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Everardo Maciel: É preciso criar uma lei para punir o abuso de autoridade

Ex-secretário da Receita diz que novas medidas do governo para evitar violações de sigilo fiscal estão na direção certa, mas não são o bastante

Maciel afirma que as novas medidas não dão conta de eliminar as fragilidades do sistema (Bússola/Reprodução)

Maciel afirma que as novas medidas não dão conta de eliminar as fragilidades do sistema (Bússola/Reprodução)

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Da Redação

Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h11.

Brasília - O ex-secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, diz que é preciso criar uma lei para punir o abuso de autoridade. A afirmação foi feita em entrevista ao site EXAME em meio aos recentes escândalos de quebra de sigilo fiscal de tucanos e pessoas ligadas à oposição.

EXAME - Qual a sua opinião sobre as novas medidas de segurança ao sigilo fiscal dos contribuintes, anunciadas recentemente pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega?

Everardo Maciel - No conjunto, elas são boas. Finalmente, o governo adotou a postura afirmativa de quem admite a existência de problemas na Receita e passa a agir no sentido de evitar que as violações se repitam. As medidas anunciadas reproduzem o que várias pessoas, inclusive eu, sugeriram, como a adoção de parâmetros de normalidade. A exemplo do sistema de segurança dos cartões de crédito, tais parâmetros emitem uma espécie de alarme sempre que houver um número de acessos suspeitos, sejam desproporcionais à média de consultas ao sistema ou por serem estranhos à área de jurisdição daquela unidade da Receita. Mas gostaria de fazer algumas ponderações. A primeira é que não faz o menor sentido o governo editar uma medida provisória para estabelecer um tipo penal ou algum tipo de penalidade administrativa para quem emprestar a senha. Acontece que essa lei já existe, precisamente no parágrafo primeiro do artigo 325 do Código Penal, que foi redigido exatamente por essa razão em 2000 [depois do vazamento de 17 milhões de CPFs ocorrido no Serpro, o Serviço Federal de Processamento de Dados]. Além disso, mesmo se a penalidade ainda não fosse prevista em lei, não se pode alterar o Código Penal por medida provisória. Para fazê-lo, seria necessária a aprovação de um projeto de lei pelo Congresso.

Lamento também que as medidas não tenham abordado uma questão essencial que é a existência de um compromisso sério de governo com a proteção da imagem do cidadão. Até agora o governo tem sido tímido na condenação aos vazamentos. Se há problemas, é preciso que ele assuma a sua responsabilidade - que é uma coisa diferente de indicar os culpados, a serem revelados pela investigação. Está faltando essa postura mais transparente à Receita. Eles devem dizer: nós temos um problema, a dimensão é essa e vamos agir prontamente. É preciso, ainda, que se crie uma legislação para criminalizar o abuso de autoridade, o terrorismo de Estado. Hoje vivemos num clima de absoluta condescendência com a violação cotidiana de informações protegidas pela Constituição. Vemos com freqüência enorme a publicação nos jornais de matérias protegidas por segredo de justiça, a que o veículo teve acesso. E qual tem sido a conseqüência disso? Nenhuma. Esses abusos se banalizaram. Mas o fato é que a criação de uma lei do abuso de autoridade exigiria também um enfrentamento político dos governantes para garantir que o respeito ao sigilo se incorpore como valor intrínseco à sociedade.

Finalmente, mais um aspecto importante a ser considerado é ausência de um posicionamento firme do governo para garantir-se o caráter republicano à Receita, sem que se permitam alinhamentos político-partidários e tampouco que ela sirva a interesses corporativos. Para dar um exemplo, hoje a Receita está conflagrada por uma briga de duas categorias profissionais, o que é inaceitável. De um lado, estão os analistas, e de outro, os auditores. Os dois lados vivem numa situação de beligerância permanente. Para que a Receita cumpra o seu papel com integridade, essa questão tem que ser resolvida com urgência.

EXAME - Como a Receita chegou ao ponto em que a violação de sigilos fiscais tornou-se algo relativamente corriqueiro?

Everardo Maciel - Graças à politização indevida da instituição. Não falo da politização como uma coisa articulada oficialmente a um grupamento político-partidário. Trata-se de uma coisa mais elaborada: quando se começam a utilizar os meios próprios do Estado para criar uma situação que não é republicana, que obedece a interesses corporativos, ou interesses políticos, ou, ainda, interesses quaisquer que não sejam aqueles vinculados à competência institucional do órgão.


 

EXAME - A candidata petista Dilma Rousseff e a direção de sua campanha têm negado com veemência as acusações de que estariam envolvidos nas violações de sigilo fiscal. Qual seria então o modus operandi dos vazamentos?

Everardo Maciel - Não posso afirmar com segurança, pois não estou acompanhando de perto as investigações. Mas creio tratar-se de iniciativas isoladas, de pessoas e grupamentos que funcionam como células que não obedecem a nenhuma diretriz partidária. Não faz sentido dizer que se trata de alguma coisa da direção do PT ou de sua candidata. Não acredito nisso. É bem possível que boa parte das pessoas envolvidas na violação de sigilos pessoas sejam filiadas ao partido, mas daí a concluir que tenha sido uma orientação partidária, acho que é uma ilação. Mas esse esclarecimento só pode ser feito no curso de uma investigação, de preferência policial.

EXAME - Voltando à questão da segurança, o senhor recomendaria também o treinamento periódico dos analistas e auditores da Receita sobre procedimentos de segurança? Hoje, a Receita se limita a cobrar a assinatura de um termo de responsabilidade por parte desses servidores no momento em que eles começam a cumprir suas funções. 

Everardo Maciel - Sem dúvida. O termo de responsabilidade é uma coisa puramente acessória, um ato burocrático que deveria ser até desnecessário para o cumprimento de atividades tributárias. E além de treinamentos, o pessoal da Receita deveria continuar verificando sistematicamente as vulnerabilidades do sistema. Isso é especialmente importante na resistência aos ataques de hackers. A Receita continua invicta a eles porque têm-lhes conferido prioridade. Até hoje, o site da Receita, jamais foi invadido. E não é por falta de tentativas dos hackers. Na época das declarações do imposto de renda, o site costuma a receber até mil tentativas de invasão por dia. Aliás, cabe lembrar o conhecido caso dos vazamentos dos dados secretos do Pentágono, que se encontram na internet. Ele ensina que não existe sistema de segurança invulnerável. Por outro lado, quando você tem um local onde todos respeitam determinada norma, a norma tende a ser cumprida. Existem cidades na Ásia onde não se encontra um pedaço de papel nas ruas, porque é proibido. E todos sabem que a punição é extremamente severa para o descumprimento dessa norma. Logo, a Receita precisa cultivar a cultura da segurança como uma questão de máxima prioridade.

Insisto nesse ponto em função da repetição sistemática da violação de sigilo nos últimos anos. Em 2006, a imprensa publicou que funcionários da Receita visitaram informações de 13 000 contribuintes, pessoas físicas e jurídicas, incluindo magistrados e políticos. Foi aberto um inquérito e a corregedoria da Receita concluiu que todos os acessos eram motivados: 30 000 acessos num período curto! Isso é um escárnio, um deboche para qualquer percepção racional. Se alguém visita as informações protegidas de 13 000 contribuintes, isso autoriza e sanciona pessoas outras que possam fazer qualquer coisa. Caímos aí na armadilha dostoievskiana: "se Deus não existe, tudo é permitido." Leia-se: se não existe controle, tudo é possível.

EXAME - Nas semanas que antecederam o anúncio das novas medidas de segurança, o ministro Guido Mantega disse que a recente onda de vazamentos não é uma novidade na Receita. O senhor concorda?

Everardo Maciel - De fato, não é a primeira vez que ocorre uma violação de sigilo fiscal. Mas o governo não pode ser tolerante com eles. Em 1995, quando assumi o cargo de secretário, a Receita estava na idade da pedra em termos de segurança. O primeiro passo foi assumir o problema como nosso e fazer um trabalho penoso de investigação, para detectar a origem dos vazamentos, que provinham do Serpro. Chegamos a obter elementos de prova para identificar quem estava operando esse esquema. Constatamos, ainda, que o SNI [o antigo Sistema Nacional de Informações] tinha informações da Receita, também via Serpro. Fui procurado pelos órgãos de segurança e disse que não eles não teriam mais acesso a esse tipo de informação. E eles tinham o acesso desde os anos 60. Não hesitamos em fechar esse canal. Depois descobrimos outra forma de saída de dados. É que sem nenhum controle ou segurança, havia também a possibilidade de vazamentos a partir de convênios entre a Receita e as secretarias de Fazenda estaduais.

A solução foi cancelar todos esses convênios. Depois de detectar a origem dos vazamentos e fechar esses furos, adotamos uma série de medidas, com regras restritivas ao acesso às informações fiscais e a criação de penalidades sobre acessos que qualificamos como imotivados, que hoje são tipificados no Código Penal e no Código Tributário Nacional. Acrescida a essa regra, restringimos a possibilidade de acesso a informações protegidas pelo sigilo bancário. Mas mesmo com essas novas medidas, o sistema de segurança continuava e ainda continua vulnerável, em função de aberturas, como o acesso que outros órgãos do governo, como o Ministério Público, que tem competência legal para requisitar as informações. Muitas vezes, a imprensa toma conhecimento de informações sigilosas por esse meio. É justamente para coibir esse tipo de vazamento que precisamos criar a lei que pune o abuso de autoridade.


EXAME - Seria o caso da Receita criar um manual de conduta para tornar suas regras claras para seus servidores?

Everardo Maciel - Não. O cumprimento das normas se dá pelos atos concretos tomados pela direção da Receita. Por exemplo, quando era secretário, criei o mandado de procedimento fiscal, para deixar claro que o servidor que ali está, está agindo em nome do Estado, e não de si próprio. Ele existe para que o contribuinte saiba que ao falar com a Receita, não está lidando com uma pessoa em si - com um mero cobrador de impostos - mas com o próprio Estado. Mas essa iniciativa despertou enorme oposição de facções sindicais, que tentaram, sem sucesso, anular o mandado. E a todo instante, tais movimentos continuam tentando acabar com as medidas de controle, a quem chamam de “lixo normativo.” E é bom que se diga que sem controles como a senha e a figura do acesso imotivado, seria impossível detectar os responsáveis pelas recentes quebras de sigilo fiscal. Todas as medidas de aprimoramento da segurança foram objeto de contestação de grupos sindicais da Receita, que veiculam uma tese de grande apelo: "ora, nós queremos defender a força do funcionário da Receita". No fundo, eles estão defendendo a manutenção de um status quo que favorece a força pessoal do servidor ante à força da instituição. 

Em nome dessa tese de fácil apelo, eles se levantam contra qualquer instrumento de controle. Quem ficar à sua frente, torna-se uma vítima potencial, a quem eles não terão receio de agredir, difamar ou sabotar. Digo sabotagem, porque chegaram a fazer uma declaração de renda fria, em meu nome, grosseiramente falsificada, da qual só vim a tomar conhecimento posteriormente. Foi uma sabotagem ineficaz. É de se perguntar como é que eu não tomei conhecimento imediato. Por uma razão muito simples: a regra determinava que se houvesse uma declaração anterior, ela se tornaria invisível para o contribuinte. Eu só vim saber muito tempo depois, da maneira mais inusitada possível, quando procurei declarações minhas e encontrei aquilo. Comuniquei à Receita, mas a minha reclamação não produziu nenhum efeito, como não produziu em relação a ninguém.

EXAME- Qual o tamanho do estrago do chamado escândalo "aloprados 2" para a imagem da Receita?

Everardo Maciel - O dano é enorme, monumental. Trata-se de uma enorme crise, que debilita a imagem da Receita e constrange a imensa maioria dos servidores honrados da instituição. Será necessário um esforço brutal para restabelecer a credibilidade da instituição. As possibilidades de que o fisco seja utilizado como instrumento para a perseguição política de cidadãos e empresas são conhecidas no mundo todo, a exemplo da Argentina, onde o casal Kirchner não poupa esforços para atacar o jornal El Clarín. Numa ocasião, o fisco argentino enviou 300 funcionários para fiscalizar o jornal numa iniciativa que era um ato de puro constrangimento. Essas são armas perigosas nas mãos de pessoas que não têm comprometimento democrático. Precisamos evitar que isso se torne uma realidade no Brasil.

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