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Havelange: sem minuto de silêncio

Na manhã da quarta-feira 17 de agosto, décimo segundo dia de competições após a abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, a polícia carioca chegou ao hotel Windsor, na Barra da Tijuca, com ordem para prender o irlandês Patrick Hickey. Uma imagem divulgada pela ESPN Brasil mostrou o dirigente, de roupão, abrindo a porta […]

HAVELANGE: Mais do que “legado”, a palavra que se cola hoje à trajetória de João Havelange é “corrupção” / Jorge Adorno/ Reuters

HAVELANGE: Mais do que “legado”, a palavra que se cola hoje à trajetória de João Havelange é “corrupção” / Jorge Adorno/ Reuters

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Da Redação

Publicado em 19 de agosto de 2016 às 20h19.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h10.

Na manhã da quarta-feira 17 de agosto, décimo segundo dia de competições após a abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, a polícia carioca chegou ao hotel Windsor, na Barra da Tijuca, com ordem para prender o irlandês Patrick Hickey. Uma imagem divulgada pela ESPN Brasil mostrou o dirigente, de roupão, abrindo a porta do seu quarto para os policiais. Trata-se de peixe graúdo do esporte global. Hickey é membro do COI (Comitê Olímpico Internacional), principal executivo do Comitê Olímpico Europeu e presidente do Comitê Olímpico da Irlanda – cargos dos quais, após o incidente, pediu afastamento. Aos 71 anos, teria passado mal após a prisão e foi internado em um hospital sob vigilância das autoridades. Dois dias depois, foi transferido para o Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu, zona oeste do Rio.

A acusação contra o dirigente é de participação em um esquema de venda ilegal de ingressos para os Jogos do Rio. A ocorrência não é novidade em terras cariocas. Durante a Copa do Mundo de 2014, mais de dez pessoas foram detidas pela polícia do estado sob a mesma acusação – venda ilegal e superfaturada de ingressos VIP. Entre eles, estrangeiros notórios como o inglês Raymond Whelan, CEO da Match Services, empresa que detinha a exclusividade, concedida pela Fifa, para a comercialização dos tickets do Mundial do Brasil.

Os dois eventos, a Olimpíada e a Copa do Mundo, movimentam somas gigantescas de dinheiro, na casa dos bilhões de dólares, em direitos de transmissão, patrocínio, licenciamento, eventos, ingressos. Natural que atraiam gatunos de todos os tipos. Nos últimos anos, o mundo soube que muitos deles eram lideranças das próprias instituições que detêm seus controles: o COI e a Fifa.

A biografia mais manchada entre todos os dirigentes esportivos foi, sem dúvida, a de Jean-Marie Faustin Goedefroid Havelange, o brasileiro de ascendência belga João Havelange, que morreu um dia antes da prisão de Hickey, também no Rio de Janeiro, sua cidade natal. Até mesmo porque nenhum cartola do esporte teve a notoriedade de Havelange. Ex-nadador (Jogos de Berlim-1936) e jogador de polo-aquático (Helsinque-1952), Havelange virou dirigente máximo do esporte brasileiro em 1958, como presidente da CBD (Confederação Brasileira de Desportos). Ficaria até 1975, período em que o futebol brasileiro viveu seu ápice, conquistando o tricampeonato mundial (1958, 1962 e 1970). Em 1963, foi eleito membro do COI.

Em 1975, Havelange deixou a CBD para assumir a Fifa, entidade máxima do futebol no planeta. Sua gestão na instituição duraria até 1998, período em que o esporte se tornaria o mais popular do mundo, experimentando uma notável expansão em prática, interesse e mercado. O dirigente brasileiro se gabava de um fato: a Fifa tinha mais países membros que a ONU (Organização das Nações Unidas).

Havelange experimentou nesses 24 anos à frente da Fifa uma prestígio de chefe de estado. Foi recebido por presidentes, reis, papas, aiatolás e ditadores nos cinco continentes. Organizou seis Copas do Mundo, visitou quase 200 países, teve acesso às personalidades mais importantes do globo. Entre as honrarias que recebeu, estão títulos de Comendador, Cavaleiro, Doutor Honoris Causa, “Dirigente do Século”. Estádios e até o Campeonato Brasileiro de 2000 foram batizados com seu nome. Em 1989, usou sua influência para eleger seu então genro, Ricardo Teixeira, para a presidência da CBF (Confederação Brasileira de Futebol). Teixeira, a exemplo do sogro, se manteria no cargo por longo período – até 2012.

Em 1998, após ter feito seu sucessor na Fifa (o suíço Joseph Blatter), Havelange, então com 82 anos, deixou a linha de frente do esporte, atuando como presidente de honra da Fifa e decano (membro com mais tempo de casa) do COI. Mas não gozaria em paz dessa “aposentadoria”. A entrada do novo milênio marcaria uma reviravolta em sua persona pública: de dirigente poderoso a indivíduo investigado por crimes de corrupção. E tudo por conta de seu envolvimento com outra sigla: ISL (International Sport and Leisure).

A ISL foi fundada por Horst Dassler, filho do fundador da Adidas, Adi Dassler, tradicional empresa alemã parceira da Fifa, e homem muito próximo a Havelange. A agência nascia para expandir o potencial econômico do futebol em âmbito planetário, incluindo a comercialização dos direitos de transmissão da Copa do Mundo.

A partir de 2000 e ao longo da primeira década do milênio, começaram a surgir reportagens, principalmente na imprensa britânica, sobre um esquema de propinas pagas a dirigentes do alto escalão da entidade. Havelange e Teixeira (membro do Comitê Executivo da Fifa desde 1994) eram comumente citados como beneficiários, e o principal “pagador” seria a ISL.

As autoridades da Suíça, onde a Fifa tem sua sede, intensificaram as investigações. O esquema, segundo os promotores suíços, teria fraudado a entidade em 45,5 milhões de reais, desviados para os caixas de Havelange e Teixeira. A partir de 2010, a “venda” de votos para escolha das sedes da Copa do Mundo também entraria na lista de acusações. Um acordo na Justiça da Suíça teria feito os dirigentes devolverem dinheiro para encerrar o caso.

A Fifa foi forçada a abrir uma sindicância interna. Em 2012, a entidade admitiu a propina paga a Havelange, Teixeira e também ao presidente da Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol), o paraguaio Nicolás Leoz. Blatter foi poupado. Todo o escândalo provocou renúncias em cascata: Havelange, dos cargos no COI e na Fifa; Teixeira, da presidência da CBF, do Comitê Organizador da Copa do Mundo de 2014 e também de sua cadeira no Comitê Executivo da Fifa; e Leoz, da Conmebol e do Comitê Executivo da FIFA. Ex-genro e ex-sogro passaram a viver reclusos, evitando aparições públicas e entrevistas.

Na madrugada de terça-feira, 16 de agosto, uma infecção generalizada matou João Havelange aos 100 anos de idade. Na Olimpíada realizada em sua cidade, evento pelo qual ele empreendera seu arsenal de influências, os golpes à sua reputação continuaram. O COI, que o tivera como membro por mais de 50 anos, se recusou a prestar-lhe homenagem e proibiu a bandeira com os arcos olímpicos de ficar a meio mastro. Coube ao Comitê Organizador da Rio-2016 solicitar que, pelo menos, a bandeira brasileira ficasse em tal condição nas arenas dos Jogos. O COI permitiu.

Também não houve um minuto de silêncio nas competições. Tampouco no Estádio Olímpico, que foi inaugurado em 2007 para os Jogos Pan-Americanos do Rio como Estádio Olímpico João Havelange mas que, desde o ano passado, chama-se Estádio Nilton Santos. Ou, como é popularmente conhecido, Engenhão. Mais do que “legado”, a palavra que se cola hoje à trajetória de João Havelange é “corrupção”.

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