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O que há de errado na "Lei Neymar da Penha", segundo Marina Ganzarolli

Cofundadora da Rede Feminista de Juristas diz que recado do projeto para vítima de violência é "não denuncie porque você vai sofrer processo e se ferrar"

A advogada Marina Ganzarolli (Victor Moryama/Divulgação)

A advogada Marina Ganzarolli (Victor Moryama/Divulgação)

João Pedro Caleiro

João Pedro Caleiro

Publicado em 16 de junho de 2019 às 08h00.

Última atualização em 16 de junho de 2019 às 08h00.

Na última quarta-feira (6), o deputado federal Carlos Jordy (PSL-RJ) apresentou na Câmara projeto de lei que altera o artigo do Código Penal sobre “denunciação caluniosa”. Se aprovada a proposta, a pessoa condenada por fazer uma falsa acusação envolvendo “crimes contra a dignidade sexual” pode ter a pena aumentada em um terço.

Jordy anunciou o fato no Twitter e não demorou para que o PL fosse apelidado como lei “Neymar da Penha”, em referência ao caso do jogador acusado de estupro por uma modelo.

Ao jornal Estadão, o parlamentar admitiu que “o momento atual foi determinante” para que apresentasse o PL. O pai do jogador chegou a agradecer “o apoio” mas rejeitou os projetos de lei propostos em nome do filho.

Em entrevista à Pública, a advogada Marina Ganzarolli, cofundadora da Rede Feminista de Juristas e doutoranda em Sociologia Jurídica pela Universidade de São Paulo (USP), critica a proposição do projeto.

Ela afirma que, além de desnecessária, uma vez que o Código Penal já prevê punições a falsas denúncias, a medida “não tem nada a acrescentar ao enfrentamento da violência e tampouco ao enfrentamento do falso testemunho”.

Para a advogada, o PL “Cria mais uma barreira para algo que já possui diversas barreiras, traz mais um obstáculo, mais um desincentivo. Passa um recado para a mulher vítima de violência: não denuncie, porque você vai sofrer um processo e vai se ferrar, já que vai ser sua palavra contra a dele e ele vai ganhar”, explica.

Ganzarolli destaca ainda que os crimes de violência sexual são, na verdade, subnotificados devido às barreiras que as vítimas – em sua maioria mulheres – encontram para denunciá-los. “O gargalo se inicia antes da delegacia e prossegue pelo Judiciário. Ainda carecemos de capacitação em gênero adequada para as polícias militar e civil e aos juízes que integram as Varas de audiências de custódias.”

Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que os registros de estupro vêm aumentando no país e especialistas dizem que o cenário pode ser ainda pior porque há subnotificação. Segundo sua experiência no atendimento a mulheres que sofreram violência sexual, por que as vítimas ainda têm dificuldade de denunciar esses crimes?

De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a notificação dos crimes de violência sexual no Brasil é de 35% [dados de 2015], ou seja, é um crime extremamente subnotificado. Isso porque existe um custo psicológico, econômico, emocional e social para a vítima que denuncia.

O que observamos de forma estrutural e sistêmica é que a vítima é revitimizada e culpabilizada não só pela sociedade mas pelo próprio Judiciário, e nisso incluo todo o sistema de Justiça, da porta da delegacia ao promotor, juiz, desembargador.

Quando falamos hoje de crimes sexuais no Brasil, estamos basicamente falando de crimes contra a criança e o adolescente – aproximadamente 70% deles são contra menores de 17 anos e cerca de 50% são contra menores de 13, segundo estatísticas da Plan International [a organização utiliza dados do Atlas da Violência 2018, produzido pelo Ipea e Fórum Brasileiro de Segurança Pública com números de 2016].

Estamos tratando de uma violência que acontece entre quatro paredes, num ambiente doméstico ou privado, cujo agressor é do círculo social e afetivo da vítima – pai, padrasto, irmão, cunhado, vizinho da família ou amigo.

Estatisticamente falando, o usual é haver uma demora na denúncia, a mulher vai entender o que aconteceu com ela ou sentir a necessidade e coragem de falar anos depois, e a vítima inclusive continua em contato com o agressor porque ele é da família dela, da faculdade, escola, trabalho.

Na prática, quais os maiores entraves para que vítimas de violência sexual façam a denúncia?

Para ela entrar na delegacia, já rompeu uma série de barreiras, pois se chegou nesse estágio é porque já está entre os 35% de notificação. Todos os dias recebo uma denúncia dizendo “doutora, fui à delegacia fazer um BO e saí sem ele porque me dissuadiram” – isso na capital mais rica do país.

O gargalo se inicia antes da delegacia e prossegue pelo Judiciário. Ainda carecemos de capacitação em gênero adequada para as polícias militar e civil e aos juízes que integram as varas de audiências de custódias.

Ao longo desses anos, com a Lei Maria da Penha, conseguimos investir na capacitação dos juízes e juízas das varas de violência, mas não conseguimos formar todos os profissionais. Aqueles juízes que estão nas varas de execução penal e nas varas criminais, que fazem audiência de custódia, muitas vezes não passaram pela capacitação e sensibilização necessárias para o enfrentamento da violência baseada no gênero.

Cada tipo de crime é uma especialidade dentro do Direito Penal; a violência baseada no gênero requer capacidade técnica específica e existem estudos e teorias sobre isso. Infelizmente, falta a capacitação dos agentes operadores do Direito para o enfrentamento desse tipo de crime.

A “denunciação caluniosa” em crimes de abuso sexual é uma questão no Brasil? Casos assim ocorrem com frequência e configuram um problema que precisa de solução urgente?

Hoje, no Brasil, temos um índice muito pequeno de falso testemunho nos crimes sexuais, semelhante ao de outros crimes. É um dado quase residual: os falsos testemunhos estão em porcentagem baixíssima e são desconstruídos ao longo dos inquéritos. O nosso sistema de Justiça preza o in dubio pro reo, busca garantir o amplo contraditório, o direito à defesa, e exatamente por isso os falsos testemunhos se desconfiguram muito facilmente.

A mulher que entra em uma delegacia e descreve uma situação de violência sexual – e é interessante observar que essa vítima específica, do caso do Neymar, foi à delegacia e não à imprensa – já rompeu uma série de barreiras sociais, culturais e muitas vezes geográficas, mas com certeza será questionada sobre seu próprio comportamento sexual e sua autonomia. “O que você estava fazendo, por que estava lá, que roupa estava vestindo, quantos relacionamentos sexuais já teve, é casada?”

Da minha experiência – há treze anos atendo vítimas de violência doméstica e sexual –, observo que nenhuma mulher ou ser humano em sã consciência quer passar por tamanho constrangimento. Não é agradável, ameno ou simples; é uma revitimização super pesada, tanto que eu mesma, como advogada, faço questão de conversar com as vítimas que atendo sobre o quão violento será o processo, para que iniciem o procedimento com plena consciência do que pode acontecer.

Temos uma dificuldade no enfrentamento aos crimes sexuais porque quase 90% das vítimas são mulheres e em nossa sociedade existe desigualdade de poder entre homens e mulheres, o que não é uma questão de opinião, o machismo é quantificável – somos 51% da população brasileira mas ocupamos 15% das cadeiras da Câmara dos Deputados, ganhamos cerca de 20% a menos que os homens nos mesmos cargos.

Aos homens é ensinada a ideia de que podem exercer sua sexualidade em todos os lugares, já às mulheres não cabe o exercício autônomo e livre da sua sexualidade. Negar que essa é uma expressão cultural da nossa sociedade que obviamente reflete no enfrentamento à violência sexual é negar um fato. É óbvio que qualquer mulher que sofra violência e busque seus direitos será colocada sob julgamento.

Na justificativa de seu projeto, o deputado Carlos Jordy diz que “as declarações da suposta vítima constituem importante meio de prova” em processos de violência sexual e que às vezes essas declarações são “suficientes para sustentar a condenação do réu na falta de provas mais consistentes”. Isso se observa na prática?

Queria eu que o Judiciário valorizasse a palavra da vítima. Não valoriza, pelo contrário: in dubio pro reo. Todo processo penal terá no mínimo o depoimento da pessoa que acusou e o da pessoa acusada, isso é básico, são os dois primeiros elementos de prova.

A grande maioria das absolvições ocorre precisamente porque [os elementos de prova] se reduzem à palavra do agressor e da vítima, e aí, na dúvida, pro reo. Temos condenações em casos como o do estupro coletivo do Rio [em 2016, uma adolescente de 16 anos foi violentada por cerca de 30 homens em uma comunidade], em que havia uma gravação, algo inegável, ou quando há outras testemunhas.

Quando é a palavra da vítima contra a do agressor, invariavelmente é in dubio pro reo, o acusado é absolvido. O que a gente precisa, no Brasil, é a valorização do depoimento da vítima, precisamente o contrário do que ocorre hoje.

De que forma os crimes de violência sexual são tratados pela Justiça brasileira?

Hoje no Brasil temos um índice baixíssimo de condenação em crimes sexuais, pouquíssimas pessoas são condenadas por estupro. Por sua característica intrínseca de ser cometida em um ambiente privado, em quatro paredes, normalmente por um conhecido, na grande maioria dos casos de violência sexual é a palavra da vítima contra a do agressor, os elementos de prova possíveis são muito restritos em termos de testemunho.

A construção da narrativa se dá sempre a partir da perspectiva da vítima. Quando uma pessoa vai denunciar um furto ou roubo, ninguém pergunta a ela porque estava usando um Rolex, por que tem o carro do ano ou mora no Jardim América. Para a vítima de violência sexual, sim: há um deslocamento do foco. Quando há um crime, tenta-se traçar o perfil do agressor, e não da vítima, porque a intenção é condenar o agressor.

Esse é um movimento natural em todos os processos, menos nos de crimes sexuais, em cuja composição entra o fator cultural. Isso é muito problemático porque cria uma série de mitos no enfrentamento à violência contra a mulher, mitos estes construídos ao longo de séculos.

Um exemplo é o romance da Lolita e a ideia de que uma jovem mulher sedutora e precoce é capaz de encantar e ludibriar um homem direito. Essas ideias permeiam a cultura ocidental há muito tempo e são uma barreira cultural ao enfrentamento da violência sexual contra a mulher.

No geral, qual a sua avaliação sobre a proposição desse projeto de lei?

Essa proposta de lei, do ponto de vista científico, é absolutamente infundada, e do ponto de vista material, do que temos hoje enquanto barreiras no enfrentamento da violência contra a mulher, é totalmente desmedida e descabida. Já possuímos um tipo penal para denunciação caluniosa, não existe necessidade de criarmos um tipo específico para denunciação caluniosa nos crimes sexuais.

Essa é muito mais uma medida factóide e oportunista diante de um caso de grande relevância na esfera pública envolvendo o Neymar, que vejo como uma ótima oportunidade de discutirmos a gravíssima situação da violência sexual no Brasil. Temos um índice baixíssimo de condenações e processos de violência sexual, são poucos os casos em que conseguimos disputar o Judiciário, as mulheres não querem denunciar.

Essa medida não tem nada a acrescentar ao enfrentamento da violência e tampouco ao enfrentamento do falso testemunho. Cria mais uma barreira para algo que já possui diversas barreiras, traz mais um obstáculo, mais um desincentivo. Passa um recado para a mulher vítima de violência: não denuncie, porque você vai sofrer um processo e vai se ferrar, já que vai ser sua palavra contra a dele e ele vai ganhar, pois a você não cabe o exercício da sexualidade e a ele sim.

E também um recado aos homens, não só aos agressores, como também àqueles que nunca agrediram mas que a partir disso se sentem legitimados a agredir, ou sentem que haverá impunidade para uma eventual denúncia.

Que tipo de medida – lei, política pública ou alguma outra – por parte das autoridades seria mais urgente para combater a violência sexual contra a mulher no Brasil?

Falta no Brasil um sistema de enfrentamento à violência sexual. A partir da Lei Maria da Penha, considerada pela ONU um dos melhores marcos de enfrentamento à violência doméstica do mundo, conseguimos desenvolver um sistema de proteção aos direitos da mulher. Ele envolve delegacias e Varas especializadas em Violência Doméstica, capacitação e política de reciclagem específica para os técnicos e operadores do Direito que estão nessas áreas especializadas, uma série de normativas do sistema público de saúde e de assistência social voltadas pra isso.

Por que a Lei Maria da Penha é boa? Porque ela não fala de cadeia, não fala de prisão, fala de assistência social, de saúde, de medidas protetivas, de todas as outras coisas que garantem que a mulher vítima de violência doméstica possa romper o ciclo da violência. Porque prender o cara não resolve, ele sai e volta a bater nela ou bate em outra.

A Lei Maria da Penha é boa porque é interdisciplinar. E isso falta ainda no Brasil, não do ponto de vista legal, mas do ponto de vista da política pública. Por exemplo, uma possibilidade seria – eu defendo muito isso como uma medida viável e factível – incluir na competência das Varas de Violência Doméstica a violência sexual contra a mulher. Que as Varas da Violência Doméstica sejam não só de Lei Maria da Penha, mas de todos os crimes baseados em gênero, porque é possível aplicar uma política pública de educação para as Varas de violência mas não é possível fazê-la para todos os operadores de Direito de todas as varas de todos os tribunais.

A gente trata a parte criminal na Vara de Violência Doméstica e a parte de divórcio, guarda, pensão, na Vara de Família. Isso é um problema, porque a juíza da vara de violência já tem um desenvolvimento técnico no assunto e tira a visita, já que o pai é agressor, mas o juiz da Vara de Família restitui a visita e fica um juiz brigando com o outro. Aí a gente não aplica a Lei Maria da Penha totalmente.

Não acho que é uma carência legal, não é uma carência legislativa, a gente já tem leis suficientes para tratar dos crimes sexuais, recentemente teve a lei da importunação sexual, alteraram o crime de estupro, agora tem o estupro corretivo, o coletivo, tudo isso são alterações penais, criminais e ninguém é preso por estupro no Brasil, então não adianta ficar mexendo no sistema penal. Tem que mexer no sistema de proteção, assistência social, saúde, educação.

A barreira não é legislativa, mas sim de aplicação. Temos a Lei do Minuto Seguinte, que trata do atendimento do estupro no SUS, junta todas as normativas do Ministério da Saúde e diz para o operador da saúde como ele tem que atender a vitima de violência sexual. É uma lei que fala “você tem que dar a pílula do dia seguinte, você tem que dar o coquetel antirretroviral, você tem que informar que ela tem o direito legal a fazer o aborto, você tem que recolher o material biológico do canal vaginal”.

Tudo isso que está lá é óbvio, não precisaria estar em uma lei. Isso já existia, já estava nas normativas do MS. Na época, a presidente [Dilma Rousseff] fez essa lei porque estava se questionando se podiam atender a vítima ou não. A gente tem lei, tem um monte, o problema é a aplicação.

Eu acompanhei um caso de uma menina estuprada que foi toda ensanguentada para o hospital Albert Einstein porque era virgem e a mulher que a atendeu deu um contraceptivo de emergência pra ela, disse “vai na delegacia fazer um B.O” e a mandou ela embora. Não fez um laudo, não recolheu o material, não deu coquetel antirretroviral – disse que era caro, ia aparecer na cobrança do seguro saúde e o pai dela iria ficar sabendo. Não disse nem que ela poderia pegar o coquetel em qualquer posto de saúde em até 72h, ela soube disso uma semana depois quando já não podia mais tomar. Não estou falando de um hospital público de periferia, estou falando da falta de informação técnica no Einstein. É esse nível de precariedade que a gente tem na aplicação da legislação que já existe.

Então o que a gente precisa hoje pra enfrentar a violência sexual contra a mulher e principalmente contra a adolescente que é o mais grave no Brasil estatisticamente falando é de educação. A gente precisa de investimento em educação. Não adianta nada eu como advogada só trabalhar com a vítima e com o agressor. Eu preciso que o jovem seja trabalhado lá atrás sobre o que é consentimento.

A gente tem legislações que dizem que a ausência de “não” expresso ou o silêncio não são sinônimos de “sim”. Sim é sim. Consentimento é expresso e pode ser retirado a qualquer momento. Ele não é definitivo e não é universal. Senão não existiria estupro marital. Não é a roupa, não é a bebida e não é o comportamento. O único responsável pela violência é aquele que a comete, é o agente. Precisamos de educação. De lei a gente está bem.

*Matéria publicada originalmente pela Agência Pública

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