Brasil

Não formamos pessoas resistentes à corrupção, diz psicóloga

Em tese de doutorado pela USP, pesquisadora mapeou os elementos da estrutura da máquina pública que favorecem a corrupção. Veja quais são.

Manifestantes seguram placa com a frase "corrupção é crime hediondo", durante protesto no Rio de Janeiro (Dado Galdieri/Bloomberg)

Manifestantes seguram placa com a frase "corrupção é crime hediondo", durante protesto no Rio de Janeiro (Dado Galdieri/Bloomberg)

Talita Abrantes

Talita Abrantes

Publicado em 29 de maio de 2015 às 14h16.

São Paulo – Cada caso de corrupção que vem à tona é um sinal de que a sociedade falhou no processo de formar indivíduos éticos. Esta é a constatação da psicóloga Nanci Gomes, que é doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e que pesquisa a corrupção sob o ponto de vista da psicologia.

Durante quatro anos, Nanci mapeou quais as características da máquina pública que favoreciam o surgimento de casos de corrupção. Para isso, ela entrevistou mais de cem gestores em cargos comissionados no governo do Estado de São Paulo.

A periodicidade dos mandatos, a relação – por vezes – estremecida entre gestor e servidor público, a falta de meritocracia e as relações sempre pautadas por acordos políticos, entre outros fatores, podem tornar funcionários públicos ou gestores nomeados mais vulneráveis à falta de ética, segundo a análise da pesquisadora.

Mas, de acordo com ela, esta vulnerabilidade à corrupção não é exclusiva do setor público. “A nossa sociedade não está conseguindo formar uma moralidade tão resistente às tentações”, afirma a pesquisadora. “A pessoa pode até resistir no começo, mas vê outros levando vantagem, enquanto ela não. Passa um, dois, dez, vinte anos e não há punição. A pessoa que resiste começa a se achar um idiota”.

Veja trechos da entrevista que ela concedeu à EXAME.com por telefone com a ressalva de que nem todas pessoas que trabalham no serviço público se encaixam na análise.  

EXAME.com - Em que medida os problemas que a senhora mapeou no setor público são fruto do contexto social em que estamos inseridos? 

Nanci Gomes - As instituições são produto da sociedade. Nós não nascemos morais ou éticos. De maneira narcísica, somos vorazes, queremos satisfazer apenas a nossas necessidades. A gente precisa de regras, de abrir mão do prazer imediato para considerar o outro. 

O problema é que a nossa sociedade aliena as pessoas política e psiquicamente. Ela estimula o consumo, nos trata como mercadoria, cria necessidades de fora para dentro e faz de nós constantemente insatisfeitos.

Ela massifica e não nos deixa sair deste estado narcísico. Assim, o que importa é o meu interesse e não qual é a consequência dos meus atos para o outro.

De maneira prática, como isso se materializa nas relações? 

Começamos a achar que a saída é só essa: cada um tem que lutar pela sua própria sobrevivência. Perdemos a consciência e a análise crítica da consequência coletiva de nossos atos. 

Um exemplo é aquela pessoa que lida com o público e que vai  cumprir a burocracia só por que perdeu a capacidade de se sensibilizar com quem está do outro lado do balcão.  Ou aquele gestor público, que ao perder a capacidade de se identificar com interesses coletivos, é capaz de desviar milhões para uma conta particular mesmo que isto devaste uma cidade inteira.

Como a impunidade favorece este cenário?

A não penalidade fortalece o narcisismo. O corrupto vai dizer assim: “se não acontece nada com ninguém, não vai acontecer comigo”. Uma sociedade que não respeita as próprias leis é uma sociedade que não tem moralidade. As leis são uma das formas de conter a volúpia, a voracidade individual.

Quais as características da máquina pública que favorecem a corrupção?

Uma das coisas é o período dos mandatos. Como as pessoas que ditam as políticas públicas são ocupantes de cargos comissionados ou políticos, os programas ou projetos acabam não tendo continuidade com o fim dos mandatos.

Além disso, muitas vezes este gestor está ali mais por afinidade política do que competência técnica. Então, ele não investe nos funcionários de carreira. Além disso, muitos gestores entram no serviço público com preconceito contra os servidores. Essas coisas vão gerando desmotivação no servidor.

Por que a falta de continuidade de projetos pode tornar uma pessoa mais vulnerável à corrupção?

Alguns servidores vão criando um mecanismo de defesa de não se envolver mais com os programas. Então, a energia, que deveria estar voltada para um significado mais coletivo do trabalho, é direcionada para a busca de sentido em outras coisas. A pessoa fica mais vulnerável às tentações. 

Como a falta de cobrança por resultados interfere neste tipo de relação? 

Quanto mais envolvida a pessoa está no resultado do seu trabalho, quando mais ela é cobrada por aquilo, mais ela desvia a própria energia psíquica de busca de prazer para os resultados do trabalho.

Como na estrutura do Estado há pouca cobrança e retorno, o servidor vai buscar um espaço de satisfação. No setor público em geral, o trabalho fica muito negociado. Muitas vezes o mérito é muito mais por causa de acordos pessoais do que por competência. Isso desfoca [as pessoas do] resultado.

Qual o papel das relações políticas para isto? 

O executivo que ocupa um cargo comissionado mantém uma maneira de trabalhar que é, muitas vezes, mais política do que de prestação de serviço. Ele não está ali por que tem uma proposta para aquele setor, mas sim por causa de acordos políticos. Sobretudo, ele está ali para ganhar espaço político. Então, está mais vulnerável a negociações que passam em paralelo ao objetivo daquela pasta.

A punição de corruptos é suficiente para mudar este contexto social?

Infelizmente, não é isso que vai mudar. O que muda é uma transformação profunda da formação do individuo. Quando a gente deixa de fazer coisas por medo da punição, a moral está vindo de fora para dentro. A pessoa desacelera o carro quando vê um radar ou tem um instrumento que avisa quando vem o próximo. Mas, internamente, a ética da pessoa não mudou.

Muitos dos ex-funcionários de carreira da Petrobras que estão envolvidos no escândalo da Lava Jato afirmam que passaram anos dentro da estatal sem se envolver com a corrupção. O que faz as pessoas cederem?

A máquina é muito perversa. As tentações, as facilidades, as incoerências vão corroendo e provocando. A nossa sociedade não está conseguindo formar uma moralidade tão resistente às tentações. A pessoa pode até resistir no começo, mas vê outros levando vantagem enquanto ele não. Passa um ano, dois, dez, vinte anos e não há punição. A pessoa que resiste começa a se achar um idiota.

Além disso, quanto mais alto o cargo, a possibilidade de ganho individual é cada vez maior. Tem muita gente que fala que precisaria de muito para vender a própria alma. Aí, um dia, este muito começa a existir.

Se a pessoa não vê outros modelos, se começa a acreditar que o jeito de funcionar é este, ela entra no esquema mesmo correndo riscos.

Este ciclo vicioso não está restrito ao setor público ...

Uma pesquisa recente da Universidade de Birmingham mostrou que de cada 10 brasileiros, um admitiu que pagou propina em 2014. A corrupção não está só nos políticos, está em cada cidadão.

Como mudar esta cultura?

É preciso trabalhar o resgate da solidariedade, a identificação com o outro, a capacidade de julgamento, o comprometimento. É preciso mostrar os efeitos das ações. Uma mãe que estaciona em fila dupla em frente ao colégio pode até achar que não está prejudicando ninguém. É este modo de pensar que precisa ser discutido. 

Acompanhe tudo sobre:CorrupçãoEntrevistasEscândalosFraudesOperação Lava JatoPsicologia

Mais de Brasil

Moraes deve encaminhar esta semana o relatório sobre tentativa de golpe à PGR

Acidente com ônibus escolar deixa 17 mortos em Alagoas

Dino determina que Prefeitura de SP cobre serviço funerário com valores de antes da privatização

Incêndio atinge trem da Linha 9-Esmeralda neste domingo; veja vídeo