Brasil

Presidente do Cimi: Não estamos para confronto, mas não podemos nos omitir

Dom Roque Paloschi diz não temer os ataques vindos do governo Bolsonaro e ressalta importância da realização do Sínodo da Amazônia

“Quando estamos discutindo a situação da Amazônia, não é para ir contra o governo”, afirma o presidente do Cimi sobre Sínodo da Amazônia (CIMI/Divulgação)

“Quando estamos discutindo a situação da Amazônia, não é para ir contra o governo”, afirma o presidente do Cimi sobre Sínodo da Amazônia (CIMI/Divulgação)

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Clara Cerioni

Publicado em 19 de maio de 2019 às 08h00.

Última atualização em 19 de maio de 2019 às 08h00.

Havia o prenúncio de uma guinada conservadora nas eleições da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), mas o resultado satisfez boa parte dos membros do clero católico de linha progressista, como o presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), dom Roque Paloschi.

Ele confia na continuidade do apoio ao trabalho das pastorais da Igreja por parte da próxima diretoria da entidade. “Tenho plena convicção disso. Todos são homens sintonizados com o caminho da Igreja no Brasil e aliados aos caminhos que o papa nos pede”, avalia dom Roque, arcebispo metropolitano de Porto Velho (RO).

Na assembleia geral do órgão, realizada no início deste mês em Aparecida (SP), dom Walmor Azevedo, arcebispo de Belo Horizonte, foi eleito presidente da entidade. Os dois vice-presidentes escolhidos foram dom Jaime Spengler e dom Mário Silva, arcebispo de Porto Alegre e bispo de Roraima, respectivamente.

E o secretário-geral eleito foi dom Joel Portella Amado, bispo auxiliar do Rio de Janeiro. Eles triunfaram sobre nomes de linha mais conservadora que também estavam no páreo, como dom Odilo Scherer, cardeal e arcebispo de São Paulo.

Em entrevista à Pública, dom Roque reconheceu que há contestação ao clero progressista dentro da Igreja, falou sobre o embate de membros do governo à atuação indigenista do Cimi e sobre a expectativa com a realização do Sínodo da Amazônia, encontro chamado pelo papa Francisco para discutir questões relativas à Amazônia, como a preservação ambiental e a situação dos povos indígenas.

“A Amazônia é uma terra em disputa em várias frentes. Há a questão da madeira, do minério, do petróleo, do agronegócio. Tudo isso vem acontecendo e nós agimos como se não tivéssemos responsabilidade”, afirma. Sobre o clima de perseguição ao Cimi, que já foi alvo de uma CPI no Mato Grosso do Sul e também bastante atacado na CPI da Funai e Incra, no Congresso Nacional, dom Roque recorre a uma metáfora bíblica.

“Jesus foi caluniado, difamado, perseguido e pregado numa cruz. Se tiver que acontecer isso com o Cimi, esse é o destino também que nós temos”, afirma.

A polarização que a gente vê na sociedade chegou às eleições da CNBB?

A Igreja, historicamente, há 2 mil anos é acostumada a resolver as suas dificuldades nesse caminho de sinodalidade, de sentar junto e discutir. É só você pegar lá o livro de Atos dos Apóstolos e você vai ver o primeiro concílio que houve em Jerusalém, quando havia uma forte divisão na concepção sobre como evangelizar, o grupo de Pedro pensava de um jeito, o grupo de Paulo pensava de outro, e o que fizeram?

Se reuniram durante um certo tempo e concluíram assim: “O Espírito Santo e nós decidimos”. E aí estabelecem as decisões que eles assumiram. Depois, nós temos aquele ensinamento de Santo Agostinho: unidade naquilo que é essencial e liberdade nas coisas secundárias, mas, em tudo, a caridade. Então eu podia dizer pra ti que esse é o clima aqui da Conferência.

Há posições que não se coadunam, que são divergentes, mas há o campo do diálogo, da discussão e do discernimento. Isso é interessante: dizem que a CNBB está dividida, mas a votação para as diretrizes da ação evangelizadora foi unânime entre quase 300 bispos. Isso é um sinal de que se tenta criar uma situação que não é a realidade.

Evidentemente, quem está na Amazônia olha o Brasil de um jeito. Quem está no centro de São Paulo, olha de outro. Quem está no Nordeste, olha de outro. Quem está nas periferias, olha de outro. Isso é um enriquecimento que vai acontecendo. É uma expressão bonita.

Como presidente do Cimi, como o senhor vê este momento de ataque à pauta socioambiental e indigenista no atual governo? Recentemente o Cimi foi alvo de uma CPI no Mato Grosso do Sul, há pessoas no próprio Ministério da Agricultura que se contrapõem diretamente ao órgão…

A gente tem que viver o Evangelho nos caminhos da proximidade e da solidariedade com aqueles que são os destinatários da nossa missão, como Conselho Indigenista Missionário, os povos originários. Nós levamos isso com os caminhos da fé. Porque o próprio Jesus vai dizer pra mim e pra todo cristão: “Eu estava com fome e tu não me deste de comer, eu estava com sede e tu não me deste de beber, estava nu e tu não me vestiste, eu era estrangeiro, peregrino e refugiado, e tu não me acolheste”.

Em um país com tanto preconceito, com tanta exclusão, poderá dizer: “Eu era indígena e tu não me acolheste”. Hoje se trata do crescimento da consciência da responsabilidade com os pequenos grupos. Como essas pessoas são vistas, são acolhidas em uma sociedade que as observa fria e preconceituosamente.

Como a Igreja precisa também ter essa ternura, esse carinho e proximidade com os irmãos e irmãs que são os primeiros habitantes dessas terras de Santa Cruz. Como a Igreja vai viver a missão junto com eles? Evidentemente não é nada prazeroso ser atacado, ter uma CPI que vasculha as vidas dos missionários do Cimi e tudo, mas eu sempre digo: a Igreja não tem nada a temer e nada a esconder.

Nos anos 80, houve uma grande CPI no Congresso contra o Cimi e não deu em nada, agora a CPI do Mato Grosso do Sul também. Foi arquivada, porque objetivamente não tem nada que possa se criminalizar o Cimi pelo trabalho que faz, pelo contrário. Fora do Brasil o Cimi tem um reconhecimento imenso. Infelizmente, por parte do governo brasileiro nós somos tachados de outra maneira.

A eleição de dom Walmor, arcebispo de Belo Horizonte, para a presidência da CNBB fortalece o trabalho social da Igreja no Brasil? Há a sinalização desse suporte?

Tenho plena convicção disso. Todos são homens sintonizados com o caminho da Igreja no Brasil e aliados aos caminhos que o papa nos pede. Nós temos confiança no trabalho que eles vão conduzir.

A gente vê um grande questionamento ao trabalho das organizações ligadas à Teologia da Libertação por grupos conservadores. Como é para o senhor viver esse clima de contestação dentro da Igreja?

Que existe esse clima de contestação, existe. Mas acho que a gente tem que olhar tudo com serenidade e com os olhos da fé. Sem isso, nós acabamos nos perdendo.

Em um trecho do seu pronunciamento à assembleia da CNBB, o senhor disse que “Igrejas proselitistas, evangélicas e pentecostais, se tornaram hegemônicas em mais da metade das comunidades amazônicas”. Como a Igreja Católica poderia se contrapor a esse proselitismo na sua atuação com as comunidades?

Fundamentalmente, nós precisamos viver numa Igreja que se encarne. Como aquela expressão que aparece lá no Evangelho: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós”. A Igreja precisa encarnar na realidade com os rostos dos povos amazônicos, não simplesmente com bispos ordenados de fora, mas com seus próprios ministros, com a feição de si mesmos.

É preciso uma Igreja que se encarne nessa realidade, que a conheça. Não é uma disputa, mas a Igreja precisa ter esse rosto e essa feição de proteção dos direitos desses povos.

Com relação ao sínodo da Amazônia, qual a importância de a Igreja pautar a Amazônia neste momento?

Esse não será um sínodo apenas para a Amazônia. É um sínodo para toda a Igreja. As decisões que o sínodo vai tomar terão implicações para o mundo inteiro. O papa, ao convocar esse sínodo especial para a porção do povo de Deus que está na Amazônia, começa a alargar o coração dele e da Igreja para realidades muito próprias de tantos lugares do mundo que vivem essa realidade. A importância é total.

A Amazônia é uma terra em disputa em várias frentes. Há a questão da madeira, do minério, do petróleo, do agronegócio. Tudo isso vem acontecendo e nós agimos como se não tivéssemos responsabilidade por essa reserva biológica que é a Amazônia. Esse é o desafio. Temos a responsabilidade de cuidar de nossa casa comum.

Hoje há uma preocupação com a preservação das espécies: qualquer espécie que desaparece é uma grande perda para nós. Imagina quando desaparece um povo, uma língua? É uma grande tristeza para todos. A Igreja precisa pautar isso. Qual a perspectiva para as próximas gerações?

Nós recebemos um jardim, o que nós vamos devolver? Um entulho de lixo? É nossa responsabilidade. Sabemos que o desmatamento avança de forma desenfreada. Como estará a situação daqui 50, 100, 500 anos? O que a construção das hidrelétricas vai implicar na Amazônia?

A evangelização passa também pela dignidade das pessoas. Não adianta dizer “ide em paz”, quando todas as pessoas são jogadas sem eira nem beira, sem seus direitos preservados. O sínodo com certeza vai fortalecer a atuação da Igreja na região.

Nós temos a oportunidade de conviver e ouvir centenas de povos da Amazônia. O sínodo vai dar a oportunidade de dar seguimento a essas coisas.

O governo Bolsonaro deu demonstrações de se opor ao sínodo da Amazônia. Chegou a se noticiar que o GSI estaria monitorando as comunicações de bispos da região Norte, o próprio general Augusto Heleno falou que o Brasil é um país soberano, que a Igreja não teria que interferir em assuntos internos do Brasil. Como o senhor avalia esse tipo de posicionamento?

Como eu disse, não temos nada a temer. Aquilo que está sendo dito e trabalhado com relação ao sínodo é de conhecimento geral. A gente não tem nada a esconder. Quando estamos discutindo a situação da Amazônia, não é para ir contra o governo.

É para buscar alternativas para fazermos o nosso trabalho em nome da vida e da esperança dos povos daquela região. Primeiro, não temos nada a temer. Segundo, não podemos nos encolher. Não precisamos ter medo da vigilância, da interferência por parte de qualquer espionagem. Terceiro, a Igreja tem que viver a missão dela.

E qual é essa missão? É anunciar e viver o Evangelho. O sínodo vai auxiliar a Igreja a ter clareza sobre quais caminhos ela deve viver nesse tempo de transformações que a Amazônia vem passando.

Um dos lemas do Sínodo da Amazônia é a ecologia integral. O que significa esse conceito?

Hoje nós vemos, por exemplo, uma tendência de achar que os recursos naturais são inesgotáveis. A ecologia integral significa saber respeitar o ciclo da natureza.

Também precisamos saber que, se nós envenenamos a terra, os rios, o ar, estamos envenenando a nós mesmos e que a criação é um dom para toda a humanidade, e não só para a geração de hoje, mas para todas as gerações vindouras também. A ecologia integral é saber como viver efetivamente: cuidar do rio, pescar e partilhar a pesca.

Não é possível um mundo que produz tantos alimentos e que as pessoas morrem anualmente de fome. Precisamos encontrar esse caminho de equilíbrio na produção e distribuição dos frutos da terra, que vêm de toda a criação.

Numa mensagem do papa Francisco aos povos indígenas de Puerto Maldonado, ele afirmou que os povos indígenas nunca estiveram tão ameaçados como agora. O senhor concorda com essa visão? Há resistência dentro da Igreja em assumir a responsabilidade por essa pauta dos povos originários?

Eu devolvo a pergunta: na sua opinião, a questão dos povos indígenas está sendo crítica ou não? Nós temos quatro pontos: a questão da devastação da Amazônia. Em segundo lugar, a questão dos grandes projetos que são pensados de fora e são jogados lá: ferrovias, rodovias, hidrovias.

Terceiro, a exploração mineral feita de maneira que traz grandes danos à população local. Em quarto lugar, essa tendência de achar que as populações originárias são um estorvo para o desenvolvimento do país. Portanto, eu concordo com a visão do papa de que nunca os povos originários estiveram tão ameaçados como agora.

É só ver esse quadro. É só ver os números da violência em relação aos povos originários. Por que a Igreja também se coloca nessa perspectiva? Porque há esse cenário de apropriação da Amazônia de uma maneira fria e calculista, onde o preconceito predomina. Tudo isso é o rosto do próprio Cristo sofredor que nos questiona e nos interpela.

Isso está nas primeiras páginas da Bíblia: onde está o teu irmão? Onde estão os milhões de povos indígenas que viviam aqui antes da colonização? Isso é um dilema nosso. Será que não temos responsabilidade? Isso não é um dilema nosso? Vamos deixá-los à própria sorte? Evidentemente, a Igreja é plural e há focos e visões diferentes.

Mas o que eu posso dizer hoje, na condição de presidente do Cimi, é que nunca faltou apoio da presidência da CNBB para o Cimi desde a sua criação até esse momento. Vamos esperar que a nova presidência continue dando esse apoio ao Conselho Indigenista Missionário.

Tudo indica uma possibilidade de acirramento e contestação ao trabalho indigenista do Cimi nos próximos anos. Como vocês estão se preparando para isso?

Estamos focados nessa presença nos próximos anos entre os povos indígenas, em manter essa presença entre irmãos e irmãs. Eles precisam ser os sujeitos das suas próprias histórias, o Cimi não está aí para tutelar ninguém, mas sim para ajudar à luz da palavra de Deus.

Jesus diz: “Se vos caluniarem, vos difamarem e vos perseguirem, lembrem-se de olhar para mim”. Então, essa é a postura hoje do Cimi. Jesus foi caluniado, difamado, perseguido e pregado numa cruz. Se tiver que acontecer isso com o Cimi, esse é o destino também que nós temos. Não estamos para confrontar ninguém, mas também não podemos nos omitir da missão que o Evangelho nos pede.

*Reportagem publicada originalmente no site da Agência Pública.

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