Congresso (Paulo Whitaker/Reuters)
Editor de Macroeconomia
Publicado em 6 de fevereiro de 2024 às 20h29.
Última atualização em 6 de fevereiro de 2024 às 21h38.
Há pouco mais de 24 horas, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), fez um duro discurso na retomada dos trabalhos do recesso do Legislativo, e tornou público o embate entre o Congresso Nacional e o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Ao falar na cerimônia de abertura do ano legislativo, Lira cobrou a gestão do petista por "respeito" e "cumprimento com a palavra dada". No limite, a tensão entre os Poderes pode prejudicar o andamento da pauta econômica e de outras matérias cruciais ao governo Lula.
Como EXAME vem mostrando, a insatisfação de parlamentares com a articulação política do governo vem se intensificando desde a virada do ano. O nome mais citado nessas conversas é o do o ministro da Secretaria de Relações Institucionais, Alexandre Padilha. No pano de fundo, está a capacidade de aprovar medidas que aumentem a arrecadação e garantam — ou cheguem perto — um déficit fiscal zero e a articulação de pautas de interesse do governo em um ano eleitoral.
O atrito entre os Poderes não é novo e vem se construindo desde o veto, no Orçamento de 2024, de R$ 5,6 bilhões em emendas de comissão, que foram aprovadas pelo Congresso em R$ 16,6 bilhões.
O veto deixou os parlamentares ainda mais descontentes — após o governo ter enviado, em dezembro, uma Medida Provisória que reonera a folha de salários dias depois de o Congresso ter decidido que a política de desoneração deveria permanecer até 2027.
Além da desoneração, a MP extinguiu o Perse, programa de incentivo financeiro às empresas de eventos e limitou compensações tributárias de empresas.
No ano passado, foram liberados R$ 6,9 bilhões em emendas de comissão.
No discurso desta segunda, Lira cobrou respeito aos acordos políticos e compromisso com "a palavra dada". O presidente da Câmara também afirmou que o Orçamento não é de autoria exclusiva do Executivo e de uma "burocracia técnica" que não "gasta a sola do sapato" percorrendo pequenos municípios como os congressistas.
"(O Orçamento) não é e nem pode ser de autoria exclusiva do Executivo e muito menos de uma burocracia técnica, que apesar do seu preparo não foi eleita para escolher as prioridades da nação e não gasta a sola do sapato percorrendo os pequenos municípios brasileiros como nós, senadores e deputados", disse Lira.
Ele também cobrou o Executivo pela manutenção de acordos que foram firmados no ano passado e que estariam sendo descumpridos neste ano: "Não faltamos ao governo e esperamos respeito e compromisso com palavra dada", afirmou. "Boa política se apoia num pilar essencial: no respeito a acordos firmados e compromisso a palavra empenhada. Por nos mantermos fieis à boa política é que exigimos como natural contrapartida respeito a decisões e fiel cumprimento a acordos firmados com o Parlamento."
Lula não participou da cerimônia que abriu as atividades do Congresso em 2024, mas enviou uma mensagem oficial que foi entregue pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa. Na declaração destinada aos parlamentares, Lula afirmou que é necessário haver diálogo que supere as "filiações partidárias".
"O diálogo é condição necessária para a democracia. Diálogo que supera filiações partidárias. Que ultrapassa preferências políticas ou disputas eleitorais. Que é, antes de tudo, uma obrigação republicana que todos nós, representantes eleitos pelo povo, temos que cumprir", disse a mensagem de Lula.
Um dia após vetar a parcela das emendas de comissão no Orçamento Lula afirmou em uma entrevista para a rádio Metrópole de Salvador que o seu convívio com a Câmara é "difícil", mas que não teria do que reclamar sobre a sua relação com o Legislativo.
O petista disse também que ele teria "o maior prazer" em explicar o veto para os parlamentares. O presidente também alfinetou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), ao declarar que o antecessor "não tinha capacidade" para discutir o tema.
"Negocio com o Congresso sempre. Ontem tive de vetar R$ 5,6 bilhões em emendas. Tenho o maior prazer de juntar lideranças e explicar por que foi vetado. Na questão das emendas é importante lembrar que o ex-presidente (Bolsonaro) não tinha governança. Vou repetir: ele não tinha governança. Quem governava era o Congresso. Ele não tinha sequer capacidade de discutir o orçamento, porque não queria ou não fazia parte da lógica dele. Queria que os parlamentares fizessem o que quisessem", afirmou o petista.
Em meio à confusão, a Folha de S. Paulo noticiou que a Fazenda investiga suspeitas de irregularidades dentro do Perse, o programa de incentivo financeiro às empresas de eventos.
O líder do Governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues, disse mais cedo que as suspeitas foram tema de discussão durante a reunião de líderes do Senado.
Elas adicionam combustível ao já acalorado debate da articulação política.
O Perse, segundo a Fazenda, custou R$ 17 bilhões em isenções fiscais em 2023.
Os próximos passos são incertos. Mas a necessidade de se buscar receitas para garantir a meta de um déficit zero persiste.
Na noite dessa terça-feira, 6, o ministro Fernando Haddad afirmou que ainda não há acordo sobre o formato de uma proposta para lidar com a questão da desoneração, porque depende do aval de Lula. Há na mesa a hipótese de o Executivo enviar um projeto de lei com urgência constitucional para tratar do tema.
Uma ideia, e pedido feito pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, é dividir a MP original em duas — uma tratando da folha e benefícios a prefeituras, e outra, que trate do Perse e compensação.
"Creio que vamos ter decisão sobre temas da MP da reoneração nesta semana", disse o ministro. "Vamos sentar com o presidente e definir uma estratégia."
Mais cedo, Haddad também deixou claro seu recado ao afirmar que o atingimento da meta de um déficit zero depende do Congresso.
Para Rafael Cortez, cientista político e sócio da Tendências Consultoria, trata-se de mais um capítulo na balança de poder entre Executivo e Legislativo. "Há uma transição de forças no presidencialismo brasileiro: do presidencialismo de coalizão à competição entre Executivo e Legislativo", afirma. "Dito de modo mais direto: a governabilidade deixou de ser resultado da construção de uma coalizão majoritária de apoio ao governo com a inclusão da presidência das casas legislativas e se tornou resultado da competição entre os Poderes."
O discurso de Lira, segue Cortez, não deve paralisar o processo legislativo em meio às disputas entre os Poderes. "De fato, a rivalidade entre Executivo e Legislativo não deve trazer paralisia decisória em 2024, mesmo com eleições municipais", diz.
Mas há três pontos sensíveis, avalia o cientista político. "O primeiro se refere à disputa orçamentária e à capacidade do sistema político brasileiro em dar racionalidade e eficiência ao gasto público. O governo busca coordenar a ação dos legisladores em torno do PAC ao passo que os parlamentares desejam um orçamento mais “político”", diz.
Além disso, não se pode perder de vista que as negociações em torno da sucessão no Senado e Câmara — que acontecem no próximo ano — estão a todo vapor. "A sucessão da presidência das casas legislativas é um dos fatores com capacidade de dividir a maioria da centro-direita nas casas legislativas. A saída de Lira e Pacheco do comando da Câmara e do Senado deve promover rivalidade entre as bancadas. Ambos os presidentes querem influenciar o resultado e sabem que o apoio do governo é uma variável importante para esse jogo de forças, afirma Cortez.
E, naturalmente, as disputas eleitorais, nas quais, avalia Cortez, Pacheco e Lira precisam costurar acordos e indicar aliados em posições estratégicas para o projeto eleitoral em 2026. "A maior rivalidade entre governo e Lira explica uma parte das relações mais complicadas com a Câmara", afirma.
É só o começo de um ano em que há muito em jogo para todos os envolvidos.
Com Estadão Conteúdo.