Brasil

De bombom envenenado a bilhetes, as histórias de juízes jurados de morte

Dos mais de cem juízes ameaçados em 2017, 76 viviam sob proteção; Pública entrevistou quatro deles para saber dos impactos na sua rotina e de suas famílias

Justiça: as famílias dos juízes também são afetadas (the_burtons/Getty Images)

Justiça: as famílias dos juízes também são afetadas (the_burtons/Getty Images)

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Clara Cerioni

Publicado em 25 de fevereiro de 2019 às 06h00.

Última atualização em 25 de fevereiro de 2019 às 06h00.

Bilhetes, mensagens de áudio, e-mails, ligações telefônicas interceptadas, conversas de bar e até uma inofensiva caixa de bombons. As ameaças a juízes país afora assumem variadas formas, umas mais inusitadas que outras.

Sobre seus alvos, é possível afirmar que a maioria (88%) trabalha na Justiça Estadual e quase metade (47%) está lotada em varas de competência criminal. Essa era a realidade dos 110 magistrados vítimas de tentativas de intimidação em 2017, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Desse total, 34 não contavam com proteção fornecida pelas autoridades, e os outros 76 receberam segurança em forma de escolta, veículos blindados ou coletes à prova de balas, por exemplo.

Os números são parte do Diagnóstico da Segurança Institucional do Poder Judiciário, lançado em setembro do ano passado. Esse é o segundo estudo do gênero realizado pelo CNJ: o primeiro, de junho de 2016, contabilizou 131 juízes em situação de risco à época – no entanto, o órgão não descreve no relatório os tipos mais comuns de ameaças.

Como será explicado adiante, foi a partir de 2011, quando a juíza Patrícia Acioli foi morta com 21 tiros em frente à sua casa, em Niterói (RJ), por policiais militares ligados às milícias, que a segurança de magistrados passou a ser padronizada nos tribunais e as ameaças, monitoradas pelo CNJ.

A reportagem da Pública ouviu depoimentos de quatro juízes de diferentes regiões do país. De Rio de Janeiro, Roraima, Alagoas e Piauí, Paraná, os magistrados contam como as ameaças impactaram suas vidas a ponto de a casa de um deles ser “transformada em um bunker”, ou como viver com escolta reduziu a vida social e interferiu bruscamente na privacidade, uma realidade comum a todos os entrevistados.

Rio de Janeiro – “Para Dr. Felipe, um fraternal abraço”, dizia o recado na caixa aberta pelo Esquadrão Antibombas

No fim de janeiro, quando a reportagem esteve em Magé, na Baixada Fluminense, o juiz Felipe Carvalho Gonçalves da Silva cumpria seus últimos dias de trabalho na Vara da Infância e Juventude da cidade. Ele havia acabado de ser promovido e estava de mudança para Belford Roxo, na mesma região, onde agora ocupa a Vara Criminal. As audiências daquela quarta-feira estavam prestes a começar quando uma promotora estadual exclamou: “Esse aí é ameaçado desde que entrei no Ministério Público!”.

Na magistratura há 12 anos, Gonçalves iniciou a carreira em Macaé e depois foi transferido para Maricá, ambas cidades no litoral do Rio. Nesta última, também atuava na Vara Criminal quando usou escolta pela primeira vez, em janeiro de 2015, mas de maneira preventiva. Ele determinou a prisão de integrantes de uma quadrilha de tráfico de drogas que planejava matar um delegado e outro juiz do município, e o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, diante da gravidade do caso, decidiu lhe conceder a medida protetiva: um policial militar que o acompanhava à paisana 24 horas por dia, além de um carro blindado para que se deslocasse diariamente de sua casa, em Niterói, até o Fórum. Essas medidas, de acordo com o CNJ, eram utilizadas por 35% e 31% dos juízes ameaçados em 2017, respectivamente.

Isso não impediu que ocorressem ações para intimidá-lo. “Logo depois, comecei a receber ameaças por carta, por e-mail. Os e-mails e as cartas foram disparados para vários órgãos – CNJ, Ministério Público, Corregedoria do TJ-RJ – noticiando que uma outra quadrilha tinha um plano para me matar. Essa quadrilha foi praticar um homicídio em Maricá e matou a pessoa errada. Na fuga, a placa do carro que estavam dirigindo caiu e o veículo foi interceptado na estrada. Os indivíduos foram presos, e então comecei a receber cartas dizendo que essas pessoas iam me matar. Foi logo depois do início da escolta – no mês seguinte, ou dois meses depois”, relembra.

Gonçalves garante que até encarou a situação com naturalidade – “sempre achei que fosse possível isso acontecer um dia” –, mas o sinal de alerta soou mesmo assim. “Tenho muitos familiares em Maricá e fiquei preocupado com eles. Meu padrinho, que vive lá, ficou quase um mês sem dormir. Todo mundo fica com medo, não só de acontecer alguma coisa comigo, mas de ser atingido de alguma forma.” As ameaças influenciaram também seu pai, que tinha um imóvel de veraneio na cidade e “colocou câmeras na casa toda”. “Todo mundo sabia que o juiz da cidade era parente das pessoas que residiam ali. Vira uma bola de neve, a sensação de insegurança foi se propagando.”

Em maio de 2015, o magistrado conseguiu uma transferência para Magé – a mudança o deixou sem escolta –, mas continuou à frente da Vara Criminal de Maricá enquanto um juiz substituto não chegava. Dividir-se entre as duas funções não durou muito tempo. No mesmo mês, uma nova e ousada ameaça aconteceu. “Chegou uma caixa pelos Correios e eu achei suspeito. Não conhecia o remetente e a caixa vinha da Baixada Fluminense. Como essa quadrilha que havia praticado a execução em Maricá era da Baixada Fluminense também, desconfiei. Comuniquei à divisão de segurança do Tribunal [de Justiça do Rio], que mandou policiais. Os policiais também acharam por bem não abrir a caixa, chamaram o Esquadrão Antibombas e, dentro, havia bombons e um cartão com a mensagem ‘para Dr. Felipe, um fraternal abraço'”, descreve. Os bombons foram enviados para perícia e se constatou que continham substância compatível a veneno de rato. Segundo Gonçalves, a suspeita da polícia, que investiga o caso, é que uma pessoa prejudicada pelo grupo criminoso tenha disparado os e-mails e enviado os bombons justamente para incriminá-lo.

Diante do acontecido, o Tribunal de Justiça entendeu que o juiz estava em situação de risco, por isso, além de retomada da escolta, determinou que ele passasse a atuar somente em Magé. A medida protetiva cessou novamente alguns meses depois, em agosto daquele ano, mas por pouco tempo: na cidade, Gonçalves julgou casos envolvendo crimes de políticos locais e, logo no início de 2016, mandou prender dois ex-prefeitos por desvio de dinheiro público. Foi quando, pela terceira vez, o tribunal decidiu lhe designar proteção, e o magistrado voltou a utilizar o veículo blindado da instituição e a ser acompanhado por um policial militar todos os dias. Posteriormente, a medida foi reforçada, e até hoje ele é seguido diariamente por dois agentes, que se revezam em turnos com uma segunda dupla. Em seu caso, os seguranças são policiais militares lotados no próprio Tribunal de Justiça fluminense, que tiveram que passar por um processo de seleção para prestar esse tipo de serviço a autoridades.

Como ele se sente depois de quase dois anos e meio tendo seus passos meticulosamente observados? “A gente acostuma a andar escoltado, é natural, o ser humano acaba se adaptando. Mas sua privacidade e sua rotina são afetadas por isso. Vou sair para trabalhar, tenho que marcar para a escolta ir me pegar. Se for para algum lugar mais complicado, tenho que marcar para a escolta ir me pegar”, responde. “Não tenho a rotina de sair para comprar um pão. Assim como não tenho uma rotina de sair para almoçar, almoço no gabinete todos os dias, muito eventualmente saio para almoçar. Não quero ter uma rotina, não quero que as pessoas saibam que almoço em determinado lugar.”

No dia em que recebeu a reportagem, o juiz abriu uma exceção e almoçou em um restaurante localizado a dois minutos de caminhada do Fórum. Mesmo assim, foi seguido pelos seguranças, que o aguardaram na porta do estabelecimento. De fato, para onde ele vai, a escolta vai atrás, sempre à paisana e com postura discreta. Bacharel e mestre em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Gonçalves é doutorando em processo penal na mesma instituição. Frequentemente viaja à capital para assistir às aulas, mas nunca sozinho. “Vou para a universidade e a escolta fica lá fora me esperando”, diz.

A Pública também acompanhou a ida do magistrado ao Rio para participar de sua cerimônia de promoção na sede do Tribunal de Justiça, no centro da cidade. De carro blindado, os policiais o levaram de Magé ao local e o esperaram do lado externo, até que o evento acabasse. Questionada se gostaria de dar seu depoimento sobre o trabalho que desempenha, a dupla preferiu não se manifestar.

“Minha esposa não fala para ninguém que é casada com juiz”

Não é só sobre a vida do magistrado que se fazem sentir os efeitos da rígida rotina de cuidados com a segurança: a família também sofre com a situação. A esposa e os filhos de Gonçalves vivem com ele em Niterói, em um condomínio fechado, e utilizam um veículo particular também blindado. “Meus familiares não têm escolta, então eles evitam sair de casa. Nunca vieram a Magé. Minha esposa não fala para ninguém que é casada com juiz, meu filho não sabe – ele tem 6 anos. Acha que os policiais são meus amigos”, revela. “Quando ele tiver um pouquinho mais de maturidade, a gente vai explicar qual o trabalho do pai.”

Para além das medidas formais de proteção, Gonçalves enumera outras que ele mesmo incorporou ao dia a dia para se sentir mais resguardado. “Qual a primeira coisa que marca a sua identidade? O documento, a carteira funcional. Eu não ando com a minha carteira funcional tem anos, apesar de ter orgulho do que faço. Tenho que esconder que sou juiz”, declara. “Todo caminho que vou percorrer eu estudo; faço questão de colocar meu filho para estudar em uma escola por onde eu não tenha que passar por nenhum local de risco. Enfim, todos os passos são pensados. Com o tempo fica automático, mas no início você fica meio paranoico.”

Com a proximidade do carnaval, ele confidencia que adorava ir a blocos de rua, mas deixou de fazê-lo depois que vieram as ameaças. Para encontrar os amigos, só se for no condomínio onde vive. E novas relações passam por um crivo rigoroso. “Agora está todo mundo envolvido com alguma coisa, não se sabe mais quem é quem, então você não se permite uma aproximação das pessoas. Sou muito seletivo nas amizades. Até as pessoas você tem que estudar. Mas foi o que escolhi para mim, fiz concurso para isso, não posso reclamar.” Questionado se o preço não é muito alto, não hesita. “Gosto do que faço, acho que faço bem, e acho que é uma função necessária. Além disso, o Estado está me provendo segurança. Se não estivesse, aí repensaria.”

Roraima – “Meu filho tem 3 anos e não sabe o que é brincar numa praça”

Em 2014, em investigações do Ministério Público e da Polícia Federal, foram interceptadas ligações telefônicas de integrantes do PCC com ameaças à juíza Graciete Sotto Mayor Ribeiro, à época na Vara de Execução Penal, em Boa Vista, Roraima, o segundo estado com mais juízes ameaçados, segundo o relatório do CNJ.

“Não vá com essa mulher não, que eu estou a fim de matar ela”, disse por telefone o integrante do PCC à sua companheira, que pretendia procurar a juíza para pedir que não impusesse ao marido o regime disciplinar diferenciado (RDD), mais restrito, fato que motivou a tentativa de retaliação.

Ela se lembra bem de como se sentiu quando foi comunicada sobre o acontecido: “Cai um pouquinho o seu chão. Não envolve só a sua vida, você pensa na sua família, nos seus amigos mais chegados, que estão no seu entorno, porque, numa situação dessa, a gente fica preocupado não só da gente ser atingido, mas de isso atingir também a terceiros”.

A juíza, que na época já era acompanhada por um policial, teve a escolta reforçada por mais um agente e recebeu um carro blindado para se locomover. “Muda tudo: você não pode mais sair de casa, não pode visitar os amigos. É de casa para o trabalho. Você perde a sua privacidade porque está acompanhada por alguém o tempo todo. Eles são discretos, ficam distantes para você poder conversar com as pessoas, mas você não pode ficar sozinho, ir ao supermercado, fazer nada”, descreve. “Num primeiro momento, demora um pouco para cair a ficha. Acho que senti mais depois dos dois primeiros meses, que é quando você verifica que sua vida mudou totalmente para uma rotina de casa-trabalho, trabalho-casa, e você se dá conta de que perdeu alguns prazeres, como ir para um restaurante, ir para um barzinho.”

Medidas de segurança pessoais, além das formais, precisaram ser tomadas. “Moro numa casa, tenho vários cachorros, cerca elétrica, pago uma empresa para fazer o monitoramento eletrônico, monitoramento das motos o tempo todo. Já tinha esse investimento anterior, mas reforcei ainda mais depois das ameaças – aumentei o número de câmeras, por exemplo”, enumera. Isso tudo teve consequências não apenas práticas, mas também psicológicas. “Lembro de ocasiões em que eu chorava desesperada não por causa da ameaça, mas porque eu queria respirar, queria minha vida de volta.”

Enquanto era juíza de execução penal, seu nome continuou aparecendo em bilhetes encontrados em presídios como parte de listas de pessoas juradas de morte. Por isso, apesar de ter conseguido uma transferência – desde 2016 é titular da Vara de Crimes contra Vulneráveis –, o acompanhamento continua até hoje. Em 2015, engravidou e deu à luz um menino. Embora tenha ocorrido em meio ao estresse gerado pelas restrições de liberdade, ela conta que a gestação foi justamente o que lhe “deu o suporte que estava precisando naquele momento para seguir”. “Fiquei muito tranquila, apesar de ser uma gravidez de risco devido à minha idade – engravidei quando já ia fazer 45 anos.”

A criança, porém, não escapa aos procedimentos de segurança. “Meu filho tem 3 anos e não sabe o que é brincar numa praça, embora aqui em Boa Vista tenhamos praças maravilhosas e um espaço urbano bonito. Mas, por conta de segurança, a gente não pode ir. Mesmo quando me disserem ‘não há mais nenhuma ameaça contra a sua pessoa’, não vou levá-lo.”

Mesmo com todos os sacrifícios e mudanças, Graciete afirma que nunca cogitou arrefecer sua atuação enquanto magistrada. “A gente não pode mostrar para eles, em um primeiro momento, que estamos sabendo das ameaças, e, em um segundo momento, que vamos mudar a atitude profissional por conta das ameaças. As ameaças não vão nos pressionar para que não façamos nosso trabalho.” Mas não se esquece do que precisou abrir mão para seguir na profissão. “Hoje vou a poucos eventos – apenas os da magistratura – e sempre verifico o local primeiro: se for fechado, vou, se for aberto, não. Tudo isso é retirado. São pequenas coisas. Por exemplo, a ida ao cinema é um escarcéu, porque cinema tem um horário, então a pessoa pode te ver entrando e sabe seu horário de saída. São pequenas coisas que no dia a dia a gente não pensa, mas, quando vamos para a restrição, percebemos que éramos felizes e não sabíamos.”

Um prazer específico do qual sente falta? “Ir à barraquinha tomar um tacacá. Isso tudo você retira, não tem mais como fazer.”

Um mesmo juiz ameaçado em Alagoas e no Paraná. “Esse juiz pensa o quê, vou colocar dinamite e vou explodir a casa dele”
Foi por meio de uma conversa de bar que o juiz Ferdinando Scremin Neto ficou sabendo de um plano para matá-lo em 2013. Ele atuava na Vara Criminal de Palmeira dos Índios, cidade alagoana onde viveu o escritor Graciliano Ramos. Segundo o CNJ, o estado de Alagoas está no topo quando o assunto são juízes ameaçados: lá, a cada mil, 47 estavam nessa condição em 2017.

Alguém ouviu um homem dizendo que dez indivíduos já estavam na cidade prontos para cometer o crime e avisou a imprensa local, que repassou a notícia ao juiz. O assassinato era tramado pelo familiar de um traficante preso por determinação de Scremin Neto.

A gravidade da situação fez com que ele solicitasse a proteção de uma escolta, que o acompanhou por um ano e meio até que deixasse Alagoas para voltar ao Paraná. A decisão, diz, foi motivada pela vontade de retornar ao seu estado natal, mas também teve um incômodo com o contexto de risco em que vivia.

Seguido por dois policiais militares 24 horas por dia, ele passava a semana em um apartamento em Palmeira dos Índios, mas sua esposa e a filha recém-nascida viviam na região metropolitana de Maceió. “Houve um evento em que um carro ligado a um possível suspeito estava rondando a casa da minha família”, relembra. “Então, transformei minha casa num bunker: coloquei cerca concertina, aquela cerca militar, nos muros; comprei dois cachorros rottweiler; coloquei câmeras à distância; avisei o comando da Polícia Militar na área para ficar de prontidão; e acompanhava minha família à distância pelas câmeras e alarmes através do celular. Tudo o que você pensar de segurança, eu tinha.”

Como os outros juízes ouvidos pela Pública, Scremin Neto conta que uma das piores consequências das ameaças era ver sua família sentindo na pele os efeitos da insegurança. “Minha esposa sempre reclamava de muita solidão. Algumas vezes me ligava dizendo que tinha alguém tocando a campainha e eu estava longe, aí ligava para a polícia ir lá. É um estresse que a família toda sofre junto ao magistrado.” De lá para cá, a vida social do casal também se transformou. “A gente gostava de caminhar com os cachorros na rua, isso era bem comum. E nós cortamos. Ir em shows ou eventos na comarca, também só se tiver acompanhamento, sozinhos não vamos.”

De volta ao Paraná, depois de ter prestado um novo concurso para a magistratura, sofreu novas ameaças, dessa vez na pequena cidade Ubiratã, no noroeste do estado, entre 2015 e 2016. Lá, ele também era juiz da Vara Criminal. “Eram basicamente presos que mandavam bilhetes e recados pelos policiais que faziam a escolta, eram mais intimidações. Começaram a perguntar se o juiz andava armado. Teve uma ocasião em que o preso disse que ia colocar uma bomba na casa do juiz – ‘esse juiz pensa o quê, vou colocar dinamite e vou explodir a casa dele’. Isso tudo vindo de pessoas que dominavam o tráfico de drogas na cidade”, relata.

Pela segunda vez, Scremin Neto se viu andando escoltado e, agora, utilizando ainda um veículo blindado cedido pelo Tribunal de Justiça do Paraná. A medida protetiva durou aproximadamente um ano. Hoje, o magistrado atua na Vara Criminal, da Família, Infância e Juventude de São Miguel do Iguaçu, município próximo à fronteira do Brasil com o Paraguai e a Argentina. “A gente acaba mudando totalmente a nossa rotina. Evita lugares públicos e aglomerações, evita a vida social na comarca – a vida social fica muito restrita. E, no fundo, a gente acaba aprendendo a conviver com as ameaças, porque, se você ficar muito encanado também, enlouquece. Não fica normal, mas você incorpora essa nova realidade na sua vida.”

Piauí – No combate à grilagem de terras, escolta 24 horas. “Era trabalho-casa, casa-trabalho”
O juiz Heliomar Rios Ferreira também viu sua rotina ser reduzida basicamente ao trabalho após ter sofrido ameaças enquanto estava à frente da Vara Agrária de Bom Jesus, no sul do Piauí. As primeiras tentativas de intimidação ocorreram em 2012, por meio de áudios e bilhetes anônimos com promessas de morte ao juiz, que por mais de seis anos atuou no combate à grilagem de terras na região pertencente ao Matopiba, na divisa entre seu estado, Maranhão, Tocantins e Bahia. Matopiba, segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), é a última fronteira agrícola do país e compreende uma área tomada pelo cerrado (leia mais aqui).

“Nessa época, minha família morava comigo em Bom Jesus, éramos eu, minha filha e minha esposa. Tive que mandá-los para Teresina, financiar casa de última hora. Fiquei em Bom Jesus, andando escoltado 24 horas, e minha família num condomínio fechado lá em Teresina também com escolta, que rondava o condomínio”, narra Ferreira. “Andavam comigo, num primeiro momento, dois policiais militares, e depois apenas um. Isso 24 horas por dia: todo dia dormia comigo, ia para o Fórum comigo, almoçava, jantava, merendava. Era muito ruim, privacidade zero.”

A escolta, diz o magistrado, não deixava espaço para lazeres ou outras atividades que não a profissional. “Minha vida lá [em Bom Jesus] era do Fórum para o apartamento, do apartamento para o Fórum. Praticamente não saía. Tendo em vista o modelo de segurança, a gente não podia se expor muito. Hobby? Praticamente nenhum. Não tinha como fazer isso, principalmente numa cidade do interior. A cidade é pequena, todo mundo se conhece, conhece seu carro, sabe para onde você vai. Era trabalho-casa, casa-trabalho.”

Embora os autores das ameaças sejam desconhecidos, Ribeiro as atribui ao seu trabalho pela regularização fundiária da região de Bom Jesus, que pressupôs o bloqueio e cancelamento de milhões de hectares em matrículas de imóveis. “Recebi uns quatro bilhetes dizendo para eu não subir ao cerrado, senão iriam me matar, que eu não fosse em determinado lugar porque tinha um pessoal me esperando para me matar. Eram as inspeções que eu fazia nas áreas para ver quem é que estava produzindo, quem é que não estava, quem eram os reais ocupantes. O pessoal não gostava disso porque eu ia ver realmente a realidade, não era só aquilo que chegava para mim no papel no gabinete”, relata.

O juiz viveu escoltado por aproximadamente dois anos e meio e utilizou veículo blindado do Tribunal de Justiça do Piauí até 2018. Após as primeiras tentativas de intimidação, conta que recebeu da presidência do tribunal um convite para assumir uma vara em Teresina e ficar perto da família, mas negou. “Eu disse [à presidente do tribunal]: se a senhora fizer isso, estará dizendo que o Poder Judiciário perdeu. Esse vai ser o recado. E quem vai perder é toda a população, a democracia. Me deixe lá e me dê a segurança devida, as condições para trabalhar, que eu topo. Aí permaneci lá.”

Em novembro do ano passado, Ribeiro foi promovido e assumiu a 1ª Vara da Comarca de Piripiri, no centro-norte piauiense. “Agora moro com minha família no litoral do Piauí. Estão estudando na cidade, e eu pretendo ficar aqui até a minha aposentadoria. Daqui não sair mais.”

Da execução de Patrícia Acioli aos mecanismos de proteção

“O fatídico assassinato da juíza Patrícia Acioli mostrou que a política institucional de segurança de juízes precisava – e ainda precisa – ser constantemente aperfeiçoada”, destacou à Pública o conselheiro Márcio Schiefler Fontes, coordenador do Comitê Gestor do Sistema Nacional de Segurança do Poder Judiciário, vinculado ao CNJ.

Por isso, desde então, aumentou a preocupação das autoridades em aprimorar as medidas de proteção prestadas a magistrados que sofrem alguma forma de constrangimento pela realização de seu trabalho.

Atualmente, são do CNJ as principais medidas para garantir a segurança dos magistrados brasileiros. A Resolução nº 104, de 2010, foi a primeira das medidas, antes da morte de Patrícia Acioli, “no contexto em que a realidade da criminalidade, em especial a organizada, passou a refletir no aumento de registros de ameaças e mesmo atentados a juízes”, explica o conselheiro Márcio Schiefler Fontes, do CNJ.

A resolução estabeleceu que os Tribunais Regionais Federais e de Justiça deveriam, em um ano, tomar providências para reforçar a segurança das varas criminais – como a instalação de câmeras e detectores de metais nos fóruns –; instituir comissões de segurança para avaliar os casos e prestar assistência a juízes em situação de risco e criar o Fundo Estadual de Segurança dos Magistrados, regido por leis em cada estado.

Em julho 2012, uma novidade vinda do Congresso: foi sancionada a “Lei do Juiz Sem Rosto” (nº 12.694), resultado de um projeto de lei sugerido à Câmara dos Deputados pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe). A lei estabelece que, em processos envolvendo organizações criminosas, o magistrado poderá pedir a formação de um colegiado para tomar decisões delicadas, como decretação de prisão, transferência de presos para instituições de segurança máxima, entre outras. Ficou determinada também a adoção de medidas para reforçar a segurança dos prédios da Justiça, além de normatizado o uso de armas por servidores dos tribunais.

Já o CNJ editou, em 2013, a Resolução nº 176, que criou o Sistema Nacional de Segurança do Poder Judiciário (SINASPJ) e, três anos depois, em 2016, publicou a Resolução nº 239, que instituiu a Política Nacional de Segurança do Poder Judiciário, na qual há a preocupação de resguardar não apenas os magistrados em situação de risco, mas também servidores e cidadãos que utilizam os órgãos de justiça. Ela trata ainda da segurança da informação e de instalações do Poder Judiciário como um todo.

A política previa também a criação do Departamento de Segurança Institucional do Poder Judiciário (DISPJ), formalmente instalado em 2017, que desde então busca reunir e organizar as notificações sobre juízes ameaçados que chegam ao CNJ de maneiras diversas, por meio não só dos tribunais, mas das associações de magistrados, CNJ, organizações não governamentais, entre outras. O DISPJ lançou, em 2017, um guia de segurança pessoal para magistrados.

Sobre as comissões internas de segurança, cada Tribunal de Justiça tem a prerrogativa de criar as suas – segundo o CNJ, até 2017, 82% dos tribunais as haviam implantado. A Pública conversou com o juiz Ygor Figueirêdo, membro da Comissão de Segurança do Tribunal de Justiça de Alagoas, o estado campeão em número de magistrados ameaçados – atualmente, oito deles são protegidos. A comissão alagoana, instituída em 2016, é composta pelo presidente e vice-presidente do tribunal, três juízes e o chefe da assessoria militar, e não se reúne com periodicidade constante – depende da demanda, indica Figueirêdo. Sempre que um juiz afirma estar em situação de risco e solicita medida protetiva, o grupo delibera de maneira colegiada, o quê, de acordo com o CNJ, 71,6% das comissões de segurança realizavam em 2017. Mas não só: “Aqui em Alagoas a gente também usa a comissão para aspectos de segurança de uma forma geral, das unidades jurisdicionais e do próprio jurisdicionado que as frequenta”, explica.

Quando chega um caso para avaliação, a comissão precisa agir rapidamente. “Se a ameaça a um juiz chega a se concretizar, o Estado fica muito fragilizado. A gente não pode deixar que isso aconteça, não por corporativismo, mas pela representação que aquela figura tem no sistema de combate à criminalidade. Então, quando há o pedido, a não ser que seja uma coisa realmente esdrúxula, num primeiro momento a gente defere”, expõe o juiz. Depois da análise do tribunal, o requerimento segue para o setor de inteligência da Polícia Militar, que averigua as ameaças. É o Conselho de Segurança Pública do estado que define os termos da medida protetiva: quantos agentes farão a escolta, se será integral ou apenas em determinado período do dia. Em caso de emergência, qualquer um dos membros da comissão pode decidir pela medida e, em um segundo momento, ela é examinada conjuntamente.

Figueirêdo afirma ainda que normalmente um prazo de três a quatro meses é estabelecido quando a proteção é concedida. “Quando passa o prazo, a gente intima o magistrado para que ele diga se persiste a situação de ameaça ou não. Se persistir e for comprovada, permanece a escolta, senão a gente tira.”

Para o juiz, o maior trunfo da comissão é prestar o serviço com agilidade. “É muito mais fácil para o presidente do tribunal entrar em contato com o secretário de Segurança do que um juiz do interior do estado. O juiz às vezes não tem o contato dele, ou tem uma dificuldade de acesso maior. É isso que a gente consegue fazer com maior celeridade”, analisa. “O juiz representa uma peça-chave no sistema de segurança criminal. O ataque ao magistrado não é o ataque àquela pessoa física, e sim ao sistema de segurança pública. É o que ele representa para o sistema de segurança que é o objeto da proteção. As organizações criminosas se fortalecem muito quando o ataque é a uma pessoa de valor simbólico.”

A juíza Laura Benda, presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD), avalia como correto o caminho que está sendo construído para aperfeiçoar a segurança dos magistrados, mas é necessário “um incremento não só de orçamento, como de planejamento dessas ações”. Um ponto a ser reforçado é a inclusão da família do profissional ameaçado nas medidas de proteção. “Possivelmente, há razões práticas, de orçamento e estrutura, para que isso não aconteça. Mas o CNJ e os tribunais precisam estudar a questão da proteção também sob esse aspecto, senão será uma proteção sempre insuficiente”, pontua.

Laura reforça também a importância da produção de dados sobre a questão, algo que começou a ser feito muito recentemente pelo CNJ. “É muito importante para que todos conheçamos a radiografia do cenário envolvendo a proteção aos juízes e a segurança institucional, mas também precisamos de informações mais constantes para que o próprio CNJ possa acompanhar com rapidez os casos individuais daqueles que estão sob ameaça.”

*Este conteúdo foi publicado originalmente na Agência Pública.

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