Próximo governante terá a tarefa de conciliar os interesses de indígenas e de produtores rurais para pôr fim à disputa por terras e reduzir o número de conflitos no campo (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Da Redação
Publicado em 12 de setembro de 2014 às 12h48.
Brasília - Conciliar os interesses de indígenas e de produtores rurais para pôr fim à disputa por terras será um dos desafios a serem enfrentados pelo próximo governante. Ele terá de encontrar meios para fazer o que a Constituição determinou há 26 anos – demarcar e homologar as terras tradicionais reivindicadas pela população indígena. Muitas delas, hoje, são ocupadas por produtores rurais, setor que responde por 23% do Produto Interno Bruto (PIB) e por 44% do total das exportações nacionais.
“Esse será, provavelmente, o maior desafio para o próximo governo, pois implica uma tomada de posição diante de duas diferentes visões de mundo, duas concepções de desenvolvimento”, sustenta a antropóloga e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Oiara Bonilla. Em entrevista à Agência Brasil, Oiara lembra que a disputa entre os que defendem os interesses de setores como a agropecuária e a indústria e aqueles que defendem outros modelos de organização e a produção sustentável suscita outros temas urgentes, como as mudanças climáticas e novas fontes de energia.
“A resposta a tudo isso exige uma tomada de posição clara por parte dos governos. Por isso, sendo muito realista, acho que a tendência é que, independentemente de quem vença as eleições, a questão indígena continue sendo deixada de lado, à mercê de interesses momentâneos”, diz a antropóloga. “O problema é que se não há vontade política para tentar resolver logo essa questão, ela vai se tornando cada vez mais complicada.”
A Constituição Federal de 1988 reconhece o direito dos povos indígenas às terras que ocupavam no passado. Por terras tradicionais, os constituintes entendiam os territórios habitados por comunidades indígenas em caráter permanente, bem como as por elas utilizadas para suas atividades produtivas ou que sejam imprescindíveis à preservação dos recursos naturais necessários ao bem-estar comunitário e à reprodução física e cultural desses povos, segundo seus próprios costumes e tradições. Embora destinadas à posse permanente e usufruto indígena, essas terras pertencem à União, que deveria concluir a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação do texto constitucional - ou seja, até 5 de outubro de 1993.
“O grande desafio do futuro governo é implementar o que estabelece a Constituição de 1988, no que diz respeito ao direito dos povos indígenas, ao reconhecimento e à demarcação de seus territórios”, aponta o secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cléber Buzatto.
Para Buzatto, a demora e eventual paralisação dos procedimentos demarcatórios não só potencializa os conflitos entre índios e produtores rurais, como tem outros efeitos para as comunidades indígenas e para o setor agrícola. No caso dos índios, para quem a terra é um bem coletivo, com significado especial, a falta de um território onde possam preservar e desenvolver sua cultura vem acompanhada da falta de assistência adequada, elevadas taxas de mortalidade infantil e de suicídios, ameaças vindas de grandes empreendimentos e mortes. Já para os produtores rurais, a consequência do conflito é a insegurança jurídica.
“Ao demarcar as terras indígenas, o futuro governo deve reconhecer os direitos dos ocupantes não indígenas que vivem hoje nessas terras, indenizando-os pelas benfeitorias construídas de boa-fé e reassentando aqueles que fizerem jus – o que pode ser feito com a desapropriação de latifúndios que não incidam sobre áreas indígenas”, acrescenta Buzatto.
Segundo o conselho, só em 2013, pelo menos 53 índios foram assassinados em consequência de conflitos provocados pela disputa por terras.
“Acredito que se o governo demarcar as terras indígenas, poderá minimizar muito o atual conflito”, sustenta o líder terena e representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Lindomar Terena. “Estamos em uma situação em que, se ficar o bicho pega, se correr o bicho come. Se quiser olhar por nós, cumprir a Constituição e fazer um bom trabalho, quem assumir a presidência vai precisar de um Congresso também renovado. Permanecendo a maioria dos parlamentares que estão lá hoje, nem um presidente que queira conseguirá fazer o que deve.”
No último Censo populacional, de 2010, 896,9 mil brasileiros se identificaram como indígenas Desses, 63,8% vivem em áreas rurais e 36,2% em área urbana. Os resultados, no entanto, podem estar subdimensionados, já que muitas pessoas, por diversas razões, não se identificam como indígenas e os registros oficiais não são confiáveis. Basta verificar que, segundo o próprio Censo, 6% da população indígena não tinha, à época, nenhum tipo de registro de nascimento e apenas 68% tinha registro em cartório.
No Censo também foram identificadas 305 diferentes etnias e 505 terras indígenas que, juntas, ocupavam uma área de quase 106,7 milhões de hectares - 12,5% do território brasileiro. Um hectare corresponde aproximadamente às medidas de um campo de futebol oficial. À época do Censo, a reserva indígena com a maior população era a Yanomami, no Amazonas e em Roraima, com 25,7 mil indígenas.
Em um documento intitulado O Que Esperamos do Próximo Presidente e entregue aos 11 candidatos, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) cobra medidas que preservem o direito à propriedade e forneçam segurança jurídica aos produtores rurais. “Apesar de seu extraordinário desempenho e importância para a economia, o setor é a principal vítima desse cenário de insegurança jurídica, em razão de questões que são predominantemente políticas ou ideológicas”, sustenta a CNA antes de cobrar maior transparência e a consulta a outros órgãos além da Fundação Nacional do Índio (Funai) durante os processos demarcatórios que, hoje, estão a cargo do Poder Executivo.
Na avaliação do setor ruralista, as questões “predominantemente políticas e ideológicas” embasam as “invasões indiscriminadas” de terras produtivas. Segundo a Federação de Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), há, hoje, em todo o estado, ao menos 80 propriedades rurais ocupadas. Já a Federação da Agricultura e Pecuária da Bahia (Faeb) estima que, só no sul da Bahia, haja pelo menos 100 fazendas sob ocupação indígena.
A entidade também cobra a adoção de medidas que coíbam as invasões de terras por índios e garantam o cumprimento das sentenças judiciais de reintegração de posse das terras ocupadas. A CNA pede ainda a extensão, a outras reservas indígenas, das 19 condicionantes impostas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para aprovar, em 2009, a demarcação em área contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima – medida já defendida pela Advocacia-Geral da União (AGU) na Portaria nº 303 que acabou sendo suspensa após polêmicas. Por fim, a CNA quer que o governo federal crie órgãos colegiados aos quais seriam delegadas parte das atribuições hoje exclusivas da Funai.