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É só mais uma operação, o problema continuará, diz especialista sobre Rio

José Vicente Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública, diz que a operação reforça deficiências de planejamento, execução e uma insistência em estratégias erráticas

Operação policial, no Rio: pessoas reagem durante atuação da polícia nesta terça-feira, 28 (Antonio Lacerda/EFE)

Operação policial, no Rio: pessoas reagem durante atuação da polícia nesta terça-feira, 28 (Antonio Lacerda/EFE)

André Martins
André Martins

Repórter de Brasil e Economia

Publicado em 28 de outubro de 2025 às 18h33.

Última atualização em 28 de outubro de 2025 às 18h37.

A megaoperação da polícia contra líderes do Comando Vermelho (CV), a mais letal da história do Rio de Janeiro, com ao menos 64 mortes, será "só mais uma" e não resolverá o problema do combate ao crime organizado no estado. Essa é a avaliação de José Vicente Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública e coronel reformado da Polícia Militar.

"É só mais uma operação. O resultado primário é trágico. Não só pela letalidade, mas também por afetar a vida da cidade de forma extensiva", afirma em entrevista à EXAME.

Silva diz que a operação reforça deficiências de planejamento, execução e uma insistência em estratégias erráticas no combate a facções criminosas fortemente armadas, como só visitas letais às comunidades, sem policiamento constante.

O membro do conselho da Escola de Segurança Multidimensional da Universidade de São Paulo (USP) cita um estudo da Universidade Federal Fluminense (UFF) sobre a comunidade do Jacarezinho. Os dados mostram que entre 2007 e 2020 foram 289 operações e 186 mortos. As ações não trouxeram pacificação na região. 

"Se essas operações funcionassem, após 23 ou 78 operações já não precisariam mais voltar lá, mas não é isso que acontece", afirma.

Ele diz que grandes operações como a de hoje suscitam o questionamento do que ocorre no dia seguinte.

"Os 2.500 policiais vão sair de lá e vai voltar tudo ao normal, como acontece sempre. É como abanar mosca em um balcão sujo de estrada. Passa mão, abana, passa um tempo e depois volta. A comparação é ruim, mas é isso que está acontecendo no Rio", diz.

A avaliação de Silva Filho é que o problema somente será resolvido com um planejamento de longo prazo em parceria com o governo federal, com o foco da retomada de controle de territórios, hoje ocupados por três grandes facções do estado.

"Isso significa voltar com algo parecido com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), colocar efetivos para fazer policiamento o tempo todo, e não só visitas letais às comunidades. Precisa assumir a segurança desses locais, fazer controle de acesso desses locais", afirma. "Um bom planejamento é essencial para operações mais eficientes, mas deve ser um projeto de longo prazo."

A operação aconteceu nos complexos do Alemão e da Penha. Como retaliação, criminosos interditam vias em diversos bairros da cidade, utilizando lixeiras e coletivos como barricadas. Esse cenário gerou o fechamento de várias instituições e a suspensão de atividades em empresas de ônibus pelas ameaças de criminosos.

Veja a entrevista completa com José Vicente Silva Filho

Qual a sua avaliação inicial dessa operação? Pode mudar a situação do estado do Rio no combate ao crime organizado ou é 'só mais uma operação'? 

É só mais uma operação. E, de fato, é a mais letal que eu saiba na história do Brasil. Nunca vi nada parecido. O Brasil teve diversas operações ao longo de um ano, no Guarujá, na Baixada de São Paulo, mas numa operação de poucas horas produzir uma letalidade brutal dessas, mais de 60 mortes, nunca vi. Foram quatro policiais, dois da tropa especial do Rio, o BOPE, que morreram. E mais o fato de afetar largamente a vida da cidade. Não só as comunidades em que a operação foi concentrada, mas os grandes eixos de transporte do Rio, como a Avenida Brasil, Linha Amarela, Linha Vermelha, acabaram comprometidos. São eixos que afetam a cidade toda. O resultado primário é trágico. Não só pela letalidade, mas também por afetar a vida da cidade de forma extensiva.

Por que o senhor acredita que esse foi o resultado da operação? 

Isso mostra deficiências de planejamento, execução e uma insistência em estratégias de ocupação de territórios dominados por facções que controlam quase metade do território da cidade e que afetam outras cidades, como São Gonçalo e Niterói. Isso demonstra uma falta de planejamento mais competente no trabalho policial do Rio de Janeiro. Existem três secretarias de segurança atuando de forma descoordenada. O governador deveria coordenar isso, mas a coordenação não existe. O instrumental está caótico para cuidar da segurança do Rio. Você tem um histórico de fragilidade do aparato policial que permitiu o avanço das facções conquistando territórios. Conquistando territórios e ganhando mais poder, com armamento pesado que têm recebido. E a população vive sob a tirania desses pequenos tiranos que vivem nessas áreas.

O que o senhor considera falta de estratégia? 

Quando falo de estratégias erráticas e incompetentes, cito um estudo da Universidade Federal Fluminense que considerou dados entre 2007 e 2020, feito na comunidade do Jacarezinho, com 40 mil habitantes. Foram 289 operações nesses 14 anos. Agora, já devem ter passado das 300. E com 186 mortos. Se funcionassem as operações, após 23 ou 78 operações já não precisariam mais voltar lá, mas não é isso que acontece. O que é necessário é um planejamento estratégico. Quando fazemos uma grande operação como essa, perguntamos: "E amanhã o que vai acontecer?" Os 2.500 policiais vão sair de lá e vai voltar tudo ao normal, como acontece sempre. É como abanar mosca em um balcão sujo de estrada. Passa mão, abana, passa um tempo e depois volta. A comparação é ruim, mas é isso que está acontecendo no Rio.

O que poderia ser feito para que o Rio saísse dessa situação?

Quando o governador está pedindo apoio do governo federal, a União deveria aproveitar essa brecha para entrar de forma eficaz. Durante o governo Michel Temer, foi declarada a intervenção na segurança pública do Rio, com o general Braga Netto à frente, mas não trouxe resultados duradouros. Além disso, teve mais de R$ 1 bilhão, compraram viaturas, equiparam a polícia, gastaram, mas nada mudou. Agora, o governo federal precisa elaborar um plano estratégico para a segurança pública do Rio de Janeiro. Esse plano precisa identificar os problemas, colocar as prioridades, e focar nas comunidades dominadas por facções criminosas, que impõem terror aos moradores.

Quais tipos de problemas? 

Existem problemas internos nas estruturas polícias, como a Polícia Civil, que tem apenas um terço do efetivo nas delegacias, e a PM, que tem muitos policiais fora de serviço ou em funções administrativas, nada a relacionado com segurança. A Polícia Civil tem o segundo pior resultado no levantamento do instituto Sou da Paz de esclarecimento de homicídios, que é o principal indicador. Um sinal é que a polícia está em situação precária da sua capacidade de investigação e inteligência. Outro aspecto é a cooperação entre as forças policiais, que precisa ser melhorada, incluindo a Polícia Militar, Polícia Civil e Polícia Federal, além de envolver o esforço logístico das Forças Armadas. E quem seria o detentor das ações a partir daí ou uma nova intervenção no Rio. Qualquer intervenção precisa ter um planejamento de médio a longo prazo, algo em torno de 5 a 10 anos, e não pode ser contaminado pelo calendário eleitoral.

Como você vê a reação da população?

A população, de fora, vê a operação e muitas vezes não sente a dor das mortes, tanto dos policiais quanto dos suspeitos. A polícia, nesse nível de letalidade, usa força descontrolada. Isso é uma vergonha. A população pouco se importa, já que quem morreu foi “aquele pessoal da favela”. Eles ficam muito mais incomodados com o impacto do trânsito e do caos urbano. O problema é que essas operações se repetem, como o caso do Jacarezinho, com 186 mortes em 14 anos, e nada muda. Quando um policial morre, não há o devido reconhecimento, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, onde policiais mortos são tratados como heróis. No Brasil, isso não acontece. A população, em uma semana, vai esquecer a operação e o problema vai continuar. A grande preocupação é a população que não tem canais de expressão e que estão nas comunidades dominadas pelo crime.

Em relação à escalada da violência, você vê algum risco de as facções reagirem? Como a situação pode escalar?

O problema do Rio é que as três facções criminosas se agridem mutuamente. Todas estão presentes na favela do complexo da Maré, para entender a complexidade. Eles estão fortemente armados e são ousados na forma de atacar a polícia. Em São Paulo, o PCC atacou a polícia em 2006, matou mais de 40 agentes de segurança, mas a resposta da polícia foi tão eficiente, que prenderam mais de 500 e mataram mais de 200. E as bocas de fumo pararam de faturar. Então, o PCC decidiu parar de cutucar a polícia com a vara curta, porque eles não ganham nada com isso. Como os grandes traficantes de outros países, o que eles querem é faturar. Ganhar dinheiro e não brigar com a política. Por isso que hoje, eles estão expandindo para o tráfico internacional de droga.

Como o Rio é diferente? 

No Rio, o foco das facções é o controle do território com armas longas, e a polícia precisa reconquistar território por território, começando pelos mais fáceis. Isso significa voltar com algo parecido como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), colocar efetivos para fazer policiamento o tempo todo, e não só visitas letais às comunidades. Precisa assumir a segurança desses locais, fazer controle de acesso desses locais. A operação precisa ser planejada com mais cuidado, como foi feito em eventos como o policiamento de clássicos de futebol, que têm um policiamento até nas estações de metrô distantes. A operação de hoje não teve esse tipo de planejamento. O problema do Rio é um enorme desafio de competência, planejamento. Um bom planejamento é essencial para operações mais eficientes, mas deve ser um projeto de longo prazo.

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