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Desidratado após uma década, Minha Casa Minha Vida é desafio para governo

Com obras atrasadas e sem novas contratações, maior programa habitacional do Brasil traz desafios para novo ministro do Desenvolvimento Regional

 (Beth Santos/Secretaria Geral da PR/Agência Brasil)

(Beth Santos/Secretaria Geral da PR/Agência Brasil)

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Clara Cerioni

Publicado em 17 de fevereiro de 2020 às 06h30.

Última atualização em 19 de fevereiro de 2020 às 14h52.

São Paulo — O Minha Casa Minha Vida (MCMV) completou uma década de existência em 2019 encarando futuro incerto, falta de orçamento, obras paralisadas e até pressão para mudar de nome.

A remodelação do MCMV é o maior desafio que o recém-empossado ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, vai enfrentar no início da sua gestão.

Uma das marcas mais fortes dos anos petistas, o programa voltado para a população de baixa renda tinha dois objetivos principais: reduzir o déficit habitacional no país, que à época chegava aos 7,2 milhões de domicílios, e aquecer o mercado da construção civil para conter os efeitos da crise de 2008.

Inicialmente, a promessa era construir 1 milhão de casas, sem prazo definido, com investimento de 34 bilhões de reais - próximo do valor anual do Bolsa Família. O dinheiro viria de 10% do Orçamento da União e 90% do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).

Os dados mais recentes, divulgados pelo Ministério da Economia em agosto do ano passado, mostram que entre 2009 e junho de 2019 foram contratadas 5,5 milhões de casas. Ao todo, 4,1 milhões já foram entregues e outras 1,4 milhão estão paralisadas — sem prazo para serem finalizadas.

Para entrar na fila de espera, as famílias são divididas por faixas de renda (1, 1,5, 2 e 3) e há uma regra específica para cada faixa. O subsídio é integral para famílias na base da pirâmide e parcial para aquelas em outras faixas, como mostra o quadro abaixo.

"São dois subprogramas que operam de formas bastante diferentes", diz Claudia Acosta, professora de direito urbano na Universidad del Rosario, na Colômbia, e pesquisadora na Fundação Getúlio Vargas.

3 em cada 4 contratos fechados para a faixa 1, de renda mais baixa, ocorreram entre 2009 e 2013, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Rregional.

Nos últimos quatro anos (2015-2019), no entanto, foram principalmente as faixas 2 e 3, as que recebem menos subsídios, que conseguiram adquirir imóveis pelo MCMV, como mostra o gráfico abaixo.

"Após 2015, o Brasil começou a apresentar dificuldades fiscais e orçamentárias e, por isso, o governo foi reduzindo participação no programa. Como o FGTS é vital para o subsídio das famílias mais pobres, da faixa 1, os números de contratação foram enfraquecendo", explica Ana Maria Castelo, coordenadora de projetos da Fundação Getulio Vargas.

É o que mostra um relatório do Tesouro Nacional sobre o subsídio total do governo federal para o programa entre 2011 e 2018 de acordo com a faixa de renda, como mostra o gráfico a seguir. Os dois primeiros anos do MCMV são desconsiderados, diz o documento, por serem uma fase de organização.

"Nas faixas de renda 1,5, 2 e 3, o comprador da casa paga efetivamente a prestação, o que manteve parte do programa funcionando", diz Luiz França, presidente da ABRAINC (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias). Segundo os números, a inadimplência das famílias nessa renda é de 1,7%, bem abaixo do que os 32% da faixa 1.

De acordo com dados da Câmara Brasileira de Indústria da Construção (CBIC), durante uma década (com dados até dezembro de 2018) o MCMV movimentou 463,7 bilhões de reais. Desse valor, 160,8 bilhões de reais foram em subsídios diretos no Orçamento e do FGTS, enquanto o resto veio das parcelas de pagamentos dos contratantes e juros cobrados.

No mesmo período, foram empregados diretamente 3,5 milhões de trabalhadores, o equivalente a 390 mil postos de trabalho ao ano em média.

"Há dez anos, 80% do mercado de habitação era feito na informalidade. O programa foi essencial para que a construção civil passasse a trabalhar com alta gestão e profissionalismo", afirma José Carlos Martins, presidente da CBIC.

Problemas

Desde o anúncio, pesquisadores em habitação social apontaram que o programa reproduzia erros já conhecidos em políticas públicas da área e teria problemas como a má qualidade nas moradias, a distancia de aparatos necessários, como escolas e postos de saúde e, principalmente, falta do transporte.

As capitais reúnem a maior parte da infraestrutura urbana e da demanda por habitação, mas é caro construir nestas áreas devido ao preço dos terrenos. Desta forma, o programa acaba privilegiando regiões afastadas e cidades menores, sem infraestrutura e distantes do local onde há trabalho.

No livro "Minha Casa... e a Cidade?", de 2015, que avalia o programa em seis estados brasileiros, os pesquisadores da USP Caio Amore, Lúcia Shimbo e Maria Beatriz Rufino escrevem sobre o perigo que era estimular a produção de habitações em locais sem infraestrutura urbana.

Em e-mail conjunto à reportagem, os autores dizem que "não se trata apenas de fornecer um produto — a casa própria — mas sim de constituir uma política habitacional articulada a um conjunto de outras políticas setoriais. Para isso, não se pode abrir mão do protagonismo dos municípios e estados".

Há também a questão da qualidade. Em 2017, a Controladoria Geral da União avaliou cerca de dois mil imóveis da faixa 2 e 3 do MCMV e constatou que 56% das unidades da amostra apontavam falhas construtivas ocorridas dentro do prazo de garantia.

"Um dos maiores problemas do programa é que faltam estudos para saber como as pessoas estão conseguindo viver e lidar com situações adversas nos imóveis. Situações essas que só se consegue absorver após dois ou três anos de uso", aponta Claudia Acosta, da FGV, que também coordenou o estudo Morar Longe: o Programa Minha Casa Minha Vida e a expansão das Regiões Metropolitanas.

Futuro

Após assumir o cargo de ministro na última semana, Rogério Marinho tem negociado a liberação de recursos para as obras atrasadas do MCMV. Desde o ano passado, não há novas contratações em andamento. O impasse foi um dos motivos para a demissão do ex-ministro Gustavo Canuto.

Em 2020, o FGTS reservou 9 bilhões de reais para o programa. Já o orçamento federal direcionou apenas 295 milhões de reais para subsídios do programa, abaixo dos 900 milhões de reais que deveriam ser a contrapartida legal.

No entanto, até mesmo o valor destinado pelo governo federal tem sido repassado em conta-gotas, o que levou a Caixa Econômica Federal a suspender as operações do programa. Segundo o banco, 2,7 mil famílias se prejudicam por dia com o atraso.

Vinicius Costa, consultor da Associação Brasileira dos Mutuários de Habitação, diz que há muito tempo se fala em reformular o programa e isso acaba influenciando a atuação do governo federal no fomento.

"O importante agora é que o governo se decida sobre o rumo do programa e retome suas atividades, seja por uma nova perspectiva seja pela manutenção da que já existe", diz ele.

Na penúltima edição, EXAME antecipou que o Ministério do Desenvolvimento Regional planeja lançar um novo programa habitacional com novidades como cupom em dinheiro e locação social para reduzir o papel do setor público.

O desafio não é trivial, já que hoje o déficit habitacional brasileiro chega aos 7,7 milhões de domicílios - maior do que quando o programa começou.

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