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O que Cunha ensina sobre política

Presidente da Câmara escancarou que o “presidencialismo de coalizão” é o fio condutor do sistema político brasileiro

EDUARDO CUNHA: Segundo empreiteiro, uma reunião sigilosa, em 2015, na casa do então presidente da Câmara, definiu a contratação da Kroll para sabotar Lava-Jato / Adriano Machado / Reuters

EDUARDO CUNHA: Segundo empreiteiro, uma reunião sigilosa, em 2015, na casa do então presidente da Câmara, definiu a contratação da Kroll para sabotar Lava-Jato / Adriano Machado / Reuters

Raphael Martins

Raphael Martins

Publicado em 13 de setembro de 2016 às 19h15.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h46.

Eduardo Cunha se foi. Mas sua ascensão meteórica e sua queda retumbante deixam um cheiro de enxofre no ar, uma sensação de que, como escreveu Shakespeare em Hamlet, há algo de podre no reino. Que sistema político é esse? Há esperança à vista? E que lições Cunha deixa?

Não foi pouca surpresa o placar da votação que determinou a cassação do mandato de Cunha nesta segunda-feira. Entre sua eleição ao cargo de presidente da Câmara dos Deputados e sua cassação, foram mais de 200 votos de diferença, que cravaram o massacre do placar final em 450 a 10 por sua saída.

Cunha ascendeu à cadeira central da Mesa Diretora como o mais influente presidente que houve em períodos democráticos, comparável apenas a Ulysses Guimarães. O paulista, lembrado por ser o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, foi político de carreira na Câmara. Exerceu nada menos que 11 mandatos consecutivos, e foi presidente da Casa em três ocasiões. Era um líder nato por tempo de influência, não à toa dá nome ao plenário nos dias de hoje.

Cunha subiu de outra forma, de maneira meteórica, apoiado em três fatores que o deram um status nunca antes visto: a organização do centrão como grupo político relevante em momento que a presidência o negligenciou, o amplo conhecimento do regimento da Câmara e dos meandros de Brasília, além de uma agressividade política incomum. Cunha agregava parlamentares através de promessas de “retomada de poder” aos esquecidos. Conduziu esse poder com exímio conhecimento das regras, usando o regimento para refazer votações e desmontar de comissões. A célebre demora de seu processo de cassação é o mais conhecido exemplo das manobras.

A ausência de grandes lideranças no âmbito político, a começar pela ex-presidente Dilma Rousseff, criou o caldo de cultura para que Cunha se desenvolvesse. Ele um líder que usou a resistência do Congresso à ex-presidente para ganhar poder. Antes das eleições, atacou o governo para agradar a oposição, enquanto dentro do PMDB gerou pressão em setores governistas por mais participação na reforma ministerial, crescendo em duas frentes. Durante a pré-campanha da chapa Dilma/Temer, foi o principal nome entre os que pediam a extinção da aliança. Já no segundo mandato, reforçou a agenda conservadora e deu a mão aos deputados abandonados do baixo clero, articulando sua chegada à presidência e, em seguida, derrotas atrás de derrotas ao governo.

Cunha escancarou que o “presidencialismo de coalizão” é o fio condutor do sistema político brasileiro. Cientistas políticos consultados por EXAME Hoje acreditam que foi a negligência de Dilma aos “pequenos” o fator fundamental para um crescimento exacerbado de sua rejeição, junto com a figura de Eduardo Cunha como seu opositor. Um momento de vulnerabilidade de lideranças, portanto, o fez mostrar aos aliados o que alcançariam se organizados.

Mas onde a organização descambou para o completo abandono?

Cunha escorregou justamente onde não poderia. A principal bandeira antipetista era a corrupção e Cunha adquiriu status de combatente — ainda que denúncias antigas da época da Telerj o perseguissem na memória, capitalizou por ser contra o “mal maior”. Quando surgiram as primeiras revelações da Operação Lava-Jato, que implicavam o alto escalão do governo, Cunha talvez não esperasse é que estilhaços do tiroteio ao PT o atingiriam. Hoje, são duas ações penais e seis inquéritos por corrupção no Supremo Tribunal Federal que acabaram com sua imagem frente a partidos e a opinião pública.

Também através das investigações do Ministério Público Federal e Polícia Federal, foi descoberta a influência de Cunha entre as empresas para arrecadar recursos para campanha de deputados, o que explica apoio incondicional de tantos parlamentares até as últimas votações de sua cassação, em especial de novatos. A agenda o tornou “radioativo”.

“Cunha faz parte de um hall de líderes que se valeram da fragilidade de um momento específico, por isso a queda é gigantesca, e repentina. A partir do momento que interesse muda, viram as costas. Veja que líderes que construíram base continuam com influência, como Lula, Fernando Henrique Cardoso e José Sarney”, afirma Thiago Vidal, coordenador de política da Prospectiva Consultoria.

A derrocada de Cunha, portanto, deixa não só a lição de que uma base construída no casuísmo vai abandoná-lo no casuísmo, mas também alerta para a falta de agenda programática dos partidos políticos. Cunha juntou partidos de linhas ideológicas diversas centrados em poder, mostrando a falta de coerência entre as legendas. A repetição de sua estratégia esbarra na cláusula de barreira, que pretende reduzir o número de partidos no Congresso de acordo com mínimo de votos para eleição. Além de facilitar os acordos entre menos siglas, as linhas programáticas ficam mais claras ao eleitor na hora da escolha dos representantes.

“Uma ascensão como essa só foi possível porque Cunha agiu de forma suprapartidária, não em nome do PMDB. Era o partido do ‘entorno do Cunha’. O personalismo domina a política e suprime o debate público. O bloco dos evangélicos e do agronegócio, por exemplo, tem mais coesão que as bancadas. A ação coletiva fica restrita aos cargos pelos cargos, sem programa, sem proposta, sem nada”, afirma Marco Antonio Teixeira, professor do departamento de Gestão Pública da FGV de São Paulo.

Nesta terça-feira, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado aprovou uma proposta que reforça a fidelidade partidária, elimina as coligações nas eleições proporcionais e instaura uma cláusula de barreira de 2% dos votos válidos em 2018 e 3% a partir de 2022. É um primeiro passo: o projeto de Aécio Neves (PSDB-MG) e Ricardo Ferraço (PSDB-ES) vai ao Plenário para dois turnos de votação, depois mais dois na Câmara antes da sanção presidencial. Pelo menos nesse sentido, o nefasto exemplo de Eduardo Cunha pode servir para um bem maior.

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