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Família e comunidade questionam apreensão de dois adolescentes em SP

Prisão foi decretada com base em reconhecimento feito pela vítima, mas defesa alega que os dois garotos estavam a 3km de distância do local do crime

Favela São Remo: Prisão de dois adolescentes baseada em reconhecimento da vítima, uma policial, é questionada por familiares e comunidade da zona oeste de São Paulo (Ben Tavener /Flickr/Wikimedia Commons)

Favela São Remo: Prisão de dois adolescentes baseada em reconhecimento da vítima, uma policial, é questionada por familiares e comunidade da zona oeste de São Paulo (Ben Tavener /Flickr/Wikimedia Commons)

EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 23 de julho de 2019 às 15h21.

Última atualização em 23 de julho de 2019 às 16h17.

Na várzea, Nico joga no ataque. Embora aparente ser magricelo e lhe falte elegância no trato com a bola, o jovem de 16 anos compensa no vigor físico: corre o campo inteiro e não é de desistir de jogada - estilo que, aos olhos do treinador, lembra um pouco Viola, campeão do mundo em 1994.

Elegância, por sinal, é a principal característica do amigo Alê, de 17 anos. De passe refinado, o garoto está mais para um camisa 10, o meio-campista clássico que, justamente por não correr tanto assim, inspira comparações com Paulo Henrique Ganso, ex-joia do Santos e hoje no Fluminense.

Criados na São Remo, favela na zona oeste de São Paulo, os jovens foram apreendidos pela Polícia Militar na terça-feira da semana passada, dia 16, acusados de render, ameaçar e roubar à mão armada uma mulher de 37 anos. Eles alegam inocência, mas foram reconhecidos pela vítima na delegacia. Desde então, estão na Fundação Casa.

Familiares, no entanto, acreditam se tratar de "pisão forjada" e passaram a investigar o álibi dos jovens por conta própria. Nico e Alê declaram que saíram juntos da São Remo e estavam indo a pé até a casa da namorada de um deles, no Jaguaré - uma caminhada de cerca de 40 minutos. Quando esperavam ela sair na frente do portão, foram pegos e algemados pela PM.

Para tentar confirmar a versão, foram levantadas imagens de câmeras instaladas no trajeto e informações de georreferenciamento registradas no celular de Nico. Com base nesses dados, chegaram à conclusão: os jovens estariam a cerca de 3 quilômetros do local em que a vítima foi assaltada.

Moradores também saíram em defesa dos adolescentes. Uma passeata pela liberdade dos jogadores foi feita nesta segunda-feira, 22, na São Remo. "Tenho certeza absoluta que eles não fizeram isso", afirma o treinador Lula Santos, que coordena o projeto social Escolinha de Futebol Catumbi. "Eles estudam, têm endereço fixo, não bebem e não fumam nem cigarro. Gostam de jogar futebol."

Nico e Alê fazem parte do Favela do 1010, equipe formada por comunidades da zona oeste, que chegou à final da Taça das Favelas 2019. O atacante é titular. O meia acabou não jogando por questão médica. Disputada em junho, a partida mobilizou público superior a 30 mil pessoas nas arquibancadas, segundo contagem da Prefeitura, e foi transmitida ao vivo pela TV Globo.

Técnico da equipe, Santos diz que os adolescentes entraram para o Projeto Catumbi há mais de cinco anos. "Nosso trabalho é educar pelo esporte. Independentemente de virar atleta profissional, é ser cidadão de bem", diz. "O time acabou de jogar em um estádio onde pisaram vários ícones do nosso futebol. É o sonho deles. Como alguém que está ascendendo vai fazer um assalto?"

Para preservar os adolescentes, o jornal O Estado de S. Paulo optou por usar nomes fictícios nesta reportagem.

Depoimento de PM e reconhecimento

Às 21h40 de terça, uma PM de folga estava procurando uma vaga para estacionar na Praça General Porto Carreiro, no Jaguaré. Ao descer do carro, foi abordada por dois assaltantes - um deles pelas costas. Um terceiro criminoso chegou e a empurrou de volta para o banco de trás, não sem antes ameaçá-la com a arma na cabeça e dentro da boca.

Com a vítima rendida, os criminosos teriam descido a Avenida Presidente Altino, passado pela Avenida Dracena e até despistado uma viatura. Já na entrada da favela, o criminoso de trás desembarcou e a policial aproveitou o momento para fugir, segundo boletim de ocorrência registrado no 91.º Distrito Policial (Butantã).

O Copom irradiou a ocorrência e uma viatura localizou o carro roubado, um Honda HR-V, parado na Rua Onofrio Milano, uma viela do Jaguaré. Segundo o PM que realizou a apreensão, Nico, Alê e uma terceira pessoa estariam do lado do veículo e teriam tentado sair correndo quando notaram a chegada do policial. Nico e Alê, entretanto, não conseguiram, diz o PM.

Em depoimento no 91º DP, o agente afirmou ter encontrado a chave do carro com Nico. Também disse que os jovens teriam confessado o roubo e declarado que pretendiam vender o veículo. Os jogadores ficaram em silêncio na delegacia, segundo o BO.

O principal indício de autoria, porém, é o reconhecimento da vítima. No DP, a policial declarou que, "sem sombra de dúvida", foi Alê quem lhe abordou pelas costas, pôs a arma em sua testa e assumiu o volante. Também disse, "sem sombra de dúvida", que Nico a revistou e ficou sentado do seu lado no carro.

"Tenho certeza de que é um reconhecimento fantasioso. O 91º DP nem tem sala apropriada para o procedimento", diz o advogado Francisco Chagas, que representa os jovens no caso. Segundo afirma, fez requerimento de liberdade provisória à Justiça, mas o pedido ainda não foi apreciado.

Na quinta-feira, 18, os jovens participaram da primeira audiência de apresentação. Na ocasião, o promotor entendeu que, até aquele momento, haveria indício para manter os jovens internados, de acordo com Chagas. Outra audiência está marcada para a próxima segunda-feira, 29.

Questionamentos

"Até agora, estou sem acreditar no que está acontecendo", afirma Maria Ivone dos Santos, de 38 anos, a mãe de Nico, o segundo de três filhos. Segundo conta, ela conseguiu visitá-lo na Fundação Casa na semana passada. "Meu filho relatou: 'eu não tenho necessidade de roubar, estava vivendo o meu maior sonho'", conta. "A intenção dele sempre foi encontrar um clube para jogar."

De acordo com Maria Ivone, Nico havia passado o dia em casa e só saiu à tarde para pagar uma conta do avô, de 90 anos. "Às 20 horas e pouquinho, a gente estava comendo pipoca na sala, ele se arrumou para encontrar a namorada", diz. As conversas entre ele e a garota por WhatsApp foram anexadas no pedido de liberdade.

A mãe afirma, ainda, que o filho chegou a entregar o celular para o cunhado carregar, enquanto esperava a namorada sair. "Eu sei todos os passos dele, porque é um filho comunicativo, não dorme nem fora de casa", diz Maria Ivone. "Não é um jovem rebelde. Quem conhece sabe que tem algo errado."

Questionada, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) sustenta que "a vítima reconheceu ambos como autores do crime" e afirma que com "um dos jovens apreendidos foi encontrada a chave do carro". "Eles foram apresentados ao 91º DP (Butantã) e o caso encaminhado à Vara da Infância e Juventude", diz a nota.

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