Brasil

Polícia investiga se espiões russos deixaram certidões de nascimento para nova geração de agentes

Investigadores suspeitam que agentes da KGB, trabalhando disfarçados no Brasil durante os últimos anos da União Soviética, possam ter registrado certidões em nome de recém-nascidos fictícios

Painel com imagem de soldado do Exército Vermelho levantando bandeira da URSS no Reichstag é exibido em Moscou durante comemoração de 80 anos da vitória sobre o nazismo na Segunda Guerra Mundial ( Olga Maltseva/AFP)

Painel com imagem de soldado do Exército Vermelho levantando bandeira da URSS no Reichstag é exibido em Moscou durante comemoração de 80 anos da vitória sobre o nazismo na Segunda Guerra Mundial ( Olga Maltseva/AFP)

Agência o Globo
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Agência de notícias

Publicado em 22 de maio de 2025 às 12h03.

Ao desvendar uma operação de espionagem do Kremlin no Brasil, agentes da Polícia Federal se depararam com um mistério: como tantos espiões russos infiltrados conseguiram obter certidões de nascimento brasileiras aparentemente autênticas? A polícia esperava descobrir se os russos haviam falsificado os documentos ou subornado autoridades municipais para criá-los e inseri-los no cartório como se fossem das décadas de 1980 e 1990.

Mas, quando o laudo pericial foi divulgado em abril, segundo um alto funcionário brasileiro, a análise sugeriu algo completamente diferente. Os documentos não pareciam falsificados. E o mais surpreendente, nem eram novos.

Oficiais de contrainteligência brasileiros agora consideram uma possibilidade mais audaciosa, com ecos da Guerra Fria. Investigadores suspeitam que agentes da KGB, trabalhando disfarçados no Brasil durante os últimos anos da União Soviética, possam ter registrado certidões de nascimento em nome de recém-nascidos fictícios — na esperança de que uma futura geração de espiões um dia os reivindicasse e continuasse a luta contra o Ocidente.

Se for verdade, representaria um nível extraordinário de antecipação e comprometimento com a missão por parte de agentes de inteligência em um período de grande turbulência e imprevisibilidade no mundo. No final da década de 1980, o bloco comunista começou a ruir, juntamente com as divisões ideológicas que definiram a política global — e a missão dos espiões de Moscou — por décadas.

Quase da noite para o dia, a KGB, antes uma força incomparável nos assuntos globais, foi privada de seu propósito central, o conflito com o Ocidente, e logo seria completamente dissolvida. Mas essa visão de futuro se alinharia à cultura da espionagem russa, que, ao contrário do Ocidente, prioriza frequentemente o planejamento criativo de longo prazo em detrimento da conveniência imediata. E em um país singularmente comprometido em colocar agentes em missões secretas, obter certidões de nascimento tem sido uma prioridade há muito tempo.

— É exatamente o tipo de coisa que eles fariam — disse Edward Lucas, autor britânico e especialista nos serviços de inteligência russos. — Isso combina com a atenção meticulosa e geracional que eles dedicam à criação dessas identidades.

No entanto, em entrevistas, especialistas em inteligência e funcionários de diversos serviços de inteligência ocidentais não conseguiram apontar nenhum outro exemplo semelhante na história da espionagem russa. Alguns expressaram ceticismo em relação à hipótese. Até mesmo os próprios investigadores brasileiros ainda não sabem o que fazer com as conclusões de sua análise forense. A investigação continua.

A justiça brasileira ordenou que as certidões de nascimento dos russos suspeitos de atuar como agentes infiltrados sejam mantidas em segredo, de modo que o New York não pôde analisá-las de forma independente.

Projeto de vida

Criar uma identidade de fachada convincente talvez seja o trabalho mais importante de um espião. Para os agentes infiltrados de elite da Rússia, conhecidos como ilegais, uma história de fundo sólida pode significar a diferença entre uma carreira heroica e o fracasso total. Ao contrário do Ocidente, onde agentes de inteligência podem adotar identidades falsas para missões ou períodos de serviço específicos, esses espiões devem viver seus disfarces, muitas vezes por décadas.

Por meio de investigação, as autoridades brasileiras interromperam o que era essencialmente uma linha de montagem para a criação de identidades falsas. Durante anos, talvez décadas, agentes russos viajaram ao Brasil não para espionar, mas para se tornarem brasileiros. Obtiveram passaportes, criaram negócios, fizeram amizades e se apaixonaram. Então, quando seus disfarces se tornaram praticamente inexpugnáveis, partiram para outros países para realizar espionagem.

Mas o primeiro passo crucial era obter uma certidão de nascimento autêntica. Historicamente, os serviços de espionagem de Moscou dedicaram muita energia a essa tarefa. Em suas memórias, Oleg Gordievsky, ex-oficial da KGB que se tornou agente britânico, descreveu sua busca incessante por registros de nascimento adequados para uso por agentes ilegais. Ele contou como, enquanto residia na Dinamarca na década de 1970, tentou recrutar um padre que tivesse acesso a um livro paroquial, em que se registram nascimentos e óbitos.

"Se pudéssemos ter acesso aos livros paroquiais, seríamos capazes de criar qualquer número de identidades dinamarquesas", escreveu o ex-espião.

Infiltração no Brasil

Quem plantou as certidões de nascimento no Brasil prestou grande atenção aos detalhes.

— A tinta está normal, a página está em ordem. Não houve qualquer adulteração dos livros — disse um investigador brasileiro sênior que, assim como outros, pediu anonimato devido à investigação em andamento.

Embora os documentos parecessem legítimos, as informações neles contidas eram falsas. As autoridades constataram que os pais listados nas certidões de nascimento não existiam ou nunca tiveram filhos cujos nomes correspondessem aos dos documentos.

Investigadores descobriram que uma certidão de nascimento continha um raro deslize — ou talvez uma piscadela de uma geração de espiões para a próxima. De acordo com um funcionário da inteligência ocidental, um dos pais listados no documento era o pseudônimo brasileiro de outro agente secreto russo que havia trabalhado na América do Sul e na Europa uma geração antes.

Andrei Soldatov, um autor e um dos maiores especialistas russos em serviços de inteligência, disse nunca ter ouvido falar de oficiais que falsificassem certidões de nascimento com tanta antecedência. Mas disse que isso teria sido recompensado.

— Se você puder contribuir para o programa de imigrantes ilegais, você se coloca em uma posição muito boa aos olhos de seus superiores — disse ele. — Seria muito bom para sua carreira.

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