"Se, em qualquer caso de atendimento médico, for detectada uma gravidez em que as condições sociais e psicológicas da gestante indiquem propensão ao abortamento ilegal, o município requererá medidas judiciais cabíveis para impedir tal ato, inclusive a internação psiquiátrica", diz o texto do PL 352/2019, apresentado na Câmara Municipal de São Paulo no fim de maio.
Na justificativa, o parlamentar defende que "o poder público e a sociedade em geral devem cuidar com afinco das duas vidas afetadas: a da gestante e a do embrião/feto" e tem o objetivo de "fazer valer o direito à vida previsto na Constituição".
Em outra parte do documento, Holiday afirma que "o projeto também prevê que a gestante ou sua família tenham ciência dos sinais vitais do feto e das técnicas de abortamento, a fim de dissuadi-los da prática" com acompanhamento psicológico e "demonstração técnica" de um aborto.
Outro ponto do projeto sugere que a gestante "passará, obrigatoriamente, por atendimento religioso, sempre que ela e seus pais expressarem qualquer forma de teísmo". No caso de grávidas ateístas, o atendimento "será ecumênico e poderá ser dado por pessoa capacitada".
O artigo nono do PL garante que, caso o aborto seja descriminalizado em algum ponto, "a lei continua aplicável".
Atualmente, o aborto só pode ser realizado nos casos em que houve violência sexual, se o feto não tiver cérebro ou se há risco para a vida da mulher.
Caso o projeto de Holiday avance, esse procedimento ficaria ainda mais complicado. Ele prevê que a mulher teria de obter um alvará judicial e esperar 15 dias para receber a aprovação.
Críticas
Para Gabriela Rondon, pesquisadora da Anis - Instituto de Bioética, o artigo 6º do PL, que prevê a internação psiquiátrica, é inconstitucional. "É um dispositivo muito amplo. Na prática, permitiria que qualquer mulher em situação de gravidez não planejada ficasse sujeita à internação psiquiátrica".
A especialista também critica a necessidade de alvará judicial e a espera de 15 dias, previstas nos artigos 2º e 3º do PL, respectivamente. "No aborto legal, o tempo importa muito. Criar essas exigências é uma forma de estender a gravidez e impossibilitar a realização do procedimento".
Já Ana Rita Souza Prata, do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo, afirma que é "absolutamente ilegal" o artigo referente à internação psiquiátrica.
"A redação da lei abre espaço para que uma internação prevista para pessoas com transtorno psicológico seja usada em casos que envolvam pessoas com complicações sociais".
Sobre a obtenção de alvará e a espera de 15 dias, a defensora pública defende que quanto mais cedo o aborto for realizado, mais seguro será o procedimento.
Hoje, diz ela, a mulher não precisa de autorização da Justiça e não há período de espera para a realização do aborto legal.
Mauro Aranha, psiquiatra e ex-presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), considera "totalmente desproporcional" a possibilidade de internação psiquiátrica.
Segundo ele, a decisão de uma mulher pelo aborto "não tem qualquer relação com um transtorno mental na esmagadora maioria das vezes".
Outro questionamento é sobre a competência da Câmara para legislar sobre o assunto. "A Constituição Federal estabelece, no artigo 22, a competência privativa da União para legislar sobre direitos civis e penais. O aborto envolve aspectos de ambos, já que tem impactos na vida civil e consequências penais. Ou seja, só a União poderia fazer esse tipo de mudança na lei", diz Flávio de Leão Bastos, professor de Direito Constitucional da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Defesa do projeto
Sobre as críticas feitas ao PL, o vereador Fernando Holiday afirma que não vê possibilidade de a internação psiquiátrica ser aplicada indiscriminadamente.
Segundo ele, essa medida seria usada "apenas nos casos em que há algum prejuízo mental ou dependência química", como prevê a Lei federal 10.216 de 2001, citada no artigo 6º do PL.
Ainda assim, Holiday admite que alguns dispositivos do PL poderão ser alterados durante as comissões da Câmara, "para evitar dúvidas".
Sobre a exigência de alvará, o vereador defende que é necessária uma averiguação mais rigorosa antes do aborto, para que fique comprovado que a mulher se enquadra em uma das situações em que o procedimento é legal.
Segundo ele, a legislação atual permite que "apenas a palavra da mulher" seja o suficiente para que o procedimento seja realizado, o que acaba "liberando o aborto indiscriminadamente no Brasil", na avaliação do vereador.
Já a necessidade dos 15 dias de espera e das medidas a serem tomadas nesse período é uma forma de "preservar a vida" do feto, de acordo com vereador.
As estatísticas, contudo, contradizem o posicionamento do parlamentar. Um estudo do Artigo 19, organização britânica de direitos humanos, divulgado na semana passada, mostra que o aborto legal no Brasil é negado em 57% dos hospitais que oferecem esse serviço.
Os dados revelam que das 176 instituições cadastradas para ofertar o serviço, apenas 76 (43%) confirmam que o fazem quando contatadas pelo telefone.
Discussão federal
O debate sobre o aborto também ganhou força em Brasília neste ano. Em fevereiro, o Senado desengavetou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que proíbe o procedimento em qualquer situação.
Apresentada em 2015 pelo ex-senador Magno Malta (PL-ES), a PEC voltou à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, onde poderá ser avaliada nos próximos meses.