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Como está a operação de guerra para entregar cestas básicas em favelas

Plano de distribuir cestas básicas a famílias de favelas para conter impacto do coronavírus, coordenado pela Gerando Falcões, teve que mudar de última hora

Bruno Desidério, líder das Unidades de Poá e Ferraz Vasconcelos da ONG Gerando Falcões entre Jaqueline Ferreira e Gabriel Ferreira (Gabriela Alves / Gerando Falcões/Divulgação)

Bruno Desidério, líder das Unidades de Poá e Ferraz Vasconcelos da ONG Gerando Falcões entre Jaqueline Ferreira e Gabriel Ferreira (Gabriela Alves / Gerando Falcões/Divulgação)

Ligia Tuon

Ligia Tuon

Publicado em 4 de abril de 2020 às 08h00.

Última atualização em 4 de abril de 2020 às 11h32.

Uma verdadeira operação de guerra está sendo montada por parte da sociedade civil para proteger a população vulnerável aos efeitos da luta contra o coronavírus.

Voltada para moradores de favelas, uma dessas iniciativas começou a funcionar nesta semana e foi compartilhada de forma exclusiva com EXAME. O objetivo: arrecadar recursos e distribuir cestas básicas a famílias de 52 favelas brasileiras em 11 estados.

A necessidade de confinamento dificulta o sustento de parte importante dessa população, em boa parte formada de trabahadores que dependem do movimento nas ruas. Nesses casos, ter algumas semanas com todo mundo parado em casa não é uma mera inconveniência e sim um risco existencial.

"Quase todos são autônomos: cabelereiro, mecânico, pedreiro. Vendem o almoço para comprar o jantar", diz Edu Lyra, autor do projeto e fundador da Gerando Falcões, ONG com foco no desenvolvimento de favelas do Brasil. 

Uma pesquisa da Locomotiva realizada nos dias 26 e 27 de março em 260 favelas pelo Brasil, já em pleno isolamento social, mostrou o tamanho do impacto. Das 5,2 milhões de mães mapeadas, cada uma com 2,7 filhos em média, 73% não conseguem manter o padrão de vida por nenhum período durante a quarentena. E 92% terão dificuldade para comprar comida após 1 mês sem renda.

O projeto já havia arrecadado R$ 8 milhões - entre doações de empresários e por meio da campanha "corona no paredão fome não" -, para atender pessoas como essas quando ficou claro que a entrega física de cestas seria demorada demais, além de envolver risco de contaminação. Em uma semana, já em vias de ser lançado, foi virado de ponta cabeça.

"Precisava haver uma forma de as cestas chegarem o mais rápido possível até as famílias. Teria que ser de forma digital, mas não sabíamos como seria isso", conta João Paulo Coelho, especialista em logística e voluntário no projeto. Foi nesse estágio que as empresas Alelo e Ticket se juntaram, doando 50 mil cartões.

A família de Jaqueline Ferreira de Souza, de 37 anos, foi uma das beneficiadas. Auxiliar numa microempresa do ramo de limpeza, ela mora numa casa de três cômodos com o marido e três filhos na favela da Tubulação, em Poá, no estado de São Paulo, e foi demitida no começo de março:

"Primeiro eles deixaram a gente em casa por uma semana. Depois, começaram a demitir", conta. O marido dela, que trabalha numa serralheria, ainda está empregado, mas teve jornada e salário reduzidos pela metade: "Ele trabalha uma semana sim outra não, o patrão dividiu a turma".

Jaqueline soube do programa das cestas porque seu filho mais novo faz aula de futebol na Gerando Falcões: "A gente passou um pouco de perrengue nessas últimas semanas. Já estava faltando arroz, feijão e outras coisas em casa", conta.

De "quase-férias" forçadas, as crianças respeitam a quarentena em casa: "A escola manda atividades, mas eles ficam aqui e isso tem pesado, porque tudo é a mais. Mais café, mais almoço, mais janta, lanche de tarde. Vai tudo", conta.

A escassez de produtos básicos se junta a outra mais frequente e séria na região, ainda mais em tempos no qual a higiene precisa ser reforçada: "Falta água todos os dias", diz Jaqueline. Ela também reclama do rio que passa em frente à sua casa: "Quando chove, entra água em casa".

Há mais de 13 milhões de moradores de favelas no Brasil e 38 milhões de trabalhadores informais. Esses devem estar contemplados no projeto sancionado na quinta-feira pelo presidente Jair Bolsonaro, que garante a famílias com renda mensal de até três salários mínimos um apoio de R$ 600 por mês.

"É mais do que algumas familias ganham por mês. Muitas famílias vão ter ganho de renda, sobretudo as que já recebem o Bolsa Família", diz Daniel Duque, economista e pesquisador do Ibre-FGV.

O cronograma e os detalhes de operacionalização serão conhecidos no começo da semana que vem.  Mas quem tem fome tem pressa, e enquanto isso não acontece, ações como a da Gerando Falcões procuram amenizar o baque das famílias.

Moradora da favela da Tubulação recebe cesta básica digital

Moradora da favela da Tubulação recebe cesta básica digital (Gerando Falcões/Divulgação)

Operação de guerra

A semana passada foi bastante intensa para o grupo responsável pelo programa. No dia 21 de março a ONG, que já contava com a parceria de João Paulo Coelho e da Accenture, começou a montar um aplicativo para controlar a entrega das cestas básicas aos líderes das comunidades.

Num cenário normal, demoraria 60 dias para esse sistema ficar pronto. Foi feito em quatro. Mas na manhã do dia 25, Coelho se deu conta de que o plano era falho.

"Tínhamos problemas básicos de logística. As pessoas não podem sair na rua e os alimentos estavam começando a faltar. Como eu monto uma cesta basica nesse cenário? Como distribuir tudo?", diz.

A cesta também não tinha tudo que seria necessário: "Uns têm arroz, mas não papel higiênico, por exemplo. Nesse modelo, se alguém quisesse doar mil cestas, eu ia ter que começar a recusar", diz.

Paralelamente, a Zup, que tem o Itaú como sócio, preparou em quatro dias uma plataforma de recebimento de doações on-line, um processo que normalmente levaria cerca de 60 dias.

Coelho e Edu pediram ajuda a empresas de cartão, mas o empecilho colocado era a falta do CPF dos beneficiários. Eles precisariam ser cadastrados antes e muitos nem têm o registro. Um dia depois, receberam o contato da Alelo e da Ticket, interessadas em participar.

"Pedimos 11 mil cartões para segunda-feira a cada uma", diz Coelho, que lidera 260 pessoas, direta e indiretamente, na iniciativa sem que nenhuma tenha já se encontrado pessoalmente. A Accenture também precisou refazer o aplicativo, mas as doações puderam começar na segunda-feira, 30.

Dentro da Ticket, Francisco Dionísio, diretor de Operações, foi o escolhido para viabilizar a tarefa.  "Foi uma super operação de guerra e consegimos mobilizar quase 50 pessoas, entre funcionários da empresa e fornecedores terceirizados que tiveram que abrir durante o fim de semana para cuidar das demandas. Fizemos em tempo recorde e com um engajamento enorme", diz.

Na Alelo foi a mesma coisa: "Mobilizamos quase a empresa inteira", conta Cesário Nakamura, presidente da companhia. Dificuldades do momento, como a redução de voos, também criaram contratempos.

"O voo que levaria os cartões para Belo Horizonte foi cancelado. Para não perder o prazo, mandamos um funcionário da companhia de carro às 4 da manhã para que, na segunda-feira, a entrega acontecesse como o prometido", diz Nakamura.

O projeto segue aceitando doações e pretende chegar a 60 mil cestas básicas digitais entregues. A doença avança, mas a solidariedade também.

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