Mais Médicos: cubanos deixaram o Brasil entre novembro e dezembro de 2018 (Fernando Medina/Reuters)
Letícia Naísa
Publicado em 21 de dezembro de 2018 às 12h59.
São Paulo — Com a aproximação do dia da posse, muitos são os desafios que o presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), deverá enfrentar no primeiro ano de gestão. Um deles é com relação ao sistema de saúde.
Com um investimento de apenas 3% do PIB, dinheiro será um dos principais desafios enfrentados pela nova gestão a partir de 1° de janeiro, segundo Gonzalo Vecina, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e ex-presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Na visão do especialista, o congelamento de gastos do Estado poderá prejudicar ainda mais um sistema que já é falho no país.
Outro problema que o futuro presidente enfrentará será a situação gerada pela saída dos médicos cubanos do programa Mais Médicos.
Em entrevista à EXAME, Vecina avalia o panorama da saúde pública brasileira e analisa quais serão os maiores problemas que o governo Bolsonaro encontrará a partir de 2019.
Qual será o principal problema que o governo vai enfrentar?
A crise está trazendo consequências econômicas para o financiamento de toda área social, em particular da área da saúde. Esse será o problema número um. A emenda constitucional 95 que congelou gastos do Estado certamente vai ter consequências na saúde. Acho difícil, com o nível de comprometimento do orçamento, que não haja algum constrangimento do financiamento da saúde. A emenda limita o gasto do Estado, não da saúde. Hoje há várias fontes, dizem que 90, 92% do gasto do Estado é o que está congelado. O Estado tem uma margem de manobra muito pequena. Acho que o principal problema vai ser com financiamento, sem sombra de dúvidas. Essa crise é basicamente uma crise de arrecadação. Não houve um crescimento importante de despesa, mas uma redução importante da receita com essa paralisia econômica do Brasil. Os estados, municípios e o governo federal perderam capacidade de financiar as despesas públicas e, portanto, sua capacidade de construir um estado de bem estar social. É basicamente disso que estamos falando.
O segundo grande problema está meio dentro disso, é o problema gerado pelo Mais Médicos. Este, em tese, não seria um problema federal, porque está na área da assistência básica, que é um problema municipal, mas é um programa federal. O Mais Médicos dificilmente vai ter qualquer tipo de cobertura que seja adequada. Nós tínhamos muitos médicos. O governo jamais vai conseguir cobrir. Está uma guerra de números, tantos se candidataram, tantos já foram, só que grande parte dos médicos que se candidataram ou que foram contratados saíram de outras posições em que eles estavam sendo importantes. Saíram da estratégia de saúde da família, de pronto-atendimento, e acabaram indo para o Mais Médicos. Então o problema continua. O grande mérito da solução do Mais médicos é que os médicos vinham de fato de fora. Eram médicos a mais. Agora eles foram embora os cubanos, particularmente, e o buraco ficou. Ficou e vai ficar.
Mas tem solução o Mais Médicos?
Isso não será resolvido. Não é que não será fácil. Não será resolvido, porque isso só se resolve com mais médicos, que são dos 300 cursos de medicina abertos. Só que demora seis anos para eles se formarem. A estimativa é que essa situação se normalize só com brasileiros em 2026. Até lá, vamos continuar com falta de médicos. Mesmo chegando 2026, terá que ter uma solução mais criativa, o que não passa, na minha opinião, por criar uma carreira de estado para médicos. Passa por criar condições locais de absorver esses médicos. É uma solução que tem que nascer descentralizadamente ou a gente vai criar mais uma jabuticaba.
O governo pode encontrar problema para gerir o SUS?
Os dois problemas que eu estou mencionando são problemas que afetam diretamente o SUS, o problema do financiamento e o problema do Mais Médicos. É óbvio que nós temos questões na área gerencial, questões de corporação de tecnologia de informação que poderia melhorar a resolutividade do sistema. Mas esses dois problemas são de curto prazo que ele vai enfrentar no início do mandato. Tem os problemas de manutenção dos programas de assistência farmacêutica. Não sei como este governo vai deixar para o próximo governo a compra de medicamentos que hoje são fornecidos exclusivamente pelo Estado e que são críticos, falando especificamente dos tratamentos de AIDS, medicamentos para o paciente não rejeitar órgãos transplantados, medicamentos para doenças metabólicas, diabetes, tem um grupo grande. Esta é uma despesa pesada, que chega a 7 bilhões de reais (este ano).
Tem dois problemas, o primeiro é até onde o governo atual deixou esses medicamentos comprados. O problema número dois é o quanto o governo tem para dar continuidade ao projeto de assistência farmacêutica. Este ano nós sentimos em vários momentos a possibilidade de interrupção desses programas, seja por falta de dinheiro dos estados para comprar esses medicamentos, porque eles são comprados com dinheiro que o Ministério transfere para os estados. Em alguns estados está havendo crise desse financiamento. É um problema federal. Grande parte do que a gente chama de média e alta complexidade é financiado pelo governo federal. Programas de hemodiálise,por exemplo. Enquanto o paciente não fizer o transplante, precisa fazer hemodiálise. Hoje existe muita dificuldade para conseguir colocar um paciente para fazer hemodiálise porque as vagas estão ocupadas e não tem criação de novas. Demora-se em média, na cidade de São Paulo, de cinco a sete meses. Mas tem pouca judicialização em torno isso. Inclusive, isso é outro problema que o governo terá que enfrentar, embora esteja ganhando um caminho um pouco melhor do que foi nos últimos anos.
Todas as questões que eu citei têm a ver com dinheiro, depois têm a ver com gestão. Alguns dos programas que fornecem medicamentos nós não sabemos como o governo federal vai querer tocar, estou falando particularmente das parcerias de desenvolvimento produtivo, que são parcerias do Estado com a indústria para o desenvolvimento de cópias de moléculas de produtos de alto custo. Essas parcerias são importantes para a indústria farmacêutica e para os pacientes que conseguem ter acesso a medicamentos mais baratos.
O medicamento para hepatite C entra nisso?
Aparentemente não foi resolvida essa situação. Não tenho fonte dentro do governo neste momento, mas parece que não se resolveu. Tem uma briga surda entre a empresa que produz o sofosbuvir e o governo na sua ideia de fazer o licenciamento compulsório da molécula para fazer medicamento.
Uma das propostas do Bolsonaro para saúde foi a implantação do prontuário eletrônico. É factível e pode resolver problemas na saúde?
Tecnologia da informação ajuda a resolver qualquer problema. Não resolve o problema, mas ajuda, porque faz parte do conjunto. Então, ter prontuário eletrônico, mas não ter médico, o que adianta? Nada. Mas, se tiver médico e o prontuário eletrônico, melhora a solução com a tecnologia. A gestão de um serviço de saúde melhora com prontuário eletrônico. Mas se eu não tenho gestão, o prontuário eletrônico é um lixo eletrônico. Ele é um componente muito importante, mas qual a chance de ter um prontuário eletrônico nacional? Muito pequena. É um sistema de saúde muito descentralizado.
Das experiências que eu participei nos últimos anos de tentar fazer coisas na área de tecnologia da informação centralizadas em Brasília, foram desastrosas. O cartão do SUS é um exemplo. Não conseguimos fazer um cartão nacional efetivo até agora. Os municípios que fizeram conseguiram melhores resultados. Mas acho que vale mais a pena o governo federal criar um incentivo monetário e financeiro e repassar para os municípios e estados criarem suas soluções do que criar um prontuário nacional em Brasília. Acho que se essa tentativa for levada à frente, a chance de dar certo é pequena.
Outra promessa de campanha do presidente eleito foi de fazer mais com o mesmo dinheiro. É possível fazer mais com o investimento que se tem hoje?
Acho que ele tem que tentar. Mas ele vai quebrar a cara. Minha opinião como especialista é que não é possível fazer mais com o mesmo dinheiro. Existe certa elasticidade que você ganha com processos de gestão, mas tem um limite para este ganho. Certamente esse limite é diferente do que nós precisaríamos ter diante da necessidade. É uma crise, não tem jeito.
Alguns dos cargos são indicadas pelo governo. Pode haver politicagem na saúde? Isso pode atrapalhar a gestão?
Existe espaço para politicagem e pode prejudicar muito a gestão. recentemente, nos governos recentes do PT e do PMDB, alguns dos cargos foram distribuídos politicamente e estamos tendo consequências por isso.
Como é a experiência de gerir a Anvisa?
Os desafios são de conseguir conciliar as atividades que são voltadas para garantir segurança sanitária, não tem jeito de garantir segurança sanitária de produtos que são consumidos pela população sem você gerar algum tipo de constrangimento econômico. Quando faço inspeção em uma fábrica e encontro um problema que precisa ser melhorado, é preciso gastar para garantir a segurança do produto. Isso significa diminuir o lucro e aumentar a segurança. É um problema complicado. As empresas querem gastar menos e fica complicado.
É preciso ter um mercado homogêneo do ponto de vista da oferta. Esse jogo entre a atividade econômica e sanitária é sempre complicado e existe muita intervenção política no mau sentido. O que o agente do poder público tem que ter é sensibilidade para jogar esse jogo sem pôr a saúde pública em risco, mas olhando também para o fato de que estamos falando de empregos.
A economia não é um evento a ser ignorado. Nós temos que olhar para a questão econômica. O agente do poder público, mesmo dirigido pelo interesse sanitário tem que ter a preocupação econômica porque a sociedade precisa funcionar. Essa questão é muito importante. Dosar essas duas coisas, o objetivo principal que é o sanitário, com o secundário, que é o econômico, é um desafio. A atividade de gerenciar uma agência é de alta responsabilidade.