Marcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC Emergencial: no mercado financeiro, já circulam críticas à inclusão da desvinculação junto à PEC, atrasando o debate (Jane de Araújo/Flickr)
Carolina Riveira
Publicado em 25 de fevereiro de 2021 às 16h21.
Última atualização em 25 de fevereiro de 2021 às 20h55.
Em poucos dias, a PEC Emergencial conseguiu a proeza de unir senadores de partidos rivais no mesmo lado. O motivo são as críticas ao texto do relator, senador Marcio Bittar (MDB-AC), que defende a mudança de um artigo da Constituição que estabelece percentuais mínimos de gastos em saúde e educação, tanto no governo federal quanto em estados e municípios.
A Proposta de Emenda à Constituição, de número 186/19, é debatida desde antes da crise do coronavírus, procurando estabelecer travas para que o Brasil não aumente o gasto público. Mas o texto não conseguiu avançar no Congresso desde então. Agora, o Ministério da Economia pede sua votação como contrapartida a um novo auxílio emergencial.
Embora a defesa de alguma desvinculação já tenha aparecido em outros momentos -- e seja um desejo antigo do ministro Paulo Guedes, que apresentou proposta parecida no começo do mandato --, há um consenso entre agentes econômicos, parlamentares e especialistas que o momento não é de discutir o tema.
A Constituição estabelece que a União, estados e municípios devem investir 25% da receita em educação. Para a saúde, são 15% para União e municípios e 12% para os estados. O texto de Bittar, até esta quinta-feira, 25, propõe retirar os mínimos, e deixar a cargo de cada gestor e do Congresso a decisão sobre quanto gastar.
O argumento para acabar com os vínculos, defendido por nomes como o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é "devolver" aos gestores e legisladores o "controle do orçamento".
"É uma dupla discussão: as prioridades do Estado para as quais você quer assegurar recursos, e a rigidez orçamentária, que é ruim para o gestor público em uma emergência", diz João Marcelo Borges, pesquisador em Brasília do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais, da Fundação Getúlio Vargas.
"Tem de achar um equilíbrio aqui. A flexibilidade total também é ruim, porque é normal que o gestor só pense no curto prazo."
Borges, no entanto, questiona o fato de a discussão ser feita junto à do auxílio emergencial. "Desvincular os pisos de estados e municípios não libera um centavo para o auxílio emergencial, que é da União. Não faz sentido esse debate acontecer agora", diz.
Mesmo entre o mercado financeiro, que vem cobrando contrapartidas ao aumento do gasto e urgência na tramitação da PEC, a inclusão da desvinculação acabou ficando mal vista. Fontes próximas ao mercado ouvidas pela EXAME avaliam que a temática do investimento em saúde e educação, que é difícil de passar, tem atrapalhado todo o restante do debate de corte de custos do governo. O tema coloca, ainda, novo enfoque negativo no ministro Paulo Guedes e na equipe econômica.
"É difícil entender qual foi a motivação para colocar a desvinculação ali [na PEC]. Politicamente já se sabe que é uma discussão complicada, que gera comunicação negativa", diz Fabio Klein, consultor econômico sênior na consultoria Tendências. "A gente começou a discutir mais o vínculo do que a PEC Emergencial. É como se desviasse o foco do problema."
Com a educação, em particular, o Brasil só não teve algum tipo de mínimo obrigatório durante dois períodos recentes, ambos ditatoriais: durante a Ditadura do Estado Novo, na Constituição de 1937, e na Constituição feita na Ditadura Militar, em 1967. Em ambos, o gasto com educação caiu anos após as medidas e em meio a crises econômicas de cada período, como mostra a dissertação "Taxas de matrícula e gastos em educação no Brasil", de Paulo Rogério Rodrigues Maduro Junior, na Fundação Getúlio Vargas.
O gasto mínimo em educação é o único que estava já no texto original da Constituição de 1988, enquanto o mínimo com saúde foi adicionado posteriormente. Ambos são vistos como cláusula pétrea por alguns juristas.
"A ideia da vinculação tem o papel de assegurar estabilidade nos investimentos de longo prazo, que é um tempo diferente do tempo do ator político, que está preocupado com a próxima eleição", diz o jurista Salomão Ximenes, especialista em Direito e políticas públicas na Universidade Federal do ABC. "Ao 'retomar o controle do orçamento' na véspera da eleição, certamente o dinheiro nos municípios pode virar asfalto... e no governo federal virar distribuição de dinheiro para sua base política, ou política social não permanente", diz.
A leitura geral é que o estabelecimento de um patamar mínimo gerou avanços tanto na saúde, com a criação e estabelecimento do SUS após a Constituição de 1988, quanto na educação, com a universalização da oferta na maior parte do ensino básico e ampliação das vagas em universidades federais.
"O discurso de terra arrasada é muito prejudicial ao debate público de educação e saúde", diz Lucas Hoogerbrugge, do Todos Pela Educação. "Quando olhamos para a educação nos anos 80, era muito pior do que o que temos hoje. Há uma série de melhorias que o Brasil ainda precisa fazer, inclusive para gastar melhor com o mesmo recurso. Mas não vai ser tirando dinheiro que será possível fazer isso."
O pós-pandemia acrescenta dificuldades adicionais: na saúde, além do aumento dos gastos em meio ao coronavírus -- cobertos em parte por créditos extraordinários --, o coronavírus deixou atendimentos represados, que não têm sido feitos com os hospitais focados na covid-19 e pacientes temendo sair às ruas. Segundo os dados do DataSUS, mais de 600 milhões de procedimentos laboratoriais e mais de 1 milhão de cirurgias hospitalares a menos foram feitos em 2020 na comparação com 2019. É uma conta que ficará para os próximos anos.
Na educação, um desafio serão os investimentos para a volta às aulas e a recuperação da aprendizagem perdida durante a pandemia.
Além das escolas no ensino básico, outra das principais frentes afetadas sem um gasto mínimo obrigatório seriam as universidades federais, que estão a cargo somente da União. "É preciso de previsibilidade para atuar em saúde e educação. E a PEC se propõe a, na prática, cortar investimento no período em que mais se precisa dessas áreas", diz Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
A preocupação é também que a desvinculação atrapalhe o novo Fundeb, fundo de financiamento da educação básica aprovado por quase unanimidade no ano passado e com ampliação dos recursos. Uma das principais mudanças no novo Fundeb é seu mecanismo redistributivo, em que o governo federal repassa mais recursos complementares a municípios e estados mais pobres. Essa redistribuição -- que é feita com base nos mínimos constitucionais hoje estabelecidos -- fica prejudicada sem a vinculação.
O senador Flávio Arns (Podemos-PR), que foi relator do Fundeb, acredita que não há entre os senadores espaço para passar o fim dos vínculos na PEC. "Uma mudança como essa tem de ser feita dentro de um grande debate com a sociedade, não se pode aprovar uma medida dessa dimensão agora", diz. Sobre o Fundeb, o senador avalia que a desvinculação "liquidaria" com o novo fundo, discutido durante pelo menos cinco anos no Congresso. "Todos nós somos a favor do auxílio, mas não dessa forma", diz.
As frentes parlamentares mistas -- contendo senadores e deputados -- de educação, saúde e primeira infância também se posicionaram conjuntamente contra o texto. Para passar, a PEC precisa de dois terços dos votos no Senado e na Câmara.
A receptividade negativa da desvinculação foi um dos temas responsáveis por atrasar a tramitação da PEC. A expectativa no Senado era iniciar a votação nesta quinta-feira, mas, sem acordo, o tema ficou para ao menos a próxima quarta-feira, 3 -- até lá, uma desidratação do texto deve ocorrer. O embate deve atrasar a aprovação do auxílio emergencial: o governo estuda enviar uma Medida Provisória sobre o novo auxílio, possivelmente de 250 reais, após a PEC Emergencial.
Outra possibilidade que vem sendo ventilada no Congresso é a união dos pisos constitucionais. Assim, saúde e educação, juntas, teriam de responder por, por exemplo, 40% dos gastos dos entes -- mas caberia a cada prefeito ou governador decidir quanto empregar para cada área. É uma possibilidade que chegou a ser defendida pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).
A união dos pisos também tem gerado críticas pela possibilidade de levar a uma disputa interna no orçamento das duas áreas, sobretudo em momentos de crise e queda na arrecadação.
Nos EUA, estudo na American Economic Association mostrou que o investimento em educação caiu depois da crise de 2008. Os alunos mais afetados pelos cortes, segundo a pesquisa, tiveram notas piores e menores taxas de entrada na faculdade. A redução no investimento impactou sobretudo alunos mais pobres e minorias raciais.
Numa potencial disputa de recursos, a educação pode sair perdendo, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no fim de 2020. Ao analisar os gastos de 5.480 municípios, os pesquisadores concluíram que 951 deles estão perto da fronteira no gasto em educação (isto é, perto do 25% mínimo das receitas), embora acima do mínimo em saúde. O cenário contrário aparece em menos municípios, com só 97 perto da fronteira em saúde e acima do mínimo em educação.
"Esses achados provêm subsídios à hipótese de que, em um contexto de concorrência por recursos, os gastos em saúde serão mais resilientes, uma vez que tendem a ser menos elásticos, e, por conseguinte, os recursos para a educação estão sob maior risco de perdas", escreve o Ipea.
O estudo, segundo o instituto, tem por objetivo prover mais evidências às discussões da PEC 186 e também da PEC 188, do Pacto Federativo, que traz proposta parecida de desvinculação.
A tendência seria que gestores de estados e municípios fossem mais favoráveis à maior flexibilidade nos gastos. Mas, em nota, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) disse que a desvinculação "seria a sentença de morte" para o Sistema Único de Saúde. O Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) também se manifestou de forma contrária ao texto atual da PEC. As entidades de secretários de educação tiveram posicionamento semelhante.
É um debate longo e complexo e que deve ser tratado como tal, segundo os especialistas. Ambas as frentes estão em defasagem de investimento. Antes do novo Fundeb, o Brasil investia por aluno menos da metade do que nas economias desenvolvidas da OCDE, sobretudo em meio à remuneração ainda baixa dos professores brasileiros, segundo relatório da organização. O Brasil também tem oferta baixa de ensino integral e profissionalizante, além de menos vagas em creches do que seria necessário para todas as crianças.
Na saúde, o Brasil investe 1.355 reais por habitante/ano, quase um quarto do que investe a saúde privada. Para o setor, além do coronavírus, há o desafio da inflação médica, que cresce com os avanços tecnológicos.
Na outra ponta, o número de alunos tende a diminuir em meio à queda na taxa de natalidade brasileira. Por sua vez, o número de idosos cresce com o envelhecimento da população.
Dentre os pesquisadores de políticas públicas, há a leitura de que o formato redistributivo pode melhorar. O próprio Fundeb foi um exemplo, na visão de Ximenes, da UFABC, ao aprimorar a distribuição dos recursos de forma mais igualitária.
"Daqui a 20 anos, vamos ter muito mais idosos e menos crianças. É um debate justo e que pode ser feito, eventualmente com soluções para maior flexibilidade no orçamento aos bons gestores, àqueles que já cumpriram algumas condições, como universalização da educação", diz Borges, da FGV. "Mas não é uma discussão para ser feita em meio à pandemia e como contrapartida ao auxílio emergencial."
Enquanto o Congresso gasta energia tentando uma mudança constitucional questionada, outros debates realmente urgentes ficam na fila.
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