Legalização de jogos de azar: resistência da bancada evangélica e promessa de veto de Bolsonaro enfraquecem a pauta (iStock/Getty Images)
Alessandra Azevedo
Publicado em 22 de outubro de 2021 às 06h30.
Última atualização em 22 de outubro de 2021 às 06h35.
Desde setembro, um grupo de trabalho de 13 deputados discute, na Câmara, a legalização dos jogos de azar, com a esperança de chegar a um texto que consiga maioria para ser aprovado no plenário ainda este ano. O que falta é o essencial para que a proposta avance: consenso. A resistência ao tema existe desde muito antes da formação do colegiado e continua forte dentro e fora do Congresso.
O fato de o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), um dos líderes do Centrão, ter determinado a criação do grupo de trabalho, no mês passado, deu fôlego aos defensores da matéria. Eles argumentam que, com a legalização de cassinos, jogo do bicho, caça-níqueis e outras modalidades de jogos, será possível incrementar as contas públicas em cerca de 15 bilhões de reais por ano.
O grupo discute um projeto de lei apresentado há 30 anos e aprovado por uma comissão especial em 2016. O texto está parado desde então por disputas internas. “No início de outubro, o jogo do bicho completou 80 anos fora da legalidade. Imagina quanto se deixou de arrecadar?”, questiona o coordenador do grupo de trabalho, deputado Bacelar (Podemos-BA).
A legalização dos jogos, segundo Bacelar, pode render entre 12 bilhões e 15 bilhões de reais por ano, se a alíquota for de 20% ou 25%. E, mais importante, a geração de empregos será, segundo ele, quase instantânea. “No primeiro mês, só com o jogo do bicho, serão formalizadas de 350 a 400 mil vagas de trabalho”, prevê. Acrescentando cassinos e outras modalidades, serão 600 mil novos postos, calcula.
A legalização ampla, incluindo todos os jogos de azar, é a mais discutida no grupo de trabalho (GT) e pelo Centrão, apesar de haver integrantes que ficariam satisfeitos apenas com a legalização de cassinos integrados a resorts — posicionamento, entretanto, minoritário. "Nesse caso, a arrecadação seria irrisória", comenta um deputado do grupo.
“O Congresso não pode se abster de votar essa matéria. O jogo vai continuar existindo, só não vai ser fiscalizado”, diz Bacelar, que espera que o GT tenha um texto pronto para levar ao plenário em dezembro. O parecer está a cargo do deputado Felipe Carreras (PSB-PE), que, em entrevista à EXAME, afirmou que Lira é simpático à ideia, assim como integrantes do governo.
Um fator se mantém intacto nas últimas décadas: a oposição ferrenha da maioria da bancada evangélica. Não há previsão de aumento de tributos que mude o entendimento majoritário dos parlamentares religiosos sobre o assunto. Para o deputado e pastor Marco Feliciano (PL-SP), falar em arrecadação tributária “chega a ser patético”.
“É um argumento de lobistas que visam apenas lucro e se esquecem do prejuízo social que é praticamente irreversível”, argumenta Feliciano, que se diz “visceralmente contra” a proposta e acredita que a maioria da Câmara tem a mesma visão.
O entendimento de Feliciano se reflete na pesquisa EXAME/IDEIA mais recente. Enquanto, em geral, a maior parte dos entrevistados não têm opinião definida sobre o assunto, o quadro muda quando são ouvidos os evangélicos: 52% são contra máquinas de caça-níqueis, 47% não querem a legalização do jogo do bicho e 44% não concordam que a volta dos cassinos vai ajudar a economia.
Na opinião do deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), um dos mais ativos na bancada evangélica, a matéria será derrotada no voto, se realmente chegar ao plenário. “A maioria do Congresso é conservadora. Isso não passa de jeito nenhum no plenário”, afirma o parlamentar, que faz parte da igreja Assembleia de Deus.
Também fortemente contrário à matéria, o senador Eduardo Girão (Podemos-CE) concorda com os deputados que o argumento da arrecadação tributária não se sustenta. Ele pontua que, de acordo com um estudo da Universidade Baylor, no Texas (EUA), a cada dólar arrecadado com jogos, três são gastos para arcar com os impactos sociais provocados pela jogatina.
Além disso, segundo o senador, os recursos que serão gastos em jogos virão de outras atividades, do consumo de bens e serviços, que hoje recolhem impostos, como o ICMS, o ISS e o IPI. “O que se esquecem, convenientemente, de falar, é que o gasto na jogatina virá da redução dos gastos dos brasileiros em outras atividades que perderão receitas”, diz.
Com esses argumentos e outros que tratam principalmente dos problemas sociais, como vício em jogos e "destruição de famílias", a bancada evangélica se diz “fechada para argumentação”. Pessoas próximas ao deputado Cezinha de Madureira (PSD-SP), líder da bancada evangélica na Câmara, acham "impossível" que ele mude o posicionamento.
A resistência dos evangélicos sobre o assunto é forte, mas a pesquisa EXAME/IDEIA mostra que, em geral, as pessoas ainda não têm opinião formada sobre o tema. Só 21% dos entrevistados concordam com o argumento principal dos defensores da medida, de que a volta de cassinos legais no Brasil vai ajudar a economia. 41% não concordam, nem discordam, enquanto 37% discordam.
Para Maurício Moura, fundador do IDEIA, os números sinalizam que a legalização dos jogos é um assunto ainda muito longe do imaginário das pessoas. “Pode ter um espaço para debate e convencimento bastante grande”, diz. A avaliação se aplica também ao jogo do bicho e às máquinas de caça-níquel — não têm opinião definida sobre o primeiro tema 40% dos entrevistados e, sobre o segundo, 36%.
Assim como na sociedade, também há dúvidas sobre o assunto entre parlamentares que não têm relação com a bancada evangélica ou com o governo. Por enquanto, muitos deputados da oposição se dizem contrário à matéria, o que diminui as chances de aprovação no plenário. Outros, mesmo simpáticos à ideia, cobram mais discussão sobre o tema.
"Sou a favor, mas acho importante a gente aprofundar um pouco mais o assunto e estudar os modelos e onde isso foi feito no mundo", pondera o deputado Vinicius Poit (Novo-SP). Embora reconheça que o grupo de trabalho avançou na discussão, ele não acredita que a votação possa acontecer ainda neste ano. "O GT é um núcleo pequeno. Quando chega ao plenário, o projeto precisa de tempo para amadurecer", explica.
O embate está no Congresso, mas outra grande resistência a ser contornada pelo grupo de trabalho é a do presidente Jair Bolsonaro. Na contramão dos anseios da equipe econômica por mais recursos, o chefe do Executivo já deixou claro que vetará a proposta, caso ela seja aprovada pelos parlamentares.
A disputa pela legalização dos jogos de azar coloca o presidente em uma situação difícil. Ele encontra, de um lado, o Ministério da Economia, pronto para um projeto que, em tese, pode render bilhões de reais todos os anos. De outro, a bancada evangélica, um dos principais alicerces do governo.
Já com dificuldades para sustentar a indicação do “terrivelmente evangélico” André Mendonça ao Supremo Tribunal Federal (STF), Bolsonaro não pretende alimentar uma nova fonte de desconfiança na ala evangélica. Por isso, o recado é que ele vetará a proposta, o que agradaria uma pequena parte da Esplanada, personificada na figura da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.
Alguns deputados acreditam que pode haver negociação para que o veto seja derrubado em seguida, passando a valer a legalização dos jogos. Mas, mesmo que isso ocorra, os defensores da proposta se deparam com um desgaste causado pelo presidente e que pode dificultar a busca por votos no plenário.
Em uma conversa interministerial em abril de 2020, Damares levantou o argumento de que a Controladoria-Geral da União (CGU) pode não ter como "controlar a entrada e saída de dinheiro para evitar o dinheiro sujo". Foi o que ela disse ao ministro da Economia, Paulo Guedes, que é a favor da legalização dos jogos. O Ministério Público Federal (MPF) usa argumento parecido para se posicionar contra a proposta.
Segundo o MPF, não há mecanismos de fiscalização eficientes previstos nos projetos que circulam pelo Congresso, o que pode favorecer corrupção e lavagem de dinheiro. Bacelar, o coordenador do grupo de trabalho, conta que a ideia é criar uma agência responsável pela fiscalização. Isso deve estar no texto que será encaminhado ao plenário.
O grupo já conversou com a Polícia Federal e com a Procuradoria-Geral da República (PGR) para tentar dirimir divergências. “Estamos diminuindo essa resistência, conscientizando as pessoas de que o jogo, sendo legalizado, traz impostos, divisas e desenvolve o turismo", afirma o deputado Bibo Nunes (PSL-RS), um dos integrantes.
Quanto ao posicionamento contrário do MPF, o deputado do PSL acredita que pode ser revertido. Ele não descarta mudanças no texto, com base nas conversas com entidades envolvidas no assunto e com parlamentares. A expectativa dele é que Lira paute a matéria, mas o presidente da Câmara não tem se envolvido, diz. “Ele está alinhado, mas acompanhando à distância", conta Nunes.