Brasil

Os indígenas ameaçados pela soja, veneno, portos e preconceito

Na zona rural de Santarém, a lentidão de décadas na demarcação de territórios tradicionais vem acirrando os conflitos com fazendeiros

Josenildo Cruz acredita que o assassinato do seu irmão, Belarmino, está relacionado ao conflito agrário; caso segue em investigação (José Cícero da Silva/Agência Pública)

Josenildo Cruz acredita que o assassinato do seu irmão, Belarmino, está relacionado ao conflito agrário; caso segue em investigação (José Cícero da Silva/Agência Pública)

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Clara Cerioni

Publicado em 8 de outubro de 2019 às 10h01.

Última atualização em 8 de outubro de 2019 às 10h03.

“Esse barulho é porque eles estão trabalhando lá”, alerta à reportagem da Agência Pública o indígena Munduruku Paulo da Silva Bezerra, morador da aldeia indígena Açaizal, localizada na área do Planalto Santareno, zona rural de Santarém, Pará. Enquanto conta sua história, ele aponta para um vizinho de cerca, um grande fazendeiro da região.

O contraste é imediato: a casa de Paulo é tomada pela mata e pela produção familiar (pés de graviola, mamão, pimenta-do-reino), a do vizinho é um mar de milho, o grão da vez na chamada “safrinha” do segundo semestre. Na aldeia onde mora, esse contraste é onipresente: as imagens aéreas mostram as grandes fazendas recortando em quadrados as matas nativas numa área em que os indígenas aguardam a demarcação há anos.

“A gente quer que o governo e os fazendeiros parem com essa agressão”, reclama Paulo. Segundo ele, nas épocas de safra de soja, os agrotóxicos são levados pelo vento até a sua casa, contaminando suas plantações. “A gente chega a ficar todo molhado de veneno”, diz.

A aldeia Açaizal é o epicentro do conflito que ocorre no planalto santareno entre os grandes fazendeiros – chamados de “sojeiros” – e os indígenas. Mas não é o único. Além da Açaizal, outras comunidades indígenas e quilombolas da região próxima ao lago do Maicá também pedem a demarcação de suas terras, hoje cercadas e ocupadas por grandes fazendas de commodities.

Na região visitada pela reportagem, entre duas glebas públicas federais, Ituqui e Concessão de Belterra, ao menos quatro aldeias indígenas, habitadas pelos Munduruku, e três comunidades quilombolas — Murumuru, Murumurutuba e Tiningu (ao todo, existem 12 comunidades quilombolas na região do planalto) – veem seus processos de demarcação andar a passos lentos, enquanto as fazendas de grãos se expandem no local desde os anos 1990.

A situação de indefinição na demarcação das terras vem acirrando os conflitos na região. Em novembro do ano passado, delegados da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) constataram a tensão in loco: quando visitaram a região do planalto para realizar uma audiência pública, os delegados foram barrados pelos sojeiros, que ocuparam as estradas de acesso à região com suas caminhonetes.

Além da soja, as comunidades temem os impactos da construção de dois grandes portos na área do lago do Maicá. Um deles é idealizado pela empresa Empresa Brasileira de Portos Santarém (Embraps) com o objetivo de escoar a produção na região do Planalto Santareno.

As obras desse porto estão suspensas pela Justiça Federal desde 2016, após denúncia do Ministério Público Federal (MPF) por ausência de consulta adequada às comunidades tradicionais atingidas pelas obras. Em setembro, o MPF recomendou à Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) do Pará a suspensão do licenciamento do segundo porto, projetado pela distribuidora de petróleo Atem, até que seja feita a consulta prévia às comunidades atingidas pelas obras. Há, também, uma investigação em curso no MPF para apurar a regularidade das licenças emitidas pela Semas em favor da Atem.

Na aldeia Açaizal, a chegada da soja já afetou significativamente o meio ambiente. O principal curso d’água usado pelos indígenas, o igarapé do Açaizal, já foi completamente aterrado pelo uso intensivo das terras – o MPF ajuizou, no último mês de agosto, uma ação civil pública responsabilizando os órgãos ambientais estadual e do município de Santarém pela situação.

O assoreamento, segundo o órgão, deve-se às atividades de monocultura na região. “Não foram observadas práticas de controle de erosão nas lavouras de grãos situadas no entorno do igarapé”, assevera o MPF. A Polícia Federal investiga ainda a contaminação dos cursos d’água por agrotóxicos na aldeia.

Enquanto a demarcação na Fundação Nacional do Índio (Funai) e no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não avança, os fazendeiros se organizam para fazer frente às demandas das comunidades também na área antropológica.

“Dizem que nós não somos índios, somos cearenses”, diz Munduruku

Alguns fazendeiros do planalto contestam a reivindicação do território pelos indígenas e quilombolas. Para tanto, esse produtores contrataram os serviços do antropólogo Edward Luz – perfilado pela Pública em 2015 –, expulso da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) em 2013.

Luz é um antigo integrante da Missão Novas Tribos do Brasil, organização missionária oriunda dos Estados Unidos que visa catequizar populações originárias, e chegou a ser cotado para assumir funções na Funai nos primeiros meses do governo Bolsonaro. Atualmente, ele trabalha produzindo laudos de contestação a áreas protegidas da União destinadas a populações indígenas e outras comunidades tradicionais. Contratado por produtores rurais da região do planalto, Luz elaborou um laudo que confronta os pleitos indígenas e quilombolas.

“Eles dizem que nós não somos índios, somos cearenses”, relata a indígena Graciene Maciel dos Santos, coordenadora da Associação Indígena Munduruku Deauá. “Ele veio aqui, não falou com nenhuma liderança quilombola nem indígena, nem visitou direito a nossa comunidade, falou com alguns moradores e concluiu que aqui não tem índio”, diz Manoel Batista da Rocha, cacique da aldeia Ipaupixuna, dos Munduruku.

“Alguns fazendeiros e sojeiros tentam negar o tempo todo que nós somos quilombolas”, afirmou Gerson Ferreira Betcel, liderança da comunidade quilombola Tiningu, também questionada pelo antropólogo, sobretudo após a delimitação da área pelo Incra, em outubro de 2018.

Procurado, Edward Luz afirmou à reportagem que os pleitos indígenas na região do planalto são fruto do que ele chama de uma “catequese etnogênica”, e sustenta que as reivindicações por demarcação foram artificialmente criadas por movimentos sociais que atuam na região.

Ele acusa a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e outras lideranças ligadas à Igreja Católica de ter estimulado as comunidades do planalto a passar a se reconhecer como indígenas. Diz ter horas de entrevistas e outras evidências, resultado de incursões que fez na região do planalto entre 2017 e 2018, que atestam a suposta fraude étnica.

“O que eu percebi é que há grupos de interesses vários, não totalmente identificados, que estão manipulando a autodeclaração étnica na região para reivindicar direitos sem atender os critérios necessários para ser considerados indígenas ou quilombolas”, afirma. Luz não quis revelar os nomes de seus contratantes.

“Com relação às falas do senhor Edward Luz, creio que o melhor é ignorar o que ele fala, principalmente por conta do desprestígio dele na área em que atua. O processo de luta das comunidades é um direito que elas têm de autorreconhecimento, um direito reconhecido constitucionalmente. Ele foi contratado por produtores de soja da região do planalto e fica muito claro que ele pretende atender o interesse único de ocupar essas terras com a produção de soja”, responde Gilson Rego, coordenador da CPT em Santarém.

Ele ressalta que a CPT tem 45 anos de história no acompanhamento de conflitos no campo e que apenas presta apoio a demandas trazidas por grupos de pequenos agricultores e populações tradicionais em relação a conflitos agrários. Ele nega que a organização crie artificialmente demandas sociais ou de fundo étnico, como alega o antropólogo Edward Luz.

Após uma década, demarcação avança pouco

Nos órgãos federais, onde deveriam ser dirimidas as dúvidas com o processo de demarcação, os processos administrativos se arrastam há décadas. No caso dos quilombolas, já são 16 anos aguardando uma solução.

As três comunidades quilombolas da região — Murumuru, Murumurutuba e Tiningu — tiveram seus processos de demarcação iniciados pelo Incra em 2003: duas delas (Murumuru e Tiningu) possuem Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTIDs) elaborados, ou seja, estão com seus territórios delimitados.

A outra comunidade (Murumurutuba) permanece com processo administrativo de demarcação em aberto, mas ainda não foi delimitada por estar sobreposta à área reivindicada pelos indígenas.

Já os Munduruku do planalto reivindicaram a demarcação de suas terras em 2008. Mas somente dez anos depois – após o MPF ter proposto uma ação judicial contra a Funai e a União pela morosidade do processo de demarcação –, a Funai firmou um acordo com o MPF para constituir um Grupo Técnico (GT) e iniciar os trabalhos para a demarcação da área, em abril deste ano, com a visita de técnicos da Funai.

Em 2015, os indígenas fizeram a autodemarcação do território considerado por eles como tradicional – para isso, entraram em acordo com as comunidades quilombolas Tiningu e Murumuru para a definição dos limites, mas ainda não se chegou a um acordo com os moradores de comunidade quilombola Murumurutuba.

Segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), mais de 600 indígenas residem nas quatro aldeias do território autodemarcado. A Funai conseguiu o bloqueio integral da maior parte das glebas públicas onde estão as comunidades indígenas e quilombolas, ou seja, as fazendas no local não podem ser regularizadas até que terminem os trabalhos administrativos de demarcação.

Segundo o procurador Luís de Camões Boaventura, do MPF de Santarém, as fazendas da área reivindicada pelas comunidades tradicionais possuem títulos frágeis do ponto de vista fundiário.

“Em sua grande maioria, estão em glebas públicas [as fazendas] e não possuem títulos e nem sequer protocolos de regularização fundiária. São posses, o sujeito se apossou da área”, afirma o procurador.

Em janeiro de 2018, sobre o perímetro indígena autodemarcado existiam 101 registros do Cadastro Ambiental Rural (CAR), que cobriam quase a totalidade do território. O CAR é um registro autodeclaratório apresentado por produtores rurais às secretarias de Meio Ambiente estaduais. Quando alguém declara um CAR, está dizendo aos órgãos ambientais que é dono daquela área. Ele é um dos documentos utilizados em tentativas de grilagem de terras.

A expansão das lavouras das fazendas está ligada ao desmatamento, situação constatada em dados oficiais – levantamento da Semas apontou dez alertas de desmatamento iguais ou superiores a 60 hectares só no perímetro autodemarcado pelos Munduruku entre 2010 e 2015. “A soja é uma praga para nós. Quando é época de safra, eles avançam sobre a nossa mata e cada vez estão derrubando mais”, afirma o cacique Josenildo Cruz, da aldeia Açaizal.

A indefinição na destinação das terras do planalto vem restringindo o acesso a locais tidos como sagrados pelos indígenas. É o caso da Cachoeira da Cavada, próxima à aldeia São Francisco da Cavada, cercada no início dos anos 2000. Hoje o local é um balneário turístico, localizado no interior de uma pequena fazenda, onde é preciso pagar uma módica taxa para ter acesso.

Em dezembro do ano passado, os indígenas organizaram uma excursão para levar a juventude das aldeias para conhecer o local, mas foram impedidos de entrar. “Isso pra nós é inaceitável. A gente sempre usou aquela cachoeira para tomar banho e tem locais que consideramos sagrados. Hoje temos que pagar para entrar”, protesta o cacique Manoel do Lago.

A Pública procurou o Incra e a Funai para tratar da morosidade na demarcação das terras, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.

Indígenas falam em ameaças; duas mortes suspeitas em investigação

“Desde que a gente entrou para defender as nossas áreas, a gente vem sofrendo ameaças”, afirma o cacique Manoel do Lago, da aldeia São Francisco da Cavada. “A gente ouve histórias de que tem matador na nossa área, que, se não parar de um jeito, vai parar de outro, esse tipo de coisa”, relata.

Além das ameaças verbais, duas mortes são consideradas suspeitas pela comunidade. Em setembro do ano passado, o quilombola Haroldo Betcel foi morto por golpes de chave de fenda por um caseiro – identificado apenas como Doriédson –, que trabalhava numa fazenda próxima à comunidade do Tiningu. Segundo a Repórter Brasil, havia um conflito prévio entre o patrão de Doriédson, fazendeiro local, e moradores da comunidade quilombola – a Polícia Civil de Santarém descartou a participação do fazendeiro.

Também em setembro de 2018, o irmão do cacique Josenildo Cruz, Belarmino Cruz, foi assassinado durante uma visita à cidade de Mojuí dos Campos. “Ele foi morto com seis facadas nas costas e, segundo o assassino, ele foi assassinado por engano.

Existe uma investigação em curso em relação a isso, mas a gente não pode negar que algumas pessoas ouvidas pela polícia disseram que não era pra ter sido meu irmão, era pra ter sido eu, como liderança”, afirma Josenildo. Outra linha de investigação dá conta de que Belarmino foi assassinado em uma briga de bar. O caso está sendo investigado pela Polícia Civil de Santarém.

*Reportagem publicada originalmente no site da Agência Pública

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