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Como é a legislação que autorizou o aborto em criança vítima de estupro

Dificuldade para realizar o procedimento no país é reflexo da falta de uma lei que regularize o aborto nas situações autorizadas pelo Código Penal

Protesto de mulheres no STF: sem lei, a realização do aborto legal segue, portanto, normas editadas pelo Ministério da Saúde, mas que não têm força legislativa (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Protesto de mulheres no STF: sem lei, a realização do aborto legal segue, portanto, normas editadas pelo Ministério da Saúde, mas que não têm força legislativa (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

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Clara Cerioni

Publicado em 17 de agosto de 2020 às 19h06.

Última atualização em 17 de agosto de 2020 às 19h19.

A via-sacra da menina de 10 anos vítima de estupro para conseguir realizar o procedimento legal de aborto no Brasil escancara a fragilidade da legislação que protege as mulheres brasileiras vítimas de abusos sexuais.

Até hoje, o país não tem uma lei que permite o aborto, mas há exceções previstas no Código Penal de 1940. Na verdade, o conjunto de normas criminaliza a prática, com penas previstas de três a dez anos de detenção, mas não pune quem realizar o procedimento em dois casos: gravidez decorrente de estupro e risco à vida da mãe.

Há, ainda, a permissão do aborto para o caso de anencefalia do feto, que foi incluído neste rol após uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Sem uma lei, a realização do aborto legal segue, portanto, normas editadas pelo Ministério da Saúde mas que não têm força legislativa.

Hoje, a mais consolidada é a “Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento”, um guia que tem por objetivo transmitir as informações necessárias para os profissionais e serviços de saúde sobre o tema.

Há também um outro documento, a Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, que obriga o médico que se recusar a praticar o aborto, por objeção de consciência, a direcionar a mulher a outro profissional.

Apesar dessa possibilidade, são quatro as situações que proíbem, veementemente, o profissional de saúde de não fazer o procedimento: risco de morte para a mulher ou menina; em qualquer situação de abortamento juridicamente permitido, na ausência de outro profissional que o faça; quando a mulher puder sofrer danos ou agravos à saúde em razão da omissão do profissional; no atendimento de complicações derivadas do abortamento inseguro, por se tratar de casos de urgência.

O Código Penal também respalda o procedimento em crianças e adolescentes, segundo explica Romero Silva, coordenador de projetos do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), organização de defesa dos direitos humanos, especialmente de crianças e adolescentes.

"Importa destacar ainda que o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] normatiza o princípio da proteção integral e garantia dos direitos fundamentais, definindo que toda criança e adolescente deve estar a salvo de qualquer situação violenta, aterrorizante, vexatória ou constrangedora", diz.

 

 

Disputa

Durante quatro anos, a criança foi vítima de abusos sexuais por parte de um tio, de 33 anos, que a engravidou. Ambos moravam em São Mateus, cidade a 218 quilômetros de Vitória, capital do Espírito Santo. A série de abusos sexuais que a criança sofreu veio à tona no dia 9, quando ela, acompanhada de um familiar, deu entrada em um hospital da cidade.

Segundo informações do jornal A Gazeta, do Espírito Santo, no atendimento, os profissionais da unidade notaram que a barriga da criança apresentava um volume e foi realizado um exame de sangue. O resultado do teste comprovou a gravidez e indicou que a menor já estava grávida há cerca de três meses.

Na teoria, com essa situação, a criança só precisaria da autorização de sua responsável, no caso a avó, para que o procedimento fosse realizado em uma instituição de referência. No entanto, uma intensa batalha judicial, médica e religiosa se formou em torno do caso.

A promotoria da Infância e Juventude do Espírito Santo divulgou que vai investigar se grupos externos pressionaram a avó da criança para negar o aborto. Com o impasse, na sexta-feira, 14, a Justiça do Espírito Santo autorizou que o procedimento fosse realizado na criança.

Ela foi transferida ao Hospital Hucam (Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes), localizado em Vitória. Lá, os médicos realizaram mais um exame, em que foi constatado que a criança já estava com gravidez avançada de 22 semanas. Por isso, o hospital negou realizar o procedimento e ela teve de viajar para Pernambuco, onde há um hospital de referência em saúde da mulher.

Nesta segunda, em coletiva de imprensa, a superintendente do Hucam, Rita Checon, afirmou que a decisão da equipe do hospital foi "estritamente técnica e não teve interferências ideológicas". Segundo Checon, o programa do hospital para este tipo de caso segue um protocolo do Ministério da Saúde de aborto até 22 semanas e 500 gramas. O feto, neste caso, tinha 22 semanas e quatro dias e 537 gramas.

"O abortamento é considerado [de acordo com Nota Técnica do Ministério da Saúde] se a gravidez está no limite de 20 a 22 semanas e se o peso fetal é até 500 gramas. Essa criança estava acima desse ponto de corte que é dado pelo Ministério da Saúde. A criança não estava em risco iminente de vida ao chegar ao hospital, apesar de ter diabetes gestacional, a criança estava com saúde controlada", afirmou a superintendente do Hucam.

Letargia do Congresso

Na avaliação de Ana Paula Braga, advogada especialista em direito das mulheres do escritório Braga & Ruzzi, o fato de o Brasil não ter uma legislação debatida pelo Congresso Nacional para regularizar o aborto dá insegurança jurídica às vítimas.

"Existem até hoje hospitais que pedem boletim de ocorrência ou exame de delito a mulheres vítimas de estupro, mas isso não é uma regra. Não está em lei nenhuma. A questão do tempo também é nebulosa. Isso tudo prejudica o direito das mulheres e meninas", diz.

De acordo com um levantamento do Elas no Congresso, uma iniciativa da revista AzMina, desde 2011, 69 propostas de lei sobre aborto foram apresentadas por deputados e senadores.

No entanto, 80% delas buscam aumentar a criminalização da interrupção da gravidez no Brasil. Apenas um projeto de lei, do ex-deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), tinha a intenção de descriminalizar o aborto no país.

Em fevereiro deste ano, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou que a casa legislativa tem barrado retrocessos na legislação sobre aborto legal no Brasil.

"Na questão do aborto o que a gente tem feito é segurado os movimentos mais radicais que não querem nem que os avanços que foram construídos, seja pela Constituição ou por interpretação do STF sejam mantidos", afirmou.

Para Romero Silva, do Gajop, apesar da falta de clareza na legislação, é improvável que "o atual cenário politico possibilite um espaço para se fazer esse debate". Agora, é aguardar as repercussões que ainda podem surgir sobre o caso no Espírito Santo.

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