraty é o campeão em negar pedidos de acesso à informação sob a alegação de “pescaria”. A pasta foi responsável por mais de um terço do total de negativas do tipo.
Todas elas ocorreram a partir de 2019, sob a gestão de Ernesto Araújo. A Pública questionou o Ministério sobre qual o critério para caracterizar pedidos de informação como “pescaria” e se a prática não infringe a Lei de Acesso à Informação, mas não obtivemos resposta até a publicação da reportagem.
“O Ministério das Relações Exteriores foi quem provavelmente disseminou o fishing expedition”, afirma Bruno Morassutti, advogado e conselheiro da Fiquem Sabendo, agência de dados independente especializada na Lei de Acesso à Informação.
Na avaliação de Morassutti, o Itamaraty deveria ser mais específico sobre quais as limitações técnicas existem em relação aos pedidos de acesso aos comunicados diplomáticos em vez de restringir requisições utilizando o argumento genérico de “pescaria”.
“Essa figura de fishing expedition surgiu no Direito dos EUA: quando um advogado quer processar uma empresa e precisa encontrar pessoas prejudicadas por ela, ele faz um pedido de provas bastante amplo, para encontrar algum problema. A discussão sobre o fishing expedition é do direito privado, uma discussão entre pessoas e empresas, não entre pessoas e governo. O governo tem de prestar contas. No sistema jurídico brasileiro isso não faz sentido nenhum”, questiona Morassutti.
Após o Ministério das Relações Exteriores, a Transpetro e a Petrobras são os órgãos do Governo Federal que mais recusaram pedidos com o argumento de “pescaria”.
A decisão do Itamaraty usou como argumento para negar o acesso da reportagem aos documentos um parecer de 2017 da Controladoria Geral da União (CGU).
À época, um cidadão brasileiro teve pedidos negados pelo ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão e pelo Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil.
Em resposta, o solicitante entrou com recurso à CGU que, por sua vez, optou por julgar os pedidos em conjunto. A partir da identidade do cidadão, a Controladoria identificou que ele havia feito outros pedidos semelhantes a diversos ministérios e classificou a prática como “pescaria”.
No parecer, a CGU definiu a pescaria como “solicitações vagas, de cunho amplo, em que se visa obter uma grande quantidade de documentos: geralmente todos os ofícios, despachos, memorandos, e-mails etc., expedidos por certa autoridade, para desenvolver, em geral, um trabalho jornalístico”.
Essa definição foi redigida inicialmente no julgamento de outro recurso de acesso à informação, também em 2017, pelo auditor federal de Finanças e Controle, Roberto Kodama, em uma decisão assinada pelo ouvidor-geral da União Gilberto Waller Júnior.
“É um parecer problemático”, avalia Gregory Michener, professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV-EBAPE) e fundador do programa de transparência pública da instituição.
“Primeiramente, por focar na identidade do requerente, que é um pecado cardinal em termos da Lei de Acesso à Informação pública. Em segundo, não se julga uma solicitação por razão do motivo [do pedido]. E em terceiro lugar, nunca se deveria ter chegado a uma discussão de fishing expedition, porque não é algo ilegal, não é uma razão para se negar um pedido”, afirma.
Michener é autor de um estudo que apontou que autoridades brasileiras pesquisam a identidade de quem envia pedidos de acesso à informação e chegam a negar respostas, de acordo com a identidade de quem solicita os dados.
“A Lei de Acesso à Informação impede que você avalie motivos da solicitação. Eles não devem ser considerados, inclusive se forem para se realizar uma reportagem jornalística. Isso não pode ser considerado para negar ou não um pedido de informação”, afirma Márcio Cunha Filho, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público e Auditor da CGU.
Segundo Cunha, é normal que órgãos públicos neguem pedidos em casos desproporcionais, ou que demandem muito trabalho dos funcionários, porém essa negativa não pode levar em consideração os motivos que levaram o pedido a ser realizado.
O parecer da CGU também é criticado pela oficial de projetos de acesso à informação da Artigo 19, Joara Marchezini. “De acordo com a LAI e seu decreto regulador, um órgão demandado não pode negar o acesso a uma informação pública por suspeitar se tratar de subsídio para trabalho jornalístico.
Em realidade, a motivação do requerente de informação não deve ser questionada durante o processo de solicitação, nem deve ser utilizada como fundamentação para negativa ou interferir no processo de análise do caso”, aponta.
Na avaliação de Marchezini, quando o julgamento sobre o acesso à informação leva em conta uma determinada categoria ou profissional, acaba-se violando o direito impessoal de acesso à informação pública.
Procurada pela reportagem, a CGU afirmou categoricamente que “a prática de ‘fishing expedition’ não é critério objetivo adotado para a denegação de acesso à informação”.
Segundo a controladoria, o termo foi utilizado em pareceres “como exemplo concreto para caracterizar situações em que um pedido poderia ser considerado desproporcional”, mas que, com o tempo, “a caracterização, por si só, da prática, deixou de ser uma sinalização que indicaria, necessariamente, a incidência da desproporcionalidade”.
A CGU afirmou que, atualmente, as análises de pedido ocorrem “independentemente da caracterização da prática [de pescaria]”.
Segundo a CGU, em 2019, 1165 pedidos de acesso à informação foram negados por serem considerados ou desproporcionais ou desarrazoados. Isso representou 0,86% de todos os pedidos realizados ao Governo Federal.
A Pública apurou que o registro mais antigo de pedido de acesso negado com a justificativa de “pescaria” ocorreu em 2015. Na época, um cidadão solicitou cópias do alvará de funcionamento, do habite-se e da vistoria do Corpo de Bombeiros de todas as unidades do Instituto Federal do Pará (IFPA).
A solicitação e o recurso foram negados com base em um segundo parecer da CGU, do mesmo ano, que igualmente definiu a prática como “pescaria” — mas neste caso, não fez menção a finalidade de trabalho jornalístico.
“Não existe uma resposta simples para em quais situações o governo pode negar um pedido de informação, mas a regra deve ser a transparência e, nos casos que ela for negada, é preciso justificar isso muito bem”, afirma o coordenador de pesquisa da Transparência Internacional, Guilherme France.
Na avaliação do pesquisador, o cumprimento da Lei de Acesso à Informação tem progredido, apesar de apontar “pontos sensíveis” no cumprimento da legislação.
“Ano passado houve a tentativa do Governo Federal, do vice-presidente Hamilton Mourão, de ampliar a competência de atribuição de sigilo a documentos públicos, que acabou caindo com o voto da Câmara dos Deputados. Mas os principais problemas hoje estão nos níveis estaduais e municipais, onde é ainda mais problemático o cumprimento da Lei”, pondera.
*Reportagem publicada originalmente no site da Agência Pública