(Leandro Fonseca/Exame)
Carolina Riveira
Publicado em 26 de agosto de 2020 às 13h26.
Última atualização em 26 de agosto de 2020 às 22h03.
Um dos temas mais importantes para a educação básica nos últimos anos começará a sair do papel. O Senado aprovou na noite de ontem por unanimidade o texto do novo Fundeb, fundo que financia mais de 60% da educação básica no Brasil. Com a aprovação, o Fundeb foi ampliado e tornado permanente, como parte da Constituição.
Após a aprovação, o texto foi promulgado já nesta quarta-feira, 26, sem possibilidade de veto presidencial.
O caminho para a renovação do fundo envolveu, ainda no debate na Câmara, uma desavença entre defensores do Fundeb no Congresso e o governo do presidente Jair Bolsonaro. O Ministério da Educação (MEC), comandado por Abraham Weintraub até junho deste ano, pouco participou do debate do Fundeb. Mas, dias antes da votação, o ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a tentar articular para que parte do fundo fosse usado no pagamento do Renda Brasil, novo programa de distribuição de renda do governo que substituirá o Bolsa Família.
Mas o governo, à época ainda no começo do namoro com o bloco do Centrão na Casa, não conseguiu apoio suficiente para mudar o texto do Fundeb, que já havia sido amplamente elogiado.
Agora, uma lei de regulamentação para detalhar a implementação das novas regras precisa ser aprovada até o fim do ano, e novos debates devem ocorrer. Em vigor desde 2007, a renovação do Fundeb reforça seu caráter de política de Estado, sobrevivendo a seguidos governos.
Veja abaixo os principais pontos no texto do novo Fundeb (e o que ainda vai precisar de regulamentação).
Boa parte dos investimentos em educação é feita por estados (responsáveis majoritariamente por ensino médio e anos finais do fundamental) e municípios (educação infantil e anos iniciais do fundamental).
Mas o governo federal auxilia em programas nacionais, como da merenda e do livro didático, e ao adicionar recursos ao Fundeb.
Assim, a maior parte do Fundeb vem dos próprios estados, mas a União complementa com um valor que vai só para os estados que não conseguem, sozinhos, chegar em um valor mínimo de investimento -- atualmente, nove estados recebem complementação no Fundeb, todos das regiões Norte e Nordeste.
Com o novo Fundeb, a complementação da União ao fundo passará dos atuais 10% para 23% até 2026 (no ano que vem, já será de 12,5%).
No novo modelo, será usado ainda o chamado modelo híbrido. Além dos estados mais pobres, agora, também municípios pobres em estados ricos (como cidades mais pobres de São Paulo) receberão essa ajuda financeira federal, reduzindo mais a desigualdade.
Segundo o Todos Pela Educação, 46% dos municípios saírão de subfinanciamento crítico. Ao mesmo tempo, com o modelo híbrido, os estados mais pobres que hoje recebem auxílio federal não perderão os recursos, necessários para manter suas amplas redes de escolas estaduais.
A ampliação da participação da União no financiamento da educação na ponta fez a relatora da PEC na Câmara, deputada profª Dorinha Seabra (DEM-TO), afirmar em entrevista à EXAME que o Fundeb é a realização prática dos desejos de "mais Brasil, menos Brasília" -- jargão defendido em discursos por alas do governo do presidente Jair Bolsonaro, incluindo pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.
Com o aumento da participação da União, o valor por aluno ao ano mínimo nacional nas redes públicas passará dos cerca de 3,6 mil reais atuais (pouco mais de 300 reais por mês) para quase 5,7 mil, segundo projeção da Câmara dos Deputados e do Todos Pela Educação.
Atualmente, o Brasil investe por aluno menos da metade do que nas economias desenvolvidas da OCDE, segundo relatório da própria instituição. O investimento por aluno ao ano no Brasil no ensino infantil fica na casa dos 3,8 mil dólares paridade de compra (uma métrica usada para comparar os países), ante 8,6 mil na média da OCDE.
Nos anos iniciais do ensino fundamental, o investimento foi de 3,7 mil dólares paridade de compra no Brasil e 10,2 mil na OCDE; e no ensino médio, incluindo ensino técnico, foi de 4,1 mil ante 10 mil da OCDE. (Os números são de 2016, último ano com dados compilados pela OCDE e divulgados no ano passado.)
O antigo Fundeb estabelecia que ao menos 60% do valor do fundo deveria ser destinado a pagamento de professores. As novas regras ampliam o percentual para 70%, mas incluem outros profissionais da educação.
A porcentagem destinada a salários foi criticada por alguns parlamentares e pelo governo na votação da Câmara. Mas seus defensores afirmam que a educação é uma área intensiva em pessoal e que esse é o maior gasto, independentemente dos esforços para uma melhor gestão.
Segundo a OCDE, os professores brasileiros também estão entre os mais mal pagos do mundo, e é o que faz o investimento em educação no Brasil ser muito menor.
"O salário de professores no geral é responsável pela maior fatia dos gastos por aluno, de modo que o relativamente baixo gasto por aluno no Brasil está refletido nos salários de professores", escreve a OCDE em seu relatório sobre o Brasil.
Os professores também ganham menos, em média, do que outros profissionais com ensino superior no Brasil. A média do salário de um professor é de menos de 80% do que ganham os demais profissionais com mesma formação, segundo o Inep, autarquia do Ministério da Educação, com base em dados do IBGE.
Uma das metas do Plano Nacional de Educação, aprovado em 2014, era equiparar essa remuneração, o que nunca aconteceu, mas pode avançar com os novos recursos do Fundeb.
"O Fundeb significa Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação. Não podemos nos esquecer da última parte do nome, porque as medidas de valorização dos profissionais da educação básica são fundamentais para o sucesso da educação e para o desenvolvimento do país", disse em entrevista à EXAME antes da votação do Fundeb o relator do projeto no Senado, senador Flávio Arns (Rede-PR).
O Fundeb foi aprovado tendo como parâmetro de qualidade um indicador chamado CAQ, o custo aluno-qualidade.
Criado em parceria entre a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, redes de professores, pesquisadores e outras organizações espalhadas pelo Brasil, o CAQ faz uma lista de insumos básicos nas escolas. São insumos tanto de infraestrutura (biblioteca, quadra, saneamento) quanto de gestão e de recursos humanos (como professores ganhando o piso salarial e com evolução de carreira).
O CAQ já estava no Plano Nacional de Educação, mas sua constitucionalização no Fundeb deve obrigar os gestores a debater o indicador e buscar chegar até ele. Os detalhes sainda terão de ser regulamentados tanto na lei complementar do Fundeb quanto em outras leis posteriores.
O indicador foi tema de debate e não foi unanimidade no Congresso, mas terminou sendo aprovado por maioria. A Campanha e os defensores do CAQ afirmam que ele garantirá que os novos recursos do Fundeb sejam investidos no que realmente importa e que será mais fácil para que órgãos de controle fiscalizem o uso do dinheiro. Críticos do indicador afirmam que ele pode aumentar a judicialização, com governantes sendo processados por não oferecer os insumos básicos.
O ponto que mais impacta nos custos dos insumos do CAQ é justamente a valorização dos professores, além de ter como meta eventualmente oferecer ensino integral em mais escolas brasileiras.
Outra mudança no Fundeb é a oficialização do Sinaeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica), que vai permitir uma melhor avaliação do desempenho das redes públicas. Parte do dinheiro Fundeb será destinado às redes com melhores resultados com base em parâmetros de equidade, também a serem discutidos na regulamentação.
Com a aprovação do Sinaeb e do CAQ, o Fundeb se torna a primeira emenda que levará para a Constituição mecanismos criados pela sociedade civil -- até então, outras leis debatidas na sociedade civil já haviam se transformado em leis não-constitucionais, da Lei da Ficha Limpa à Lei de Acesso à Informação ou o Marco Civil da Internet.
O Fundeb também manteve a proibição de usar o dinheiro do fundo no pagamento de aposentadorias de profissionais da educação. Os recursos do Fundeb só podem ser usados no que é definido como "manutenção e desenvolvimento da educação básica" -- incluindo o pagamento de profissionais na ativa e outros recursos das escolas.
Mesmo com a atual proibição, há casos de processos ou advertências de tribunais de contas contra governos estaduais por uso do Fundeb com a previdência, mas muitos engavetados. Segundo projeção da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, as escolas públicas perdem atualmente 20 bilhões de reais nessa transferência indevida.
Os defensores do projeto afirmam que, com o novo Fundeb e o CAQ como indicador, será ampliada a pressão para que órgãos de controle (como tribunais de contas e controladorias) tenham mais embasamento legal para fiscalizar e eventualmente punir o uso do dinheiro público fora das regras.