JOÃO DORIA: A lista de doações para a prefeitura vai de móveis para gabinetes, ovos de Páscoa e até pistolas importadas para a Guarda Civil / Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Raphael Martins
Publicado em 8 de abril de 2017 às 09h28.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h38.
O momento em que um governante chega aos primeiros 100 dias de mandato é um marco da ciência política. Em condições normais, os 100 dias são o intervalo de paciência que o eleitor tem com um novo presidente, governador ou prefeito recém-chegado. Dali em diante, é hora de mostrar que algo foi feito e ser cobrado. É, em geral, um período de lua-de-mel. Assim como os demais prefeitos brasileiros, João Doria, prefeito de São Paulo, completa 100 dias no cargo na segunda-feira. Mas, diferentemente, de todos os outros prefeitos brasileiros, Doria conseguiu não só altas taxas de aprovação como virou um fenômeno político ímpar. Doria fala sem nenhum pudor de abrir o governo à iniciativa privada, recebe doações aos montes, usa e abusa das redes sociais, critica o PT com força. Virou a maior referência de eleitores cansados de tanto corrupção, de tanto estado, de velharia.
Foram 100 dias tão intensos que cada vez mais pessoas se perguntam se, recém-começado, seu mandato não estaria caminhando para um final repentino. Se Doria deixar a prefeitura para se candidatar à presidência em 2018, 20% de seu mandato já ficou para trás. Tanto Doria quanto seu padrinho político, o governador Geraldo Alckmin, negam essa possibilidade. Doria e Alckmin não concederam entrevista a EXAME Hoje.
Os resultados da eleição de Doria impressionam. Em sondagem exclusiva da Editora Abril em parceria com a MindMiners para EXAME.com, 60% dos paulistanos avaliam como bom ou ótimo os 100 dias de gestão. Outros 25% acreditam que o governo Doria é regular e, para 12%, ruim. O instituto Datafolha fez pesquisa semelhante para medir a aprovação de Fernando Haddad (PT) em 2013. Foram 31% de bom e ótimo, 42% de regular e 14% de ruim e péssimo. O início de Haddad supera o dos antecessores José Serra (PSDB) e Gilberto Kassab (ex-DEM). Comparar com outros prefeitos em início de mandato traz justiça aos números porque analisa a percepção inicial do eleitor, e não resultados concretos. Em apenas 100 dias não dá tempo de fazer muita coisa — para o bem e para o mal. Por isso, também, a rapidez de Doria em construir sua reputação é impressionante.
Como se sabe, seu antecessor, Haddad, começou com números razoáveis, mas foi murchando com o passar dos meses. Haddad chegou a julho de 2016, três meses antes da eleição, com 14% de bom e ótimo e 48% de ruim e péssimo. O ex-prefeito deixou de cumprir promessas importantes de campanha, como o número de creches e o Arco do Futuro, por falta de verbas. O desempenho foi ainda mais danificado pela crise de imagem do partido, cujas provas de envolvimento na Operação Lava-Jato surgiram primeiro. O PSDB de Doria passa somente agora a surgir nas investigações de forma mais intensa. “O Haddad foi um prefeito muito recluso, falou pouco com a cidade. Quando entra um prefeito mais ativo, com comunicação forte, a cidade tem uma sensação mais próxima de que tem um prefeito. Precisa ver se a popularidade se transforma em políticas públicas concretas”, diz um político petista de São Paulo.
Uma das mais inovadoras estratégias para se mostrar presente é a gestão de redes sociais. Doria abusa dos vídeos em sua página do Facebook, onde mostra a rotina do prefeito, reuniões com empresários e batidas surpresas nas prefeituras regionais, postos de saúde e inaugurações. Nos intervalos, usa os posts para espinafrar adversários, levando os eleitores mais polarizados à loucura. Ali, também convence seus seguidores das benesses de medidas como a privatização de equipamentos públicos, algo que até pouco tempo era rechaçado pelo eleitorado.
O prefeito tucano desfruta da imagem de ser um novato no mundo político. Ainda de acordo com a pesquisa MindMiners para EXAME.com, o fato de Doria não ser um político tradicional incentivou 59% dos entrevistados a lhe confiarem o voto, mesmo que fosse filiado do PSDB desde os anos 1990. O grande montante de recursos próprios que destinou para sua campanha, algo em torno de 3 milhões de reais, elimina a ponte público-privada que contaminou eleições anteriores.
“Os primeiros 100 dias serviram para formar a narrativa diferente, de gestor e empresário na política. Ninguém teve tanta cobertura e soube criar fatos políticos”, afirma Victor Trujillo, cientista político e especialista em marketing da Escola Superior de Propaganda e Marketing. “O eleitor entendeu a imagem, mas agora quer essa ‘eficiência’ nas políticas públicas, como semáforos funcionando e remédios no posto de saúde etc.”
Uma marca deste início de mandato é o programa de zeladora urbana, o Cidade Linda. Nos 100 primeiros dias, foram 13 corredores cuidados pela prefeitura. Foi o primeiro programa anunciado por Doria no primeiro dia de trabalho, às 6 horas da manhã e vestido de gari. Dias depois, o prefeito apagou grafites e pichações em áreas importantes da cidade e se meteu no meio de uma polêmica. As críticas ainda continuam, mas Doria saiu do episódio, na visão de analistas, fortalecido. A questão, agora, é levar a zeladoria para outras áreas da cidade. Longe do centro expandido, o mato alto e depredação nos muros ainda é cenário comum. Doria alega que o déficit de 7,5 bilhões de reais deixado pela gestão Haddad prejudica a expansão do programa.
A oposição faz sua parte em bater nas atitudes de Doria. Além de cortar oficinas culturais e educacionais, o prefeito é criticado pelo corte no orçamento de secretarias de Cultura e Direitos Humanos e em algumas políticas sociais. O maior exemplo é a redução de 53% do programa Leve Leite, que distribui leite a famílias de baixa renda que mantenham os filhos na escola. Em 2017, serão atendidas 431.700 estudantes, enquanto, no ano passado, havia 916.200 beneficiários. “Três meses é muito pouco para uma gestão, não conseguimos ver ainda o que há de estruturante, exceto o programa de privatizações”, afirma Antonio Donato, líder do PT na Câmara dos Vereadores. “Há um hiperativismo midiático, que não se reflete em realizações na cidade. A zeladoria não funciona onde ele não vai, há cortes bruscos em programas sociais. Ele é um prefeito que tem dinamismo de agenda, gera uma expectativa. Mas uma expectativa sem resultados vai virando descontentamento”.
Doria ainda lida com o ônus do aumento de velocidade nas marginais Tietê e Pinheiros. Apesar de aprovado por boa parte dos paulistanos, houve aumento de acidentes com vítima no período. A Companhia de Engenharia de Tráfego, a CET, registrou 117 acidentes com vítimas nas marginais no segundo mês após o aumento do limite das velocidades nas vias, mesmo com o lançamento do programa Marginal Segura, que visava a frear o aumento quando os limites fossem reajustados.
Em tempos de Lava-Jato…
O tema “público-privado” no mandato de Doria, contudo, não deixou de gerar polêmica nestes 100 dias. Doria acumulou anúncios de parcerias com a iniciativa privada, que doaram desde computadores para escolas da rede municipal até picapes para transformar em viaturas da Companhia de Engenharia de Tráfego, a CET. Segundo membros da administração municipal, a extensa malha de networking do João Doria empresário é o que possibilita tal número de parcerias. “Nenhum outro prefeito conseguiria fazer algo parecido, por isso gera tanta repercussão”, diz um auxiliar. Na pesquisa MindMiners, 19% dos entrevistados aprova a atuação de Doria. Mas, em tempo de Lava-Jato, as desconfianças sobre as possíveis contrapartidas de doações são latentes.
Fica a dúvida sobre quais vantagens as empresas doadoras de bens à Prefeitura poderiam ter. O caso da Ultrafarma é o mais icônico. Amigo de Doria, o empresário Sidney de Oliveira fez uma doação de 600.000 reais para a compra de medicamentos. Um dia depois, Doria posou em meio aos secretários com produtos Ultrafarma para um vídeo de seu Facebook. O espaço publicitário dos mais de 2 milhões de internautas que seguem o prefeito não foram cobrados. Um mês adiante, a Ultrafarma voltou a fazer um agrado ao prefeito, com doações de publicidade do programa de zeladoria Cidade Linda em dois jogos da Seleção Brasileira pelas Eliminatórias da Copa do Mundo. O Ministério Público investiga o caso.
Doria garante que não há qualquer benefício aos doadores. No último dia 28, o tucano diz ter arrecadado 255 milhões de reais nos mais variados itens. No site de Transparência da Prefeitura de São Paulo, há apenas 16,5 milhões de reais declarados, detalhando quem são os doadores. Membros da administração alegam que o volume de doações que o prefeito consegue é maior que a capacidade burocrática de lançar os pedidos.
A (falta de) transparência é um gargalo da gestão até o momento, e marca também a área que o prefeito considera a prioridade número um de seu mandato: a saúde. O jornal El País afirma em reportagem de 23 de março que a gestão Doria desrespeitou prazos da Lei de Acesso à Informação para liberar os números preliminares da fila de exames da rede municipal de Saúde. Uma das principais propostas da área era implementar o programa Corujão da Saúde, que fechou parcerias com hospitais privados para zerar a espera por exames na capital, mas a Secretaria Municipal de Saúde não liberou os dados. “A Controladoria do Município é bastante profissional. É uma legado virtuoso da gestão Haddad. O caso da Saúde é um exemplo de desorganização de algumas pastas que precisamos arrumar. Falhar nisso pode caracterizar improbidade administrativa, ninguém quer isso”, diz um membro da administração municipal.
No último dia 3 de abril, a Secretaria de Saúde anunciou os números finais do Corujão, menina dos olhos da gestão. A fila de 485.300 exames em espera até 2016 foi atendida quase inteiramente — 1.706 pacientes ainda esperam atendimento. A fila, entretanto, não parou. Outros 366.374 procedimentos foram requisitados em 2017. A Prefeitura promete atender 86.918 nos próximos 30 dias.
Para especialistas, acelerar a fila é um golaço, mas não é suficiente. Afinal, passada essa fase inicial de exames, o paciente é encaminhado para outra fila que necessita de atendimento de médicos especialistas, uma carência antiga da cidade. Um plantel de médicos mais capacitado mais próximo de unidades populares de saúde poderia resolver mais rápido as demandas da população, gerando menores custos para diagnóstico.
“Não podemos desprezar uma agilização de exames primários, mas, sozinho, o Corujão só transfere a fila da fase de exames para o médico especialista”, afirma Mauro Aranha, presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. “A mudança estruturante para a saúde é a atenção primária, otimizando as unidades básicas de saúde, as UPAs e a estratégia de saúde da família, em que agentes de saúde atendem em casa com estratégias preventivas. Essa trinca que evita doenças e em caso de enfermidade impede que a patologia se agrave”.
Dentro das promessas de Doria ainda estão programas como o Médico Para Todos, que começa a contratar 800 médicos para postos de saúde de áreas mais pobres, o Doutor Saúde, que fez 850 atendimentos itinerantes na periferia, e o programa Redenção, para dependentes químicos da Cracolândia. “Os chamamentos para médicos concursados começaram e ocuparemos as vagas conforme eles aceitem as posições”, afirma o secretário de Saúde, Wilson Pollara. “Para o Redenção, fizemos a primeira reunião na quinta-feira para montar as equipes de atuação na região. Devemos começar em breve”.
Doria presidente?
Em entrevista nesta semana à agência Reuters, o prefeito João Doria afirmou que fará de tudo para deter o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de chegar à Presidência em 2018. Por fazer “de tudo”, entende-se no PSDB que o prefeito não se oporia a uma candidatura ao Palácio do Planalto.
O prefeito insiste que não é candidato e que apoia seu padrinho Geraldo Alckmin. A atenção está nos verbos. Doria não é candidato. Não diz que não será candidato. Ele apoia Geraldo Alckmin. Mas não diz que recusaria apoio do governador caso houvesse uma virada de mesa. De acordo com aliados do próprio governador, Doria é o político tucano com maior popularidade no país, sobrepondo-se inclusive aos caciques Alckmin, Aécio Neves (MG) e José Serra (SP). Caso Lula chegue ao pleito em 2018 com chance de bater os três grão-tucanos — que ainda podem sofrer abalos com revelações da Operação Lava-Jato — ele será o nome com chances de batê-lo. “As pessoas falam abertamente em Alckmin e cochicham sobre Doria. Como um vulcão que pode entrar em erupção”, disse um aliado a EXAME Hoje.
Daí se origina a estratégia de bater em Lula sempre que possível. Em um das ações do programa Cidade Linda, o prefeito fez questão de gravar um vídeo chamando o ex-presidente de “o maior cara de pau do Brasil”. Em outra oportunidade, o chamou de “bandido”. Nesta sexta, Lula respondeu: “é um político que quer ter dois minutos de glória”. Fato é que vem dando certo. Nas eleições, o antipetismo foi razão de 42% darem o voto a Doria, segundo a pesquisa MindMiners.
Caso Doria seja de fato o nome do PSDB, terá de se explicar com os eleitores paulistanos, evidentemente. Para o cientista político do Insper Carlos Melo, a preocupação do paulistano é que as medidas positivas tomadas por Doria se percam em detrimento de pretensões eleitorais. “Com menos de 100 dias de mandato deixar crescer a impressão de que está jogando um jogo externo ao da cidade que foi eleito é uma quebra de contrato. O que a cidade ganha com um prefeito dedicado a polemizar com o Lula?”, afirma.
Os índices de aprovação de seu início de mandato mostram que, até aqui, o discurso de muito trabalho, de mais empresa e menos estado, é tudo com o que o eleitor paulistano sonhava. Os próximos 100 dias vão mostrar se o fenômeno Doria vai além dos 2 minutos de fama criticados por Lula.