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Funai muda critérios para definir quem é e quem não é indígena

Decisão tem gerado reação entre instituições e organizações que atuam na proteção dos povos originários

1ª Marcha das Mulheres Indígenas: Funai alega que, com a medida, pretende "padronizar e dar segurança jurídica" ao processo de autodeclaração indígena (Andre Coelho/Reuters)

1ª Marcha das Mulheres Indígenas: Funai alega que, com a medida, pretende "padronizar e dar segurança jurídica" ao processo de autodeclaração indígena (Andre Coelho/Reuters)

EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 4 de fevereiro de 2021 às 21h19.

A Fundação Nacional do Índio (Funai) decidiu mudar os critérios usados no país para determinar quem é índio ou não no Brasil. O reconhecimento como indígena, que até hoje era feito por meio de uma autodeclaração da própria pessoa, passa a incluir agora uma série de critérios, um tipo de prova que a fundação estabeleceu para "filtrar" aqueles que, em sua avaliação, não devem ser reconhecidos como pertencentes ao grupo étnico.

A decisão de publicar uma nova resolução com o objetivo de estabelecer novos critérios para a "autodeclaração indígena" tem gerado reação entre instituições e organizações que atuam na proteção dos povos originários. O Ministério Público Federal vê ilegalidade na medida.

Em sua resolução, a Funai afirma que os novos critérios passam a incluir: 1. vínculo histórico e tradicional de ocupação ou habitação entre a etnia e algum ponto do território soberano brasileiro; 2. consciência íntima declarada sobre ser índio (autodeclaração); 3. origem e ascendência pré-colombiana (existente o item 1, haverá esse requisito, uma vez que o Brasil se insere na própria territorialidade pré-colombiana); 4. identificação do indivíduo por grupo étnico existente, conforme definição lastreada em critérios técnicos/científicos, e cujas características culturais sejam distintas daquelas presentes na sociedade não índia.

A Funai alega que, com a medida, pretende "padronizar e dar segurança jurídica" ao processo de autodeclaração indígena, como forma de "proteger a identidade indígena e evitar fraudes na obtenção de benefícios sociais voltados a essa população".

O Ministério Público Federal divulgou nesta quinta-feira, 4, em que recomenda à Funai a revogação imediata da resolução. O órgão afirma que a medida é inconstitucional e destaca que qualquer iniciativa relacionada ao reconhecimento da identidade indígena deve ser submetida à consulta livre, prévia e informada desses povos.

A nota pública foi elaborada pela Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF (6CCR/MPF). No documento, o colegiado ressalta que a Constituição Federal de 1988 garantiu aos povos indígenas o direito à autodeterminação, o que implica reconhecer sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Dessa forma, "está no plano da autonomia dos povos indígenas a definição, implícita na própria cultura, de critérios de pertencimento ao grupo e, portanto, a capacidade de reconhecer quem são seus membros", afirma o MPF.

A Câmara lembra que a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é expressa ao estabelecer que "a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção", ou seja, para determinar quem são os povos indígenas.

Nesta quinta-feira, 4, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) também divulgou um comunicado, no qual afirma que a resolução 4, publicada no dia 22 de janeiro, tem a finalidade, na prática, de repassar à Funai a função de dizer quem é e quem não é indígena no Brasil, o que antes era um papel dos próprios indígenas, direito garantido pela Constituição Federal e por tratados internacionais assinados pelo Brasil, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.

"A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) denuncia este novo ato do governo federal, que declaradamente está contra os direitos dos povos e pede a imediata anulação da Resolução nº 4 da Funai. Alertamos para que todas as lideranças e organizações indígenas estejam atentas para essa medida e que exijam o cancelamento deste ato, que tem suas raízes na ditadura militar, época em que mais de 8 mil indígenas foram mortos no Brasil", afirma a Apib.

A avaliação da organização é de que o governo quer interferir no processo de autodeclaração indígena, sem sequer ter consultado os povos indígenas a respeito do assunto. "Com essa medida, a Funai violou tratados internacionais que são leis no Brasil e também a Constituição Federal. Querem que os povos indígenas sejam novamente TUTELADOS pelo estado brasileiro, como na década de 1970 quando existia o Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Não podemos admitir mais um retrocesso", declara a Apib.

A única forma de reconhecimento dos povos indígenas, segundo a organização, é o autorreconhecimento, que é um processo individual e coletivo, pois a comunidade ou povo tem a autoridade de reconhecer os indígenas, independentemente do local onde vivem. "Qualquer critério estabelecido pelo Estado é autoritário, limitador e cientificamente ultrapassado e equivocado", afirma a associação. "Não importa se o indígena passou a viver na cidade, se tem formação universitária ou se ele mora no território tradicional. Um indígena sempre será indígena, independentemente das condições sociais ou do local que vive, mantendo vínculos com a sua ancestralidade, modos de vida e cultura."

Procurada pela reportagem, a Funai informou que "a resolução tem respaldo em diversos preceitos jurídicos e estudos realizados no País e foi elaborada com base em entendimento da Procuradoria Federal Especializada junto à fundação".

O presidente da Funai, Marcelo Xavier, afirma que, embora "se considere que a identidade e o pertencimento étnico não sejam conceitos estáticos, mas processos dinâmicos de construção individual e social, a ausência de critérios na heteroidentificação pode gerar uma banalização da identidade indígena".

"O sentimento de pertinência ou o direito de uma pessoa sentir-se indígena não há de ser negado, contudo, o fato jurídico apto a gerar direitos aos indígenas depende de critérios que precisam ser minimamente definidos. Para uma melhor proteção dos grupos e indivíduos indígenas é necessário o aclaramento desses critérios, sob pena de tornar trivial e fútil a identificação indígena, diminuindo-lhe o valor", declarou Xavier, por meio de nota.

Marcelo Xavier afirma que "a resolução contribui para evitar fraudes e abusos que poderiam acabar subvertendo a função social" decorrente da identidade indígena. "Queremos evitar que oportunistas, sem qualquer identificação étnica com a causa indígena, tenham acesso à territorialidade ou a algum benefício social ou econômico do governo federal", diz. "A Funai acredita que a política indigenista deve ser fundamentada em três pilares: dignidade, pacificação dos conflitos e segurança jurídica. Dessa forma, temos trabalhado para construir uma nova realidade para os indígenas, pautada no respeito e na proteção dos direitos dessas populações."

O especialista em etonologia Marcio Santilli, um dos fundadores do Instituto Socioambiental (ISA), vê uma ação coordenada do governo para reduzir a população indígena. "Há uma política de governo orientada para excluir a maioria da população indígena dos direitos reconhecidos pela Constituição, ao se atribuir o direito de dizer quem é índio e quem não é, ao se negar a assistir as comunidades que vivem em terras com demarcações em curso e ao excluir das prioridades para vacinação os índios que não vivem em terras indígenas", disse ao Estadão.

A Assessoria Jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) produziu uma nota técnica sobre a resolução. Na avaliação da organização, a medida denota a intenção da Funai de "voltar a definir quem é ou não indígena, num retorno ao regime jurídico da tutela que embasava a atuação estatal antes da promulgação da Constituição de 1988, com o mesmo modus operandi do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI)".

"Essa normativa consolida o racismo institucional contra os povos indígenas ao propor critérios sobre uma auto-identificação que é, por direito, subjetiva, não se reduzindo aos estereótipos ou características fenotípicas, além de buscar cristalizar e segregar as identidades ditas ‘pré-colombianas’", analisa a Assessoria Jurídica do Cimi.

Mourão

As regras da Funai, se aplicadas em 2018, poderiam afetar até mesmo o vice-presidente Hamilton Mourão, que se declarou indígena em seu registro de candidatura ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O ato foi registrado após Mourão afirmar, em sua primeira agenda pública como vice de Bolsonaro, que tinha herdado a "indolência" do índio e a "malandragem" do africano, o que causou forte revolta reação dado o cunho racista de sua fala. Mourão declarou que seu pai é amazonense e que ele seria indígena.

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