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Disputa por terra complica obtenção de título fundiário para quilombolas

País tem terras em abundância propensas ao desenvolvimento, mas com poucos títulos formais para provar a propriedade

Reivindicação dos quilombolas por suas terras faz parte de uma ampla luta por títulos de propriedade em todo o Brasil (Valter Campanato/Agência Brasil)

Reivindicação dos quilombolas por suas terras faz parte de uma ampla luta por títulos de propriedade em todo o Brasil (Valter Campanato/Agência Brasil)

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Reuters

Publicado em 22 de junho de 2018 às 09h25.

Última atualização em 22 de junho de 2018 às 09h25.

Com um balde na mão, Valdemir Francisco da Conceição sai de sua casa de palha todas as manhãs e caminha 150 metros para buscar água em um rio que flui entre exuberantes montanhas em Goiás.

Na comunidade Vão de Almas não tem água encanada, mas Conceição não se importa - ele gosta de sua vida simples como agricultor, plantando mandioca, milho e arroz em sua pequena propriedade no remoto vilarejo.

Conceição é um quilombola, como são conhecidos os cerca de 16 milhões de descendentes dos escravos que fugiram das duras condições de trabalho nas fazendas e minas e formaram comunidades conhecidas como quilombos.

A bucólica vila Vão de Almas está ameaçada pelo projeto de uma pequena central hidrelétrica (PCH) que, segundo os empreendedores, gerará eletricidade e empregos em uma vasta área de floresta a cerca de 354 quilômetros ao norte de Brasília.

Conceição teme que a PCH impossibilite o acesso à água do rio e sente a segurança de sua família ameaçada pela barragem.

"A gente lava, a gente pega água para fazer a comida, a gente toma banho, a gente depende do rio", disse o quilombola de 37 anos à Thomson Reuters Foundation.

O projeto da PCH Santa Mônica ameaça a comunidade Vão de Almas há duas décadas, em meio a uma complexa disputa de reivindicações concorrentes por terras no vilarejo quilombola.

A reivindicação dos quilombolas por suas terras faz parte de uma ampla luta por títulos de propriedade em todo o Brasil.

O país tem terras em abundância propensas ao desenvolvimento, mas com poucos títulos formais para provar a propriedade, uma situação que provoca tensão e conflitos em todo o país.

Dificuldade de indenização

Apesar de o Brasil ter abolido a escravidão há 130 anos e a Constituição de 1988 ter garantido os direitos dos quilombolas a suas terras, muitos deles ainda estão lutando por títulos.

O governo reconhece a existência de cerca de 5.000 quilombos, o primeiro passo de um longo processo para obter títulos de propriedade, que demanda pesquisas e investigações sobre a ancestralidade dessas comunidades.

A comunidade Vão de Almas faz parte do Kalunga, um dos maiores quilombos do Brasil, cujo território foi demarcado pelo governo em 2009.

Quase uma década depois, foram emitidos títulos de propriedade para apenas um quinto do seu território de 261.000 hectares, de acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Inca).

Embora a delimitação das fronteiras do quilombo esteja claramente demarcada, há falta de informações --e títulos-- sobre os donos das propriedades dentro do quilombo.

Apenas cerca de 250 comunidades quilombolas possuem títulos legais de suas terras no país, segundo a Fundação Cultural Palmares.

Se uma propriedade dentro de um quilombo é privada, o Incra inicia um processo de expropriação, que envolve o pagamento de indenização aos proprietários que provarem ter os títulos formais da terra.

Na comunidade Vão de Almas, cerca de 700 hectares de terra dentro de uma fazenda foram vendidos para a Rialma, a empresa que quer construir a PCH. A companhia não tem intenção de abrir mão da área.

Um porta-voz da empresa disse que os moradores de Vão de Almas concordaram com o projeto e assinaram um abaixo-assinado dando aval ao projeto. Segundo o porta-voz, a empresa aguarda a obtenção de licença ambiental do governo de Goiás para dar início às obras de construção da PCH.

"Não podemos inibir investimento, construção de estrada, não podemos fazer nenhum tipo de impedimento (até o processo de desapropriação)," disse Antônio Oliveira Santos, coordenador geral de regularização de territórios quilombolas do Incra.

Além das complexidades do processo para conceder títulos, o Incra também está sem orçamento para pagar indenizações.

O orçamento do governo para regularização fundiária dos quilombolas foi reduzido em 93 por cento nos últimos cinco anos, de acordo com a ONG Justiça Global.

Invasões

Na comunidade Engenho II, outro vilarejo remoto no Quilombo Kalunga, a cerca de 3 horas de carro a sudoeste de Vão de Almas, cerca de 250 famílias quilombolas dizem que fazendeiros têm invadido suas terra de forma frequente.

Tanto os agricultores quanto os quilombolas dizem que precisam da terra para viver.

"Nosso território foi reconhecido, mas muitos fazendeiros ainda estão pendentes de indenização", disse o líder quilombola Cirilo dos Santos Rosa. "Eles dizem que querem sair, mas querem receber a indenização."

Sua ex-mulher e os tios dela perderam suas colheitas recentemente, segundo ele, porque um fazendeiro destruiu suas plantações.

Os fazendeiros não puderam ser contactados para comentar.

Apesar dos problemas das invasões, os quilombolas se consideram sortudos porque controlam a famosa cachoeira Santa Bárbara, com 35 metros de altura.

A cachoeira, cercada por um lago com águas azuis, atrai turistas do mundo todo e representa uma importante fonte de renda para a comunidade.

Os turistas pagam uma taxa para visitar a cachoeira, e os quilombolas também têm como fonte de renda serviços de transporte e hospedagem.

"A Santa Bárbara é um verdadeiro santuário... Essa cachoeira a gente fala que é a nossa mãe porque nos abraça, que está nos dando uma oportunidade de melhoria e de vida", disse Dominga Natalia Moreira dos Santos Rosa, a filha do líder da aldeia de quilombola.

A renda da cachoeira Santa Bárbara tem ajudado os quilombolas a fazer melhorias na vila e a pagar para que seus líderes participem de reuniões para lutar por seus direitos à terra.

"Meu sonho é a gente poder ter realmente essas terras em nossos nomes, que é uma coisa que a gente vem lutando há anos. Eu cresci vendo meus pais lutarem pelo direitos à terra, que é um direito que a gente tem", disse Dominga.

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