Brasil

"Presídio de Mossoró é um Big Brother. Não dá para sair sem ajuda", diz ex-professor da prisão

Para Francisco Augusto Cruz de Araujo, que deu aulas no presídio por dois anos, hipótese de que houve facilitação para fuga de detentos é a que mais convence

Agência o Globo
Agência o Globo

Agência de notícias

Publicado em 18 de fevereiro de 2024 às 08h38.

Última atualização em 18 de fevereiro de 2024 às 08h45.

O professor Francisco Augusto Cruz de Araujo, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), deu aulas por dois anos dentro da Penitenciária Federal de Mossoró, de onde dois detentos fugiram na última terça-feira. Araujo disse ao GLOBO que os protocolos de segurança do local são “exemplares” e que não acredita que seja possível deixar o presídio sem que haja facilitação por parte de algum funcionário. Leia o relato:

“Estudei em Mossoró e estive nas celas da penitenciária ainda antes de sua inauguração. Fiquei fascinado, é uma estrutura de shopping. Tudo limpo, bem ventilado, com muitas câmeras por todos os lados. Na época, havia uma apreensão muito grande na cidade por receber presos de altíssima periculosidade. Muita gente não queria a construção do presídio.

Fiz mestrado em Ciências Sociais e estudei segurança pública, sempre estive ligado a essa temática. Em 2017, eu estava fazendo um projeto na Penitenciária de Alcaçuz quando ocorreu a rebelião mais violenta da história do Rio Grande do Norte. Pela minha experiência na área prisional, fui convidado naquele ano pelo reitor do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN) a coordenar cursos para os apenados de Mossoró que haviam passado no Enem e conseguiram se matricular no ensino superior pelo Sisu.

Passei dois anos tendo que me submeter ao rigor da segurança do sistema federal, eu ia lá a cada 15 dias. É algo que tenho como referência, é o modelo mais digno, com critérios de segurança altíssimos.

A penitenciária de Mossoró é um presídio perfeito, tudo é feito para funcionar. Nada de metal tem a entrada permitida, nem zíper ou botões, e os próprios policiais penais são obrigados a passar por detectores na entrada e na saída, como em um aeroporto. Até o diretor da penitenciária passa por esse procedimento. Existem portões à prova de explosões, cercas eletrificadas, em todo canto há câmeras, é um Big Brother.

Durante as aulas, os detentos ficavam de um lado da grade e eu de outro, no que a gente chama de “celas de aula”. Eles só recebiam a parte interna da caneta para escrever, só o tubinho flexível que contém a tinta, sem a parte de plástico duro. Ao fim do dia, esses tubos precisavam ser devolvidos. Os materiais didáticos eram colados, sem nada grampeado ou encadernado. Nada de alumínio passa do portão.

Eu dava aulas de Cidadania, Ética e Meio Ambiente para nove alunos. Em alguns momentos, eles acabavam falando sobre a realidade deles, onde moravam, e contavam suas trajetórias de vida. Alguns diziam objetivamente o que tinham feito para estar ali, mas eu não tinha muito interesse nisso porque a minha prioridade era o desejo deles de seguirem outro projeto de vida.

Infelizmente, o curso na penitenciária federal não deu muito certo porque os alunos foram transferidos para outras unidades prisionais depois de dois anos. A maioria fez mais da metade do curso, alguns transferiram para outras instituições, outros trancaram. Tentei motivá-los a não desistir, soube depois que um deles foi aprovado no curso de Medicina em uma faculdade do Rio de Janeiro.

Em 2018, uma colega me levou para mostrar as celas onde os detentos ficam individualmente. Eles só têm o colchão, seus livros e apostilas, e uma latrina onde fazem suas necessidades de cócoras. Nem lençol eles têm. Há uma pequena mesa de cimento e a cama também de cimento. No canto, tem um chuveiro de plástico que fica no teto, a aproximadamente seis metros do chão. De lá, sai água só por quatro ou cinco minutos por dia. As entradas de ar são muito altas.

Não reconheci o buraco que é exibido na foto que foi divulgada, me causou grande estranheza. Aquela imagem mostra uma estrutura com aspecto velho, precarizado, e o presídio federal não é assim. Também não imagino como um preso conseguiria quebrar uma parede daquelas, de concreto aberto, sem fazer barulho.

Na penitenciária, quando é preciso fazer uma obra, a empresa responsável precisa apresentar com dez dias de antecedência a lista de todas as ferramentas necessárias e esse material é vistoriado na entrada e precisa deixar o local no mesmo dia.

Acredito muito na hipótese de que houve facilitação por parte de alguém lá de dentro para que ocorresse uma fuga. Possivelmente, algum funcionário foi coagido, teve um parente sequestrado. Não subestimo o poder das organizações criminosas em fazer coisas inimagináveis. Mas não acredito em fuga comprada.

O governo está com um discurso muito desconcertado, há falas completamente absurdas. Essa fuga precisa ser investigada com todo rigor.

Como professor, lamento muito por esse episódio porque a primeira coisa que é cortada são as assistências aos detentos. Todos pagam o preço pela fuga de duas pessoas".

Acompanhe tudo sobre:Presídios

Mais de Brasil

Incêndio atinge Shopping 25 de março, na região do Brás, em SP

Lula anuncia hoje metas e investimentos em mobilidade e cidades verdes

Ibama recomenda manter veto à exploração da Foz do Rio Amazonas e cobra Petrobras

Provão Paulista 2024 começa nesta quarta em São Paulo; veja como vai funcionar