No artigo 184, a Constituição estabelece como uma obrigação da União a desapropriação para fins de reforma agrária de imóveis rurais que não cumpram sua função social (MST/Twitter/Reprodução)
Clara Cerioni
Publicado em 23 de dezembro de 2018 às 08h00.
Última atualização em 23 de dezembro de 2018 às 08h00.
São Paulo - As ocupações de terra estão na mira do Congresso Nacional e podem ser tipificadas como atos terroristas nos próximos meses. Dez projetos apresentados na Câmara e no Senado pretendem alterar a Lei Antiterrorismo (13.260/2016), sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff. Entre os projetos com a tramitação mais avançada está o PLS 272/2016, de autoria do senador Lasier Martins (PDT-RS) e relatada por Magno Malta (PR-ES). Tramitando atualmente na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, o projeto redefine o crime de terrorismo e reincorpora a ele a motivação política e ideológica, ausente do texto sancionado em 2016, praticado para “provocar terror social” ou para “coagir governo, autoridade, concessionário ou permissionário do poder público a fazer ou deixar de fazer alguma coisa”. Também define novos crimes passíveis de tipificação como terrorismo: “incendiar, depredar, saquear, destruir ou explodir meios de transporte ou qualquer bem público ou privado” e “interferir, sabotar ou danificar sistemas de informática ou bancos de dados”.
Caso o texto em discussão na CCJ seja aprovado em plenário, qualquer depredação ao patrimônio público ou privado que decorra de uma manifestação política torna-se passível de ser enquadrada como ato terrorista e sujeita a penas de 12 a 30 anos de prisão. Se aprovado na CCJ do Senado, segue direto para a votação na Câmara dos Deputados, antes da sanção presidencial. O presidente eleito Jair Bolsonaro afirmou em campanha a intenção de criminalizar movimentos de luta pela terra e por moradia urbana. “Nós temos que tipificar como terroristas as ações desses marginais [do MST e do MTST]”, afirmou, em maio deste ano, em palestra na Associação Comercial do Rio de Janeiro.
“Eu estudo reforma agrária no Brasil há 35 anos. Todas as minhas pesquisas corroboram que sem a luta pela terra não há reforma agrária. Sem a pressão dos movimentos, a reforma agrária não aconteceria. Se nós fôssemos depender do governo, nós teríamos 10% do número de famílias assentadas”, afirma o professor livre-docente Bernardo Mançano Fernandes, do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera), da Unesp, que coordena o Dataluta – um grande banco de dados relativo à luta social pela terra no Brasil. Mançano estima que cerca de 90% dos assentamentos foram criados a partir da luta pela terra, seja em ocupações, negociações com os órgãos públicos ou acampamentos de beira de cerca. Para o geógrafo, o projeto de lei busca inviabilizar a reivindicação dos movimentos sociais pela terra ao, por exemplo, tipificar como terrorista qualquer depredação ao patrimônio num contexto de manifestação política. “A primeira coisa numa ocupação é cortar a cerca para entrar. Isso pode ser enquadrado como um ato terrorista. Quando eles criminalizam os movimentos dessa maneira, eles buscam inviabilizar as ocupações completamente. Mas isso não vai resolver o problema, vai aumentar o problema”, avalia. “A concentração fundiária não se resolve do dia para a noite. Todos os dias ocorre concentração e todos os dias está havendo luta pela terra. Portanto, qualquer lei que você crie para frear o processo é como tentar invalidar a lei da gravidade”, opina.
“A ocupação é uma ação de um grupo que vê que o Estado está se omitindo e vai e toma os primeiros passos indicando uma área ociosa, que muitas vezes não tem proprietário legal, é fruto de grilagem, e provoca o Incra para fazer reforma agrária”, afirma Jeanne Bellini, da coordenação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão vinculado à Igreja Católica que acompanha conflitos fundiários no Brasil. Em 2016, a CPT fez um levantamento na área da Prelazia de São Félix do Araguaia, que engloba 12 municípios no nordeste do Mato Grosso, e concluiu que apenas um dos 12 assentamentos criados na região não foi originado por ocupações de terra e reivindicações dos movimentos sociais. Os 12 assentamentos concentravam, à época do levantamento, cerca de 150 mil pessoas. “Cinquenta e um por cento da população que estava naquela região [da Prelazia de São Félix do Araguaia quando foi feito o levantamento] estava em cima de terras que foram desapropriadas”, afirma Jeanne.
Quadro histórico da CPT, ela relembra sua experiência na região nos anos 1980. “Nos primeiros anos da década, os camponeses não contavam com o Incra, o Estado estava praticamente ausente naquela região [nordeste do Mato Grosso]. Muita gente imigrou do Nordeste e tomou posse de algumas áreas ali, vivendo em pequenas famílias espalhadas, mais ou menos de forma harmônica com a natureza. Quando o Incra passou a regularizar algumas famílias de posse antiga, a notícia se espalhou para parentes e conhecidos desses sertanejos, que viviam em outros estados e foram chegando e se estabelecendo em áreas próximas às que o Incra estava regularizando. Foi assim que começaram as ocupações ali”, relata. “A escolha de áreas a ocupar foi feita em diálogo com gente que já morava na região e que conhecia áreas griladas. Essas áreas eram de gente que veio de fora, convidada pela Sudam [Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia], e, em vez de fazer picadas e as marcações de acordo com os documentos, eles demarcavam áreas maiores. Muita gente que participou dessas demarcações participou das ocupações depois: eles sabiam o que estava documentado mesmo e o que foi um acréscimo. Era gente sem terra ainda não organizada em movimento, mas que tinha compreensão da função social da terra”, relata.
A função social da terra é um princípio definido no artigo 186 da Constituição Federal. Ele estabelece que a propriedade rural cumpre a função social quando são atendidos simultaneamente quatro critérios: aproveitamento racional e adequado da área rural, utilização adequada dos recursos naturais, observância da legislação trabalhista e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores. No artigo 184, a Constituição estabelece como uma obrigação da União a desapropriação para fins de reforma agrária de imóveis rurais que não cumpram sua função social. Também estão sujeitas a desapropriação áreas que não tenham comprovação dominial adequada, por exemplo as que são fruto de grilagem.
O Incra afirmou à Pública que não contabiliza o número de assentamentos criados a partir de ocupações ou manifestações de movimentos sociais. Mas é praticamente consenso entre os funcionários do órgão ouvidos pela reportagem que a grande maioria dos assentamentos criados pelo órgão derivou das pressões e negociações com os movimentos do campo.
“A reforma agrária é naturalmente um campo de disputa. As forças contrárias se articulam contra ela quer seja no meio político, no meio legal e até o controle das estruturas públicas relacionadas, como o Incra”, avalia o ex-superintendente do Incra no Paraná Nilton Guedes. “O trabalhador também se organiza e se estrutura para poder reivindicar. Nesse sentido, a gente entende que tem que se ouvir as partes. Ignorar o movimento social é um erro tremendo. Muitas conquistas na área da reforma agrária surgem desse diálogo. Se você pegar a área agrária da Diretoria de Obtenção de Terras e a área orçamentária, que avalia a questão dos custos, eles avaliam muito a atuação em função da quantidade de acampamentos, mobilizações, para poder dar uma resposta mínima do Estado”, avalia. Para Guedes, a demanda por áreas para a reforma agrária pelos movimentos auxilia o trabalho técnico do órgão para ver se estão cumpridas as condições legais para realizar a política determinada em lei. Ele ressalta que os movimentos também tiveram papel importante na política de desenvolvimento dos assentamentos de reforma agrária. “Você tem um tripé no desenvolvimento de assentamentos: assistência técnica, educação no campo e a agroindústria, além da parte de crédito, de melhoria de habitação. Não adianta você distribuir terra se você não estruturar o desenvolvimento dos assentamentos. Tudo isso veio da pauta dos movimentos sociais, que sempre trouxeram e abriram caminhos, se articularam, buscaram orçamento. Acredito que ignorar isso é ignorar a própria reforma agrária”, analisa.
Em 7 agosto de 2011, o Chile foi denunciado na Corte Interamericana de Direitos Humanos por violações a direitos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos. A denúncia surgiu após a condenação de sete lideranças indígenas da etnia mapuche, que historicamente reivindicam áreas na região de Araucania, ao sul do território chileno, pela lei antiterrorista do país (18.314/1984). Em uma série de protestos nos anos de 2001 e 2002, os mapuches ocuparam e incendiaram propriedades do governo e de empresas de exploração florestal como forma de reivindicação de territórios ancestrais. Muitas lideranças foram presas preventivamente após os protestos. A Coordinadora Arauco-Malleco (CAM), organização mapuche fundada em 1998 com o objetivo de reivindicar território, foi enquadrada (inclusive pela Suprema Corte chilena) como uma “associação ilícita terrorista”.
Em maio de 2014, a CIDH condenou o Estado chileno. A corte invocou os parâmetros definidos pelo relator especial sobre a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos e as Liberdades Fundamentais na Luta contra o Terrorismo, Martín Scheinin, autor das “Dez esferas de melhores práticas na luta contra o terrorismo”. Scheinin vincula o ato terrorista necessariamente à “manutenção intencional de reféns” ou à intenção de “causar morte ou lesões corporais graves a uma ou mais pessoas ou parcelas da população” e o uso da violência contra pessoas para gerar “efeito moral” em parcelas da população. O ato terrorista, nessa definição, destina-se a “provocar um estado de terror na população ou em partes dela” feito com a intenção de “obrigar o governo ou alguma organização internacional a fazer algo ou deixar de fazê-lo”.
A corte entendeu que os protestos dos mapuches não eram passíveis de ser enquadrados como terroristas pois não atentaram contra a integridade física de ninguém, um parâmetro essencial da definição de Scheinin. “Em nenhum dos fatos pelos quais [os líderes mapuches] foram julgados [relativos a incêndio de prédio florestal, ameaça de incêndio e queima de um caminhão de uma empresa privada] resultou afetada a integridade física ou a vida de nenhuma pessoa”, diz a decisão da corte. A CIDH determinou ao Estado chileno que as sentenças proferidas fossem anuladas e as lideranças mapuches, indenizadas. Determinou também que o Chile revisasse sua legislação antiterrorista.
Segundo a advogada Camila Marques, coordenadora do Centro de Referência Legal em Liberdade de Expressão e Acesso à Informação da ONG Artigo 19, o caso chileno não foi isolado. “É importante ter em mente que a gente vem passando por um marco histórico em que vários países do mundo desenvolveram e aprovaram leis que tipificaram o crime de terrorismo”, afirma Camila. “Não foi só o Chile que teve esse questionamento internacional. Vários outros países como a Austrália, o Canadá, enfim, muitos outros países foram questionados no âmbito internacional. Foram leis aprovadas de maneira célere, pouco participativa e muitas delas iam no sentido contrário de leis e convenções de direitos humanos”, diz. Ela avalia que o mesmo pode ocorrer com o Brasil caso os projetos que tramitam no Congresso sejam aprovados, já que a própria Lei Antiterrorismo sancionada em 2016 já foi alvo de questionamentos em âmbito internacional.
Em novembro, a ONG Artigo 19 lançou uma nota técnica com críticas ao PLS 272/2016. Os principais pontos questionados são a inclusão da motivação política e ideológica, a tipificação da apologia ao terrorismo e abrigo aos terroristas – o PLS prevê punição para quem “louvar” atos terroristas ou quem “der abrigo” a pessoas classificadas como terroristas –, bem como o financiamento e a coação de tomadores de decisão. “Ações terroristas são aquelas que visam atingir serviços essenciais da sociedade – serviços de saúde, de eletricidade, por exemplo. Esse projeto amplia isso na medida em que o terrorismo pode ser qualquer ação contra qualquer bem, público ou privado, essencial ou não. A depredação de um orelhão pode ser julgada na mesma perspectiva de um ataque massivo a um hospital, por exemplo. A gente tem uma desproporcionalidade muito grande nesse projeto de lei. A gente tem a criminalização de movimentos sociais e condutas que são naturais em um protesto. Há a possibilidade de uma barricada na avenida Paulista ser considerada um ato de terrorismo”, pondera Camila Marques. “Nesse projeto, a gente não sabe quando vai ser usado um crime de dano ou depredação ou quando será usado o de terrorismo. São condutas absolutamente diferentes. Se uma ocupação de moradia, por exemplo, vai ser tipificada em determinada lei ou na lei de terrorismo se torna uma escolha política”, diz. Para ela, apesar de problemática do ponto de vista de direitos humanos, a atual Lei Antiterrorismo já dá conta de combater a questão no Brasil.
Titular da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal, Deborah Duprat avalia que o PLS 272/2016 é inconstitucional. “Toda a parte que fala de crime na Constituição está no artigo quinto. Ali você tem até onde você pode criminalizar. Você só pode criminalizar para assegurar direitos fundamentais e não pode criminalizar para impedir direito de reunião, associação, manifestação”, opina. “O projeto possui imprecisões terminológicas que não são próprias do direito penal e acabam punindo manifestações legítimas. Por isso houve os vetos da presidente Dilma. Temos um direito penal cuja matriz é a da anterioridade da lei. A ideia é que nós vamos saber muito bem como nos comportar porque o que é crime nós vamos saber com muita certeza. Além de punir manifestações legítimas, esse projeto deixa numa zona de incerteza o que é legítimo e o que é ilegítimo”, diz, referindo-se à tipificação estabelecida no projeto de “louvar” o crime de terrorismo. Ela afirma que, caso aprovado com o texto atual, pretende questioná-lo juridicamente.
“Nós gostaríamos de não ter que ocupar terra. Por ser constitucional, a reforma agrária deveria ser política de Estado. Lamentavelmente, isso historicamente é letra morta”, afirma Kelli Mafort, também membro da coordenação nacional do MST. “Se fosse realmente uma política de Estado, nós gostaríamos de não ficar ali. Um acampamento é duro, é difícil. Você vive em situação de risco, as soluções demoram muito. Nós temos 150 mil famílias acampadas no Brasil, mas os acampamentos estão levando em média sete a dez anos até terem alguma solução. A reforma agrária vem sendo paralisada no Brasil: no ano passado, nenhuma família foi assentada. Ocupar é algo muito duro, que não precisaria existir. Mas nós estimamos que 90% dos assentamentos no Brasil surgiram de ocupações”, argumenta.
No último dia 9 de novembro, Kelli representou o movimento no encontro com a delegação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão ligado à Organização dos Estados Americanos (OEA). A comissão visitou o Brasil entre os dias 5 e 12 de novembro para apurar denúncias de violações de direitos humanos. “Nós apresentamos três pontos na nossa denúncia à comissão. Um deles foi essa questão dos PLs que pretendem retirar a exceção feita na Lei Antiterrorismo aos movimentos sociais e manifestamos nossa preocupação com o discurso de Bolsonaro de exterminar, eliminar o MST e o MTST e tratar como terrorista – pedimos a manutenção do artigo 2º da Lei Antiterrorismo”, diz Kelli. Em seu relatório final, lançado no último dia 12, a comissão afirmou que o Brasil vive um retrocesso na área de direitos humanos e criticou a criminalização dos movimentos sociais com os projetos que visam alterar a Lei Antiterrorismo.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, o senador Magno Malta, relator do PLS 272/2016, afirmou que pretende manter o texto do projeto da forma que foi apresentado à CCJ. “Ninguém queima patrimônio público, põe fogo em ônibus, propriedade com famílias, sem aterrorizar a sociedade. Vou manter meu texto como está. Não podemos entender esses atos como luta ideológica, e sim como ato terrorista”, afirmou.
A Pública solicitou uma entrevista ao senador Lasier Martins a respeito do projeto de lei, mas não teve resposta de sua assessoria de imprensa.
A reportagem foi publicada originalmente pela Agência A Pública