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Para onde vai a Funai no governo Bolsonaro?

Órgão que está desde 1967 na pasta da Justiça pode migrar para a Agricultura; presidente já prometeu que não haverá mais demarcações de terras

Nos últimos anos, Funai viu o seu orçamento cair significativamente. Além disso, há lentidão nos processos de demarcação de terras (Agência Brasil/Agência Brasil)

Nos últimos anos, Funai viu o seu orçamento cair significativamente. Além disso, há lentidão nos processos de demarcação de terras (Agência Brasil/Agência Brasil)

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Clara Cerioni

Publicado em 5 de dezembro de 2018 às 19h18.

Última atualização em 7 de dezembro de 2018 às 18h40.

São Paulo – A partir do próximo ano, a Fundação Nacional do Índio (Funai) pode não ser mais vinculada ao Ministério da Justiça.

O órgão, que cuida dos direitos dos índios brasileiros, está lá desde que foi fundado em 1967, em pleno regime militar.

O presidente eleito, Jair Bolsonaro, que está fazendo uma ampla reorganização da estrutura ministerial, já declarou que a Funai irá para “algum lugar”.

“Para a Agricultura, acho que não, pode ir lá para a Ação Social [em referência ao recém-criado Ministério da Cidadania]”, disse ele na terça-feira (4).

O Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão que antecedeu a Funai, foi criado pelo Marechal Randon em 1911 e era ligado à Agricultura.

O ministro extraordinário de transição e futuro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, afirmou nesta segunda-feira (3) que "a Funai está em processo de definição, mas deve ir para a Agricultura”,

Sérgio Moro, ex-juiz federal e futuro ministro da Justiça, disse nesta quarta-feira (5) que a questão está em aberto: “Ainda está indefinido, pode ser até que fique no Ministério da Justiça, pode ser que saia”.

Desmonte

O destino da Funai já está gerando manifestações de preocupação na sociedade civil. Em uma carta enviada ao futuro ministro Moro, associações indigenistas da Funai, como Associação dos servidores da Funai e Indigenistas Associados (INA), mostraram a apreensão com o destino da Funai.

O texto afirma que após a Constituição de 1988, foram garantidos direitos fundamentais a este grupo e a “possibilidade de uma política indigenista assentada em relações não tutelares, mas cidadãs.”

O documento também aborda a penúria pela qual a Funai está passando nos últimos anos, com o corte no orçamento e a falta de pessoal.

De acordo com a carta, em 2013 o repasse do governo federal era de 190 milhões de reais, neste ano foi de 117 milhões de reais, orçamento considerado "insuficiente diante da magnitude das ações do órgão”.

Direitos

Um dos receios é que a mudança para a Agricultura atrase ainda mais o processo para demarcações das terras indígenas e abra espaço para o avanço do agronegócio em áreas hoje protegidas.

Bolsonaro já deu diversas declarações contra a demarcação de terras indígenas. Em 2017, chegou a dizer que não haveria mais "um centímetro demarcado para reserva indígena ou pra quilombola”.

O deputado Daniel Vilela (MDB-GO) disse que "o ponto mais enfático" do discurso do presidente eleito para a bancada emedebista ontem foi sobre a revisão dos procedimentos dessa área.

A professora Marta Rosa Amoroso, do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e especialista na área, diz que desde 2016 já houve um gradativo enfraquecimento da Funai, o que deixou projetos e fiscalizações em compasso de espera.

Ela considera a retirada da pasta da Justiça um retrocesso que pode aumentar os conflitos, especialmente relativos à posse das terras.

“O temor é simples: quem vai fazer esse papel de intermediação? Quem vai zelar pelos direitos dos povos indígenas? Há uma disputa territorial importante e isso tem de ser ser resolvido pela Justiça. Essa visão de que os índios estão parados em reservas, é ultrapassada. Mostra que o governo não está bem informado. Ou que seria pior, má fé na disputa territorial”, ressalta.

O discurso de Bolsonaro é de que o objetivo da política pública deve ser a inclusão do índio no modo de vida urbano: "Por que no Brasil temos que mantê-los reclusos em reservas como se fossem animais em zoológico?", disse ele em entrevista para a TV Bandeirantes após sua eleição.

"O índio é um ser humano igual a nós: ele quer evoluir, ter energia elétrica, médico, dentista, internet, jogar um futebol, ter um carro, quer viajar de avião, porque ele – quando tem contato com a civilização – ele rapidamente vai se moldando à nova maneira de viver que é bem diferente e melhor do que a dele."

Marta diz que “a missão da Funai não é aculturar, é promover a os direitos dos povos indígenas no Brasil. A Constituição garantiu uma saúde diferenciada, uma educação diferenciada e os direitos das minorias indígenas à cidadania".

Terras

Na Constituição de 1988, foi estabelecido um prazo de cinco anos para demarcar todas as terras indígenas no país. No entanto, mais de 100 áreas ainda aguardam a conclusão do processo o que gera conflitos pela posse da terra.

Para o secretário-geral do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cléber Buzatto, a demora nas demarcações faz com que muitas terras sejam arrendadas a terceiros, o que é proibido legalmente.

“A Funai saindo da Justiça, esse tipo de ação seria potencializada e os conflitos pela posse da terra tendem a aumentar. É um retrocesso que o Brasil não precisa. Essa medida, se confirmada, é um vínculo muito explícito desse governo (Bolsonaro) com os interesses do agronegócio”, disse Buzatto que coordena a entidade que desde 1978 trabalha pelos direitos dos povos indígenas brasileiros.

Bolsonaro já chamou o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), assim como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), de “parte podre da Igreja”.

Marcos Xukuru, Cacique do povo Xukuru e membro da Coordenação da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santos (Apoinme), prevê alta dos conflitos e possível modificação do direito coletivo da terra, uma lei que está na Constituição.

“O que a bancada ruralista quer é estabelecer o direito individual da terra. Há um projeto de lei tramitando no Congresso. Isso, em pouco tempo, vai desmantelar as organizações sociopolíticas dos povos indígenas. Se isso acontecer, cada indivíduo pode fazer o que quiser com o seu pedaço de terra. Para onde ele vai? Vai para as periferias das cidades, engrossar a pobreza nesses lugares. Isso é inadmissível que aconteça”, disse Xukuru.

O Cacique reclamou, ainda, da falta de representatividade e diálogo com o governo eleito. “Nós, da sociedade organizada, não fomos chamados em nenhum momento, para informar as nossas demandas e mostrar o que já fazemos. Temos projetos de desenvolvimento sustentável e isso é reconhecido internacionalmente. Temos uma relação maior com a terra e isso faz com que nas terras indígenas o meio ambiente seja preservado. É um total desconhecimento quanto às nossas ações”, acrescentou.

Mercado

A possibilidade de arranhões na imagem internacional é uma das áreas de preocupação e esteve por trás do recuo, por exemplo, da ideia de submeter o Ministério do Meio Ambiente à Agricultura.

 preocupante quando o presidente eleito diz que não vai conceder um metro a mais de reserva indígena. A Constituição dispõe que os indígenas têm direitos. É possível ignorar isso?", disse o embaixador Rubens Ricupero em entrevista recente para EXAME.

O mercado financeiro vê com bons olhos a possibilidade da Funai sair do Ministério da Justiça. Para o economista-chefe da gestora DMI Group, Daniel Xavier, a concretização da medida ajudaria a aumentar a produtividade nas áreas hoje em conflito:

"Acredito que o governo está pensando de forma mais prática, pensando no desenrolar dos negócios e evitando abordagens mais sociológicas. Não acredito que essa decisão possa arranhar a imagem do Brasil no exterior e bloquear o comércio internacional ou acordos comerciais. É uma visão de inclusão do índio no mundo ocidental. Não é justo pensar que ele possa viver isolado", afirmou Xavier.

O economista Pedro Coelho Afonso também acredita que se a Funai ter outro destino, poderá incentivar a produção, principalmente agrícola, em benefício dos próprios índios.

"Talvez facilite o diálogo na questão do conflito pela terra e dando um destino mais produtivo para elas. Mas, é bom ressaltar que a Funai não trata somente dessa questão da terra, tem os direitos humanos que precisam ser preservados. O governo terá de resolver isso", afirmou Afonso.

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