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Como o Brasil se tornou referência no combate à escravidão

Em entrevista à EXAME.com, Kevin Bales, autor de estudo que mapeou o trabalho escravo no mundo, explica por que a OIT considera o Brasil uma referência no combate à escravidão

Imigrantes bolivianos trabalham em ateliê de roupas de Nova Odessa, em São Paulo (Nelson Almeida/AFP)

Imigrantes bolivianos trabalham em ateliê de roupas de Nova Odessa, em São Paulo (Nelson Almeida/AFP)

DR

Da Redação

Publicado em 30 de novembro de 2014 às 06h00.

São Paulo - Na última sexta-feira, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) resgatou 37 bolivianos que trabalhavam em condições sub-humanas em uma oficina da linha de produção de roupas das Lojas Renner em São Paulo. 

A cada nova notícia de trabalhadores - quase sempre imigrantes sul-americanos - encontrados em condições de trabalho análogas a escravidão, dois tipos de pensamento podem ser levantados. O primeiro é de que o Brasil ainda tem um longo caminho no combate a este tipo de trabalho. O segundo, por outro lado, é de que a fiscalização está cada vez mais dura e presente. 

Segundo a Walk Free Foundation - organização de Direitos Humanos que busca erradicar a escravidão moderna no mundo -, o Brasil tem mais de 155 mil pessoas trabalhando em condições análogas à escravidão.

Embora o número ainda seja alto, no início de novembro, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) reconheceu o país como referência mundial na luta contra o trabalho escravo.

Para o economista Kevin Bales, cofundador da organização Free the Slaves e um dos autores de um estudo da Walk Free Foundation sobre a escravidão no mundo, a fiscalização de empresas avançou no Brasil nos últimos anos. Mas, segundo ele, ainda há um longo caminho para percorrer até que a escravidão seja, de fato, erradicada do território nacional. 

Considerado um dos principais nomes da luta contra o trabalho escravo, Bales argumenta em seu livro "Disposable People: New Slavery in the Global Economy" que a escravidão contemporânea tende a ser mais vantajosa do que o sistema que vigorou até o século 19. A obra rendeu a ele uma indicação ao prêmio Pulitzer.  

Veja trechos da entrevista que Bales concedeu a EXAME.com por e-mail. 

EXAME.com - De acordo com o último relatório da Walk Free Foundation, o Brasil ainda tem 155.300 pessoas trabalhando em regime de escravidão moderna. Quem são as pessoas que mais sofrem com isso?

Kevin Bales – Há uma forte ligação entre a estabilidade ou instabilidade de um país e a vulnerabilidade da população à escravidão moderna.

Políticas anti-escravidão têm pouco efeito quando o  Estado de Direito de um país é quebrado por uma guerra civil, conflito étnico ou religioso. A falta de direitos humanos e altos níveis de discriminação também tornam a população mais vulnerável à situação de escravidão.

No Brasil, a população rural é a mais vulnerável. As poucas oportunidades e as dificuldades financeiras no campo forçam os trabalhadores a migrar para as cidades. Lá, como migrantes não qualificados, acabam aceitando emprego em indústrias de alto risco em regime informal – o que os torna ainda mais vulneráveis a situações de trabalho forçado.

EXAME.com - Quais são os setores que usam mais este tipo de trabalho no Brasil?

Kevin Bales - De acordo com as informações que temos sobre o Brasil, o setor com o maior número de vítimas é a indústria da construção civil. O trabalho forçado também é predominante na agricultura para culturas como soja, café, laranja e cacau.

EXAME.com – No relatório da Walk Free Foundation do ano passado, o Brasil apareceu com mais de 200 mil pessoas em situação de escravidão moderna. Este ano, o país registrou 50 mil casos a menos. Como isso é possível?

Kevin Bales - Mensurar a escravidão moderna é uma tarefa muito difícil devudi a natureza escondida deste crime. Neste ano, a Fundação contratou o grupo de pesquisa internacional Gallup Inc para realizar pesquisas de representatividade nacional usando amostras aleatórias em sete países e o Brasil foi um deles.

A pesquisa nos ajudou a chegar a um número mais preciso de pessoas em situação de escravidão no país. No entanto, isso não significa que houve, de fato, uma redução da escravidão entre o ano passado e este. O que significa é que estamos cada vez melhores em medir o tamanho do problema.

EXAME.com – O Brasil é tido pela Organização Internacional do Trabalho como um exemplo no combate à escravidão moderna. O que o país tem feito para resolver este grande problema?

Kevin Bales - O Brasil tem, de fato, uma atitude muito avançada no combate à escravidão, principalmente no que se refere à fiscalização de empresas e de suas cadeias de fornecimento. A Lista Suja, em combinação com as fortes leis anticorrupção no país realmente contribuem para a resolução destas violações dos direitos humanos nas práticas de negócios. Além disso – embora ainda possa ser fortalecido – o Brasil tem um sistema de apoio às vítimas.

EXAME.com – E o que pode ser feito para erradicar a escravidão moderna no país?

Kevin Bales – Para o Brasil avançar na erradicação da escravidão, governo e empresas precisam trabalhar juntos.

Ao governo cabe ratificar as Convenções da OIT sobre os trabalhadores domésticos e sobre trabalho forçado; criar abrigos específicos para vítimas de escravidão; desenvolver procedimentos operacionais padrão para a polícia e para a identificação das vítimas; desenvolver e financiar programas de reintegração para as vítimas, incluindo acesso à terra para promover formas alternativas de emprego; e desenvolver e fortalecer comissões estaduais de combate ao trabalho escravo em todo o país.

No que cabe às empresas, é importante que grandes companhias assinem e participem no Pacto Nacional para erradicar o trabalho escravo. Além disso, as empresas precisam estabelecer diligência adequada com seus fornecedores para ser capaz de identificar e lidar com os casos de escravidão em suas cadeias de produção. 

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