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No RS, disputa jurídica mira uso de contraceptivos em meninas abrigadas

MP e a Bayer firmaram um termo de cooperação para doação de 100 kits de um dispositivo a meninas acolhidas, menores de 18 anos; acordo foi parar na justiça

Contraceptivos em meninas: o acordo pegou de surpresa o Conselho Municipal de Saúde (CMS) de Porto Alegre, que não foi consultado (Mario Tama/Getty Images)

Contraceptivos em meninas: o acordo pegou de surpresa o Conselho Municipal de Saúde (CMS) de Porto Alegre, que não foi consultado (Mario Tama/Getty Images)

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Clara Cerioni

Publicado em 30 de março de 2019 às 08h20.

Última atualização em 30 de março de 2019 às 08h20.

Um dispositivo de plástico medindo pouco mais de 3 centímetros centraliza, desde 2018, uma batalha judicial envolvendo instituições públicas em Porto Alegre. Conhecido comercialmente como Mirena, o sistema intrauterino liberador de levonorgestrel (SIU-LNG) é um contraceptivo produzido pela farmacêutica alemã Bayer e tem o formato de um T.

Sua haste armazena o hormônio sintético que lhe dá nome e vai sendo liberado em pequenas doses no útero, o que provoca reações capazes de impedir a gravidez.

Apesar de não estar incorporado à rede do Sistema Único de Saúde (SUS), o Ministério Público do Rio Grande do Sul e a Bayer firmaram um termo de cooperação para a doação de 100 kits do implante a meninas acolhidas em abrigos da cidade – ou seja, menores de 18 anos – que “manifestassem interesse” no método contraceptivo.

Segundo o acordo fechado entre a empresa e a promotora da Infância e Juventude Cinara Vianna Dutra Braga, a inserção seria feita nos ambulatórios do Hospital Materno Infantil Presidente Vargas e do Hospital de Clínicas – vinculado à Universidade Federal do estado, a UFRGS –, cujos representantes também assinam o documento. O termo apresenta ainda como signatária a Secretaria Municipal de Saúde.

O acordo pegou de surpresa o Conselho Municipal de Saúde (CMS) de Porto Alegre, que não foi consultado, embora a lei determine que o órgão aprecie previamente todo novo contrato ou convênio estabelecido entre o poder público e entidades privadas.

Junto com outras organizações, o CMS emitiu, em julho, nota pedindo a suspensão do acordo por enxergar nele “explícita violação de direitos das adolescentes” e desrespeito às “atribuições legais das instâncias de controle social, diretamente envolvidas nas Políticas de Saúde e de Assistência Social”.

Um abaixo-assinado foi lançado por professores da UFRGS, alegando que o termo induziu a escolha das meninas por um determinado método contraceptivo sem garantir a elas acesso a informações sobre outras alternativas disponíveis, além de focar a ação apenas em evitar a gravidez, deixando de fora a discussão sobre infecções sexualmente transmissíveis.

Também naquele mês, a imprensa divulgou a história, que começou a repercutir nas redes sociais. Uma audiência pública sobre o assunto chegou a ser marcada para 5 de setembro na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, mas foi cancelada.

A mobilização social em torno do tema culminou, dias depois, na protocolização de uma ação civil pública formulada pelas Defensorias Públicas Federal e Estadual e pela Themis, ONG que trabalha pela promoção ao acesso das mulheres à Justiça, contra as instituições responsáveis pelo termo de cooperação.

A peça pede a suspensão imediata de seus efeitos e traz informações cruciais sobre a execução do acordo, como, por exemplo, a de que meninas de apenas 12 e 13 anos assinaram declarações de interesse para avaliação médica e colocação do Mirena em uma palestra sobre o método realizada na sede do Ministério Público – o que, para os autores do processo, configura indução de escolha e vício de consentimento.

Mas a disputa na Justiça continua: seu último capítulo ocorreu em 6 de março, quando os defensores públicos entraram com recurso  para reverter a decisão da juíza Paula Beck Bohn, da 2ª Vara Federal de Porto Alegre, que em dezembro negou a suspensão do termo.

É aguardado o julgamento em segunda instância, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). Enquanto houver pendências judiciais, o Ministério Público assegurou que não iniciará a colocação dos dispositivos nas adolescentes e a instituição garante que nenhum deles foi inserido até o momento.

O caminho até o Mirena

A promotora Cinara Vianna Dutra Braga afirma que buscou pessoalmente a Bayer para propor a parceria porque uma das casas-abrigo de Porto Alegre a teria procurado pedindo ajuda.

“Eles me trouxeram a seguinte consideração: muitas das meninas já chegam no acolhimento com vida sexual ativa e, por mais que haja orientação de se preservarem, de tomarem cuidado, usarem preservativo, elas precisam fazer o uso de anticoncepcional para não engravidarem”.

A promotora conta que levou então a demanda à Secretaria Municipal da Saúde e que, em reunião com a coordenadora de Saúde da Mulher, Luciane Rampanelli Franco – a Pública enviou a ela uma solicitação de entrevista, mas não obteve resposta – teria sugerido o Mirena.

“A pílula elas não tomam com regularidade, o injetável tem carga hormonal muito forte e elas também não gostam. O implante [dispositivo inserido sob a pele] dura três anos, o Mirena, cinco. Quando a coordenadora me trouxe essa informação, eu disse: ‘Bom, quem é que fabrica o Mirena?’. ‘A Bayer.’ ‘Qual outra instituição?’ ‘Não, só a Bayer’ [no Brasil, Mirena é o único DIU hormonal no mercado]. ‘Então vamos marcar um horário com a Bayer’.”

A promotora diz que a empresa ofereceu a doação de cem kits do Mirena para atender as adolescentes abrigadas com vida sexual ativa – número estabelecido por ela mesma com as instituições de acolhimento. Antes disso, afirma que consultou, por conta própria, médicos de “suas relações”, além de profissionais de hospitais de Porto Alegre e universidades do estado, para entender se o Mirena era de fato um método eficaz: “Fiz um levantamento com vários especialistas para verificar sua adequação inclusive para situações de meninas, não adolescentes, mas crianças, de 12 anos, se haveria alguma contraindicação”, narra.

“Todos os profissionais e professores disseram: é o mais indicado, é o que a gente prescreve. De uma forma geral, a indicação foi de que o Mirena faria bem à saúde das meninas. Qual o seu ônus? O preço. Mas a gente conseguiu a custo zero e os hospitais fariam a inserção a custo zero também.”

A enfermeira Aline Veleda, pesquisadora da área de mulheres, vulnerabilidade e saúde e
professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), contesta a aplicação do Mirena em um público tão jovem. “Para meninas tão novas nessa situação de vulnerabilidade, o Mirena não é a primeira escolha”, explica. “Ele só cuida da parte obstétrica dessas meninas, elas não vão ficar grávidas, mas e todo o resto? Por que não investir em educação sexual, que aí se previne tanto a gestação quanto as infecções sexualmente transmissíveis?”.

Essa preocupação encontra base na realidade: Porto Alegre lidera o ranking de capitais com maior taxa de detecção de casos de aids em 2017, com 60,8 a cada 100 mil pessoas, segundo o último Boletim Epidemiológico de HIV/Aids do Ministério da Saúde, de novembro de 2018.

Os hospitais teriam entrado na história depois que o Ministério Público já havia firmado o acordo com a Bayer, conforme explica a ginecologista Jaqueline Lubianca, coordenadora do Ambulatório de Planejamento Familiar do Hospital de Clínicas. “Fomos contatados no sentido de se seria possível fazermos a avaliação dessas meninas e que, se estivesse adequado, promover a colocação do DIU [Mirena]”, declara.

“Nós nos colocamos à disposição para fazer a inserção desde que mediante uma consulta completa, que conseguisse apresentar para a menina todos os métodos que ela poderia utilizar.” A Pública tentou contato com a também ginecologista Adriani Galão, diretora do Hospital Materno Infantil Presidente Vargas, mas não recebeu resposta.

E o consentimento?

Em 6 de junho de 2018, o termo de cooperação foi assinado na sede do Ministério Público com a presença do procurador-geral de Justiça, Fabiano Dallazen, chefe do MP no estado, e de subprocuradores. Naquele dia, jovens em situação de acolhimento institucional assistiram a palestras ministradas por três médicos – um deles, Jaqueline Lubianca.

Foram discutidos temas como gravidez na adolescência e métodos anticoncepcionais, com foco “numa comparação entre o DIU de cobre e o Mirena, já que era esse o objetivo dos esclarecimentos”, diz Jaqueline.

No dia 27 daquele mesmo mês, mais uma palestra foi dada pelo MP às meninas acolhidas – na pauta, novamente o contraceptivo da Bayer. No site do Abrigo João Paulo II, uma das instituições chamadas para o evento, uma nota informa que “as adolescentes participaram da palestra promovida pela Dra. Jaqueline Lubianca”, que “aprofundou a discussão e reflexão sobre gravidez na adolescência” e também a “explicação sobre o Mirena”.

Um fato ocorrido antes do encontro, porém, chamou atenção dos autores da ação civil pública: um e-mail enviado em nome de Cinara Vianna Dutra Braga pedia não só a presença das jovens abrigadas e de equipes técnicas vinculadas ao serviço de acolhimento institucional, mas também a assinatura de uma declaração de interesse, enviada em anexo, por aquelas que desejassem passar por uma consulta prévia para receber o Mirena (a mensagem está apensada ao processo).

As declarações foram firmadas por cerca de 20 meninas menores de idade e seus guardiões – os responsáveis pelas casas-abrigo onde vivem – e deveriam ser entregues no dia do evento. No grupo, pelo menos duas tinham, à época, 12 e 13 anos, nascidas respectivamente em janeiro de 2006 e abril de 2005.

Os defensores públicos e as advogadas que foram à Justiça contra o acordo contestam a validade do consentimento das adolescentes. Na peça inicial do processo, argumentam que o Código Civil define como “absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil” os menores de 16 anos e relativamente incapazes os indivíduos entres 16 e 18 anos. Lembram também que o Código Penal tipifica como crime de estupro de vulnerável a prática de relações sexuais com meninas de idade inferior a 14 anos.

Além disso, destacam a condição de vulnerabilidade das adolescentes como um fator a dificultar a livre escolha. “Essas meninas são muitos jovens, estão sem pai e mãe, sem família no abrigo público. Elas não têm a oportunidade de conversar intimamente com mais ninguém a não ser com as meninas da mesma idade. Qual a informação que receberam para além dessa palestras? Isso nunca foi dito”, assinala a advogada Denise Dora, da ONG Themis, uma das autoras da ação civil pública.

“O acesso à informação para mulheres adultas é uma pré-condição para qualquer decisão na área de saúde reprodutiva. Ainda mais para meninas de 12 anos ou adolescentes, porque talvez estejam começando sua vida sexual e tendo as primeiras informações sobre saúde sexual e reprodutiva. Se não passarem por um processo intenso de informação sobre isso, a decisão não é livre, é uma decisão fortemente influenciada.”

“Voluntarismo excessivo”

A disputa jurídica em torno do termo de cooperação envolve também uma discussão de competência do Ministério Público. Cinara Vianna Dutra Braga é acusada de ignorar o Conselho Municipal de Saúde ao propor um convênio que, por lei, precisaria ter sido apreciado por ele antes de lançado.

A promotora se defende. “Já havia uma aprovação por parte do Conselho Municipal de Saúde para inserção do Mirena em mulheres vulneráveis. Especificamente, começou com mulheres com HIV, mas depois disso o programa, que era destinado a mulheres com HIV independente da idade, foi aumentado para meninas a partir de 9 anos”, afirma. “Nós buscamos tão somente ampliar o que já existia.”

O Conselho Municipal da Saúde, entretanto, nega veementemente que isso seja verdade. A psicóloga Ana Paula de Lima, coordenadora adjunta do órgão, explicou à Pública que a única medida aprovada pelo conselho nesse sentido é de 2016 e prevê o uso de métodos contraceptivos reversíveis de longa duração (em inglês, “Long-Acting Reversible Contraception“, ou LARCs), nos quais se inclui o DIU hormonal, em mulheres com HIV que não desejam engravidar, como consta no Plano Municipal da Saúde 2018-2021 de Porto Alegre.

Jaqueline Lubianca explica que, no Hospital de Clínicas, o Mirena pode ser colocado em adolescentes dependendo do caso. “Eventualmente podemos ter alguma adolescente que necessite, mas principalmente pacientes que sangram muito. Eles não são comprados pelo SUS, são doados por um ambulatório de pesquisa.”

“Há, por parte do Ministério Público, um extrapolamento da sua função. A função do Ministério Público é denunciar e garantir que as políticas públicas e os direitos estejam sendo efetivados. Se há falha na garantia de direitos, o Ministério Público tem que apontar, mas não é ele que diz como isso vai ser feito”, contesta Ana Paula.

A advogada Denise Dora fala em “voluntarismo excessivo” do MP. “Ele não pode ser tão voluntarista, não é governo, não faz a política pública e não pode sair por aí procurando empresa farmacêutica para oferecer medicamento para as pessoas que estão sob a sua tutela”, critica.

“Nesse caso específico, as crianças e adolescentes estão sob tutela do Estado, elas não estão com suas famílias de origem. O Estado não pode agir sobre esses corpos sem que as ações passem pelo escrutínio público, porque senão qualquer pessoa pode fazer qualquer coisa.”

Essa não é a primeira vez que um caso assim ocorre em Porto Alegre. Em 2007, o Conselho Municipal de Saúde conseguiu a suspensão da distribuição gratuita de implantes hormonais subcutâneos direcionados a meninas de idades entre 15 e 18 anos moradoras de Restinga, bairro periférico da cidade.

O enredo era parecido, com a diferença de que, naquela ocasião, a iniciativa foi da prefeitura em parceria com uma ONG que forneceu os contraceptivos. O método era o mesmo: o CMS alegava que não havia sido consultado previamente sobre o projeto. “É uma reprise”, diz o defensor público estadual Rodolfo Malhão, também autor da peça inicial.

Apesar das boas intenções…

Há na história mais um ponto importante a ser destacado: em 2016, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) decidiu pela não recomendação do uso do Mirena em mulheres de 15 a 19 anos na rede pública de saúde – a solicitação da análise foi feita pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).

O motivo: embora estudos clínicos tenham apontado tendência de superioridade do SIU-LNG em relação aos demais métodos disponíveis no SUS – pílula, diafragma, injeção, camisinhas masculina e feminina e DIU de cobre –, “a diferença não pode ser considerada significativa, principalmente em relação ao DIU com cobre, método intrauterino já incorporado”.

O relatório informa ainda que a integração do dispositivo à rede do SUS geraria um impacto orçamentário de aproximadamente R$ 42 milhões em cinco anos “sem que algum benefício clínico tenha sido demonstrado”.

À época, a Febrasgo apontou que o preço inicial para incorporação do Mirena seria de R$ 331,17 por unidade, sendo o preço de fábrica mais elevado, de R$ 548,99. Em contrapartida, naquele período, a compra mais recente do DIU de cobre, por exemplo, havia custado ao Ministério da Saúde R$ 18,77 por unidade.

Malhão acredita que projeto não traz “nada de novo” às jovens acolhidas. “Apresenta um dispositivo que supostamente é um pouco melhor do que os que existem, mas as meninas têm dispositivos ao seu dispor que obedecem todas as regras, por exemplo, o DIU de cobre. Tudo bem que o DIU Mirena pode ser um produto mais avançado, mas não observou as regras”, assinala.

“Nós em nenhum momento duvidamos das boas intenções. A questão é que as coisas colocadas do jeito que foram acabaram, ainda que com intenções positivas, violando direitos humanos de meninas que estão abrigadas.”

Denise Dora acrescenta: “Se a prefeitura já compra o DIU de cobre, por que ela [promotora] não procurou a empresa que vende por licitação para a prefeitura e disse: ‘Preciso de tantos a mais para oferecer para as meninas?’. Por que procurar uma empresa que não está habilitada a oferecer o serviço, já que não se comprovou que seu dispositivo é melhor do que os outros e tem um preço mais caro?”.

Malhão questiona ainda outros interesses que podem permear o acordo: os da Bayer, enquanto indústria farmacêutica. “No primeiro termo de cooperação, está escrito que a Bayer treinaria os médicos para colocação do Mirena.

Então não só a Bayer colocaria seu dispositivo no mercado por meio dessas meninas e o SUS passaria atendê-la com esse dispositivo, ainda que ele não tenha sido incorporado ao SUS pelas vias corretas, como a Bayer treinaria os médicos, que ficariam aptos para colocar o Mirena em seus consultórios particulares.”

A promotora Cinara Vianna Dutra Braga reconhece as vantagens que a empresa pode obter ao participar da parceria com o Ministério Público. “Primeiro é uma propaganda: vincular a sua marca a uma causa tão legal quanto a proteção de adolescentes institucionalizadas cai bem, vai ao interesse da instituição. É uma propaganda positiva, é responsabilidade social.” Mas ela não deixa de assinalar que viu na atitude da companhia uma boa intenção: “Acho realmente que eles ficaram sensibilizados e quiseram auxiliar.”

Questionada sobre sua atuação no convênio, a Bayer se limitou a dizer que ele continua vigente, mas se encontra suspenso devido ao julgamento, e que nenhum produto foi doado.

“Termo limitado”

O termo de cooperação, a princípio, concedia duas garantias em relação ao Mirena: os hospitais Presidente Vargas e de Clínicas fariam a inserção do implante e, passados no máximo 45 dias, realizariam com cada uma das pacientes uma consulta para examinar se está adequadamente posicionado.

Mas nada foi dito sobre o que aconteceria após os cinco anos, quando o dispositivo precisasse ser retirado ou trocado, caso sua portadora não estivesse mais em acolhimento institucional.

A entrada para a rede básica ocorre normalmente pelos postos de saúde, e não pelos ambulatórios dos hospitais que integram o acordo. Nestes, a Bayer se comprometeu, como parte do acordo, a treinar os médicos para que aprendam a colocar, remover e fazer o monitoramento do Mirena, mas, nos primeiros, não há garantia de que os profissionais saberiam lidar com o dispositivo, já que ele não está incorporado à rede do SUS.

Jaqueline Lubianca, do Hospital de Clínicas, diz que “tendo um ginecologista no posto, ele estaria apto a retirar, já que retirada do Mirena é igual à do DIU de cobre”. Mas Rodolfo Malhão rebate: “Nós procuramos postos de saúde e as pessoas nos disseram que, ainda que tenha um ginecologista disponível para retirada, ele tem que se sentir apto para tirar esse dispositivo. Dizem que é muito simples a retirada, mas aí é uma questão pessoal, o médico que não se sentir apto para retirar não vai retirar. O trabalho dele é tirar, por exemplo, o DIU de cobre, que está previsto no SUS como uma política pública de saúde”.

Segundo a decisão da juíza, depois de indicada essa lacuna pelos defensores públicos e a Themis, foi emitida uma segunda versão do termo de cooperação com cláusula que obriga os hospitais citados e a prefeitura de Porto Alegre a “prover acompanhamento ginecológico regular às adolescentes que optarem pela inserção do SIU-LNG, inclusive para o monitoramento do prazo de retirada”. No entanto, de acordo com Malhão, essa minuta não foi assinada pelas partes nem publicada em diário oficial, e ainda não tem, portanto, validade jurídica.

Embora corrija uma falha crucial do projeto, a nova obrigação não “altera o fundamental”, segundo Denise Dora, que seria promover “a função constitucional da saúde pública, transparente, debatida, que visa a oferecer realmente um processo de saúde sexual e reprodutiva para essas meninas sob tutela mediante informação, discussão, workshops, que é o que acontece com as meninas de classe média”.

A médica Ana Maria Costa concorda com essa análise. Professora da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS) e diretora executiva do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), ela é uma das formuladoras do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), lançado em 1983 pelo Ministério da Saúde e considerado pioneiro ao romper com a abordagem, até então tradicional, que centralizava o atendimento às mulheres nas questões relativas à reprodução. Ela afirma que o olhar para as adolescentes abrigadas precisa ser mais amplo nesse sentido.

“É necessário que elas tenham várias oportunidades, grupos, discussões sobre métodos, corpo e sexualidade. É preciso discutir a mulher que transa, que tem relações sexuais com homens, com mulheres, frequentes ou infrequentes. Todas essas situações deveriam ser objeto de debates e conversas com essas meninas para que possam se apropriar da responsabilidade sobre si mesmas, como parte do processo de se tornarem adultas e mais autônomas.”

Outra circunstância, mesmas questões

Em 2018, a adolescente C. B. S. esteve perto de receber o Mirena no Hospital Materno Infantil Presidente Vargas. À época com 15 anos, estava internada na ala psiquiátrica da instituição, para onde foi transferida depois de uma tentativa de suicídio durante internação na Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (Fase), em Porto Alegre.

Em agosto, a Fase pediu autorização judicial para implantação do Mirena em C. B. S. Alegou urgência, argumentando que “o bloco cirúrgico já estava disponibilizado para colocação” do dispositivo. Foram anexados à solicitação um termo de consentimento informado assinado pela jovem e uma declaração de sua médica psiquiatra recomendando o procedimento, mas o juiz negou o pedido. Seguiu-se então uma segunda tentativa, dessa vez pelo hospital, que foi novamente rejeitada pelo juiz.

No mês seguinte, após ter recebido alta, a adolescente compareceu à Defensoria Pública e revelou que não havia concordado com a inserção do Mirena – negou que tivesse sequer lido o documento que supostamente atestava seu consentimento. Disse também que não recebeu informações mínimas sobre o método, tendo participado somente de uma consulta sobre o assunto. Reafirmou, ainda, a falta de interesse em colocar o DIU hormonal. Em 2019, C. B. S., agora com 16 anos, foi mais uma vez apreendida e cumpre nova internação na Fase.

Embora o caso não esteja diretamente ligado ao termo de cooperação entre o Ministério Público e a Bayer, foi inserido na peça inicial da ação civil pública pelas semelhanças em relação às meninas que são alvo do acordo – quando criança, C .B. S. também viveu em um abrigo.

Em sua decisão, a juíza Paula Beck Bohn afirmou que a história da jovem “não guarda relação” com o convênio, pois ela “não está vinculada à rede de acolhimento institucional de Porto Alegre”.

Entretanto, no recurso, os defensores públicos alertam que ele, ainda assim, deve ser levado em consideração por causa das violações de direitos semelhantes que envolve: “As circunstâncias descritas consistem em elementos que a colocam como uma adolescente supostamente apta para receber o SIU-LNG, conforme os termos do convênio”, justificam.

*Este conteúdo foi publicado originalmente no site da Agência Pública.

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