Maria da Conceição Tavares (Fernando Frazão/Agência Brasil)
Agência de notícias
Publicado em 8 de junho de 2024 às 12h38.
A economista Maria da Conceição Tavares morreu neste sábado em Nova Friburgo aos 94 anos. Referência do pensamento desenvolvimentista no país, sem papas na língua, a portuguesa de nascimento e brasileira de coração, formou uma geração de economistas no país que têm decidido o destino econômico do Brasil nas últimas décadas. Ela deixa dois filhos, Laura e Bruno, dois netos, Ivan e Leon e o bisneto Théo. A família não divulgou a causa da morte
A sua festa de 80 anos, em 2010, na Casa do Minho, exatamente em frente ao prédio onde morava no Cosme Velho, encheu o lugar de ex-governadores, ex-ministros da Fazenda, da Saúde e por aí vai. Dois candidatos à Presidência, Dilma Rousseff e José Serra, dividiram a mesa com a economista.
O respeito pelo conhecimento da mais provocativa economista brasileira se soma ao carisma da professora da Unicamp e da UFRJ, que conseguia hipnotizar uma plateia de jovens, entrantes na faculdade de Economia, por mais de uma hora, como na aula magna que lotou o auditório Pedro Calmon, no campus da UFRJ na Urca. Era 2009.
Nascida em 24 de abril de 1930, em plena Grande Depressão, temia aquele início de ano, quando o Brasil e o mundo viviam a recessão: “Nasci numa depressão e vou morrer noutra”, falou, para ser desmentida pela realidade. Em abril de 2018, estava de volta àquele mesmo palco para receber homenagem pelos seus 88 anos.
Em entrevista concedida ao GLOBO, um pouco antes, disse que estava pessimista com o Brasil e esperava que os jovens pudessem ajudar o país a sair da crise política e econômica.
—É difícil não ficar pessimista hoje no Brasil. Tem alguém otimista que você conheça? Nem eu. Essa geração de jovens que faça paralisações, mova-se. Tirando os jovens, estamos mal. Eu não gostaria nada de estar velha e pessimista, nada. É péssimo, queria uma velhice feliz, do jeito que está não estou tendo. O que me dá um certo alívio é que tem uma geração de jovens para entrar. O que está aí é um lixo.
Maria da Conceição Tavares chegou ao Brasil em 1954, três anos depois, tornou-se cidadã brasileira. Intensa, neutralidade nunca fez parte do seu vocabulário. Combateu ferozmente a política econômica do regime militar e os planos liberais dos governos de Fernando Henrique Cardoso.
Chorou em frente às câmeras de TV na defesa do Plano Cruzado, nos anos 1980, em um dos momentos mais marcantes daquela época de euforia que o congelamento dos preços trouxe ao povo brasileiro, a crença de que finalmente a inflação tinha sido vencida. A preservação dos ganhos dos trabalhadores foi a razão para essa defesa emocionada na frente das câmeras de televisão, contou ela 30 anos depois:
— Pela primeira vez se fazia um plano anti-inflacionário que não prejudicava o trabalhador. Isso é comovedor, todos os outros, como este agora também (referindo-se ao ajuste fiscal promovido em 2015), provocaram recessão, desemprego e queda de salários. Acompanhei o plano todo, até que capotou de maneira estrondosa.
Na homenagem à professora no seu aniversário de 80 anos, José Luís Fiori, da UFRJ, escreveu: "Poucos professores no mundo, ao chegar aos 80 anos, poderão assistir a uma eleição da importância da que ocorrerá no Brasil, em 2010, e saber que os dois principais candidatos foram seus alunos, e se consideram, até hoje, seus discípulos”.
Ela não passou incólume ao período da ditadura militar. Exilou-se no Chile, trabalhando na Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), sendo a principal defensora e estudiosa do modelo nacional desenvolvimentista, com substituição de importações.
É obrigatório seu texto de 1972, “Auge e Declínio do Processo de Substituição de Importações no Brasil - Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro”, escrito quando estava no Chile. Foi criadora, junto com Mário Henrique Simonsen, Delfim Netto e João Paulo dos Reis Velloso da pós-graduação em economia no Brasil e do Instituto de Economia da Unicamp.
No período militar, chegou a ser presa sem saber muito bem o motivo. Era 1974, e ela passou 48 horas nos porões do DOI-Codi, no Rio. Os enviados do então presidente Ernesto Geisel demoraram a encontrá-la. Foi vítima de uma briga de poder no regime entre Geisel e os aparelhos de repressão. O amigo Mario Henrique Simonsen foi quem a tirou da cadeia: “Foi desagradável, celas muito nojentas, geladas, pintadas de branco, um frio desgraçado. Não fui torturada nem nada, mas fui ameaçada. Pelo menos não sumiram comigo.” contava.
As discussões com o amigo Simonsen eram antológicas. Ambos lecionavam na Fundação Getulio Vargas. Só que Conceição assistia às aulas de Simonsen, e os alunos se deliciavam com as discussões:
— Mário era ortodoxo. Se tivesse inflação, valia tudo até desemprego. No fundo, defendia a política do regime (Simonsen foi ministro da Fazenda de 1974 a 1979). Então, no debate, não estávamos de acordo em nada (risos).
Em 2004, Aloízio Mercadante disse sobre a professora:
— Ela é uma referência obrigatória. Pode-se divergir, mas não há como não respeitá-la. Ela é a matriarca, e Celso Furtado, o patriarca, de uma geração. São pessoas que se dedicaram ao Brasil e se mantiveram íntegras.
Livros foram mais de uma dezena, ganhou o Prêmio jabuti de Economia em 1998.
Casou-se duas vezes. O primeiro casamento foi com o engenheiro português Pedro José Serra Soares com quem teve a filha Laura e o segundo com o professor de Ciências Biológicas da UFRJ, Antônio Carlos de Magalhães Macedo, pai de seu filho Bruno. Teve dois netos, Leon e Ivan.
Ela era vascaína e o futebol, nos últimos tempos, tomou mais tempo da economista do que a própria economia, como ela falou ao “Valor”, em 2012: “Se for para falar de tudo, prefiro futebol. Passei a gostar mais de futebol do que de economia. Felizmente, a imprensa do Rio parou de falar da crise no Flamengo. Antes da Olimpíada só dava saída do Ronaldinho Gaúcho, queda do Joel Santana, entrada do Dorival Júnior…”
Foi contra o Plano Real, não acreditava na época que desse certo e chegou a classificá-lo como algo “muito conservador e recessivo, um horror”. A crítica era o arrocho salarial embutido, diante do congelamento dos salários por um ano. Enganou-se, o plano deu certo e estabilizou os preços.
Conceição comprou brigas. Contra o Real e o achatamento salarial e até contra o primeiro governo do PT. Chegou a chamar de débeis mentais assessores do então ministro da Fazenda Antonio Palocci. Eles defendiam a focalização da política social. Conceição defendia a universalização como está na Constituição: saúde, assistência social e educação para todos.
“Não sou da área social e estou histérica. Temos políticas universais há mais de 30 anos. Somos o único país da América Latina que tem políticas universais. A focalização foi experimentada e empurrada pelo Banco Mundial na goela de todos os países e deu uma cagada. Não funciona nada”, disse a economista em 2003 à Folha de S.Paulo.
A amiga pessoal e vizinha, Hildete Pereira de Mello organizou livro sobre ela com os ensaios: “Conceição cientista e mulher política se confundem; ela rompeu todas as barreiras que ainda hoje relegam às mulheres tanto no cenário político como no científico do mundo atual, e que a jovem Conceição dos anos cinquenta enfrentou com tanta garra e destemor”, escreveu a amiga de mais de 40 anos.
Nos 88 anos da economista, o cineasta José Mariani lançou filme sobre ela. A película começa com a análise de Conceição sobre o livre pensar, que dá título ao documentário:
—O livre pensar, de todos os direitos, tem sido o mais recorrentemente violado, sempre provoca, desde a antiguidade, horror nas sociedades estabelecidas. Para ver como o idealismo, a razão é tão revolucionária.
Nele, ela fala de seu sonho que não se concretizou:
— Continuo querendo uma democracia multirracial nos trópicos, que era a tese de Darcy Ribeiro. Isso era realmente o que eu queria ver, mas por enquanto não tem.